Divina aliança
A acumulação da presidência de um partido com a de um país é rara em países democráticos. Era frequente em países comunistas
O texto de lançamento do partido da família Bolsonaro pode não ser o documento partidário mais reacionário da história da República, mas é o mais pretensioso. Assim começa o “Programa da Aliança pelo Brasil”: “Há, na vida de uma Nação, momentos privilegiados, em que a vocação de um povo se descortina diante de seus olhos. Consciente de sua identidade, o povo inteiro se move, escolhendo seus próprios caminhos, na luta contra a injustiça e a tirania, para libertar-se do jugo da mentira por meio do conhecimento da verdade, cujo autor é Deus, que dotou todos os homens de direitos inalienáveis e fundamentais”.
Ecos da Declaração de Independência dos Estados Unidos e da saga de Moisés entrelaçam-se nesse parágrafo. A Declaração de Independência também começa com a identificação de um momento especial na história (“Quando, no curso dos acontecimentos humanos, se torna necessário a um povo dissolver os laços políticos que o ligavam a outro…”) para, no momento seguinte, invocar os “direitos inalienáveis” atribuídos aos homens “pelo Criador”. Quanto a Moisés, não bastasse o nome de “aliança” conferido ao partido, o mesmo que expressa a união entre Deus e o povo de Israel, repare-se no passo a passo deste novo santo enredo: Deus transmite a verdade ao povo brasileiro; este, enfim liberto, se põe em movimento; empenha-se na luta contra a injustiça e a tirania; enfim, para garantia do bom êxito da empreitada, põe-se ao abrigo da nova agremiação (e de seu guia, não é demais acrescentar).
O manifesto de lançamento, em 1932, da Ação Integralista Brasileira (versão nacional do fascismo europeu) também começa com a invocação à divindade: “Deus dirige o destino dos povos. O homem deve praticar sobre a terra as virtudes que o elevam e o aperfeiçoam”. Em seguida, põe-se em defesa “da Família, da Pátria e da Sociedade”, valores idênticos aos do movimento dos Bolsonaro. Mas não se arroga agir, como o bolsonarismo, por desígnio de Deus. A Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), outro movimento de valores regressistas, muito ativo entre os anos 1960 e 1990, insurgiu-se contra os constituintes de 1987-88 por, entre outros motivos, induzirem à “sovietização do país”, com sua insistência na reforma agrária, e defenderem a “absurda” igualdade entre homem e mulher. Abraçava, com ênfase redobrada, causas vizinhas ao bolsonarismo. Mas não se dizia, com a explicitude do novo partido, bafejada pelo sopro divino.
O nome do partido dos Bolsonaro sugere que quem não se alia é contra o Brasil
Além de advogar “o direito inalienável de possuir e portar armas” e de repudiar o aborto “sob todas as suas formas”, a Aliança pelo Brasil declara-se “em harmonia com as tradições históricas, morais e culturais na nação brasileira”. A Ação Integralista, na mesma trilha, enaltecia “nossas tradições gloriosas”. Mas não esquecia de incluir, entre tais tradições, a contribuição “do caboclo e do negro de nossa terra”. Já o partido bolsonarista identifica a tradição brasileira à “Civilização Ocidental, herdeira do virtuoso encontro entre as cidades de Jerusalém, de Atenas e de Roma”. Na geografia imaginária do bolsonarismo, o Brasil, país de maioria afrodescendente, ocupa algum ponto entre as louras Alemanha e Suécia. Em sua geopolítica imaginária, o Brasil faz parte do “Oeste”, a despeito de o conceito geopolítico de “West”, para quem o formulou, não ir além de Estados Unidos, Canadá e Europa Ocidental.
A Ação Integralista acalentava a intenção de se transformar em Partido Único (com maiúsculas, no manifesto), uma vez vitorioso o movimento. Seguia os exemplos do Partido Fascista italiano, do Partido Nazista alemão e do Partido Comunista da União Soviética. A Aliança pelo Brasil não chega a tanto, mas vislumbra-se em seu nome, quando bem examinado, a intenção de totalidade e o monopólio das boas intenções. A “aliança” proposta não é por um certo conceito, uma certa doutrina ou uma certa ideologia, e sim “pelo Brasil”, em sua totalidade. Fica no ar a sugestão de que quem não se alia é contra o Brasil. A Ação Integralista, à moda dos movimentos de seu tipo e época, tinha um chefe, Plínio Salgado. A Aliança pelo Brasil surge sob a presidência de Jair Bolsonaro. A acumulação da presidência de um partido com a de um país é rara em países democráticos. Era frequente em países comunistas.
P.S.: a Aliança pelo Brasil compromete-se com “a conservação e a restauração da língua portuguesa como um dos pilares de sustentação de nossa nação”. Erros, obscuridades, redundâncias e deselegâncias permeiam, no entanto, o texto com que se apresenta ao país. Em suas mãos a língua portuguesa, a julgar por essa primeira amostra, está em apuros.
Publicado em VEJA de 4 de dezembro de 2019, edição nº 2663