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Decisão sobre lavagem selará destino dos mensaleiros

Questão tem provocado os mais acalorados debates no plenário. Denúncia alcança quase todos os réus e prevê penas duras: mínimo de três anos

Por Daniel Jelin, Carolina Farina e Laryssa Borges
Atualizado em 10 dez 2018, 10h33 - Publicado em 27 set 2012, 07h21

Lavagem de dinheiro é um dos pontos centrais do processo do mensalão. É o expediente de que o núcleo político se valeu para tentar manter distância da “cena do crime”. É a denúncia que alcança o maior número de réus (34 de um total de 38). É um dos dois únicos crimes que não prescreverão nem em caso de pena mínima (o outro é gestão fraudulenta). É a punição que, na conta final, pode levar ou não um condenado à cadeia. É a única acusação contra três ex-deputados do PT. E é, finalmente, o assunto que suscitou mais divergência entre os ministros do Supremo Tribunal Federal. Daí a importância do capítulo que a corte enfrenta nesta semana: além de selar o destino dos mensaleiros, o plenário deve firmar balizas para futuros julgamentos de um tipo penal relativamente novo e bastante complexo.

A controvérsia surgiu já na primeira fatia do julgamento: o caso do deputado petista João Paulo Cunha, acusado de favorecer a quadrilha de Marcos Valério em contratos com a Câmara, que presidia, em troca de propina. Ao analisar as denúncias de corrupção passiva e peculato, formou-se folgada maioria a favor da condenação: 9 a 2. Já no julgamento do crime de lavagem, a sentença saiu apertada – a mais apertada de todo o julgamento até agora: 6 a 5 pela condenação. Os votos vencedores foram do relator Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Ayres Britto, presidente da corte. Foram vencidos o revisor Ricardo Lewandowski, Rosa Weber, Dias Toffoli, Cezar Peluso e Marco Aurélio.

Simplificadamente: a maioria dos ministros entendeu que Cunha cometeu um crime ao receber propina (corrupção passiva) e outro ao dissimular o saque do valerioduto, ocultando a movimentação financeira dos órgãos de controle (o crime de lavagem). Já para a corrente minoritária, o recebimento de propina é sempre dissimulado, e assim o crime de corrupção encerrou o de lavagem, não cabendo dupla condenação.

Os debates são, evidentemente, saudáveis – é a razão dos tribunais colegiados – e servirão de marco para outros processos, tanto nas instâncias inferiores como no próprio STF. Só se lamenta que descambem tão frequentemente do campo jurídico para a provocação, a ironia, o esnobismo e o bate-boca.

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Doutrina e barraco – Na quinta-feira passada (20), Marco Aurélio revelou ter ficado “assustado” e “pasmo” com a condenação de Cunha, quase um mês atrás, que creditou unicamente ao fato de ter sido a mulher do deputado a intermediária dos 50 mil reais retirados de uma agência do Banco Rural. Barbosa reagiu: “Não foi só isso, nem isso é o mais relevante”. O relator retomou então sua explicação sobre o teatro montado para disfarçar a operação (Cunha chegou a dizer que sua mulher foi à agência resolver uma pendência da TV paga). Marco Aurélio então lembrou que acolheu a denúncia de lavagem em 2007, mas que agora decidiu absolver, enquanto Ayres Britto e Gilmar Mendes, que antes rejeitaram a denúncia, agoram resolveram condenar. Britto então lembrou que isso não quer dizer absolutamente nada.

Uma das mais ríspidas discussões sobre lavagem se deu, para não variar, entre Barbosa e Lewandowski, na sessão seguinte, segunda-feira (24). Ao analisar o caso de Valdemar Costa Neto, do antigo PL (atual PR), o revisor sugeriu haver condenações “automáticas”, o que disse não admitir. Barbosa interrompeu a crítica velada. “Vossa excelência não reconhece a constitucionalidade do artigo 70 do Código Penal?”, perguntou, em referência à definição elementar de “concurso formal de crimes”, que descreve situações em que uma mesma ação – ou omissão – resulta em mais de um delito. Lewandowski disse que iria meditar sobre o assunto.

Nesta quarta-feira (26), o tema voltou ao plenário com o voto de Lewandowski pela absolvição de José Borba, ex-líder da bancada do PMDB, do crime de lavagem. Borba é aquele que se recusou a assinar um recibo para sacar 200 mil reais do valerioduto, o que exigiu o socorro de Simone Vasconcelos, braço-direito de Marcos Valério, que voou de Belo Horizonte a Brasília apenas para assinar a papelada e liberar a transação. “Isso é a lavagem mais lavada que eu já vi”, resumiu Luiz Fux. Professoral, Lewandowski disse que não pode basear seu voto em suposições. “O juiz deve partir da dúvida”, ensinou. De provocação em provocação, a doutrina deu lugar ao barraco, o voto de Lewandowski acabou tomando toda a sessão e o julgamento atrasou mais um pouco.

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Condenômetro

Compare o rigor dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal

Idas e vindas – No campo jurídico, os ministros que se opuseram à caracterização de lavagem de dinheiro e corrupção passiva invocaram o princípio conhecido por “ne bis in idem”, que estabelece que não se imponha uma dupla (‘bis’) punição ou acusação em razão de uma mesma (‘idem’) conduta. Como outros brocardos e latinismos, “ne bis in idem” vale mais pelo poder de síntese. Na prática, a Justiça frequentemente toma decisões variadas sobre o que vêm a ser o “bis” e o “idem” em diferentes processos penais. No caso do mensalão, o presidente da corte Ayres Britto contestou o argumento, apontando que foram violados dois bens jurídicos claramente distintos: a administração pública (no caso do crime de corrupção) e o sistema financeiro (no caso da lavagem de dinheiro).

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Uma tese cara aos que rejeitam a acusação de lavagem é a de que cabe ao Ministério Público comprovar que os réus tinham plena consciência da origem ilícita do dinheiro. Este é um assunto com óbvia repercussão para além do crime de corrupção. Celso de Mello rebateu esse argumento, no caso de João Paulo Cunha, invocando a teoria da “cegueira deliberada”: o réu supõe muito bem a origem criminosa das quantias, mas finge desconhecê-la para não se complicar.

Dos deputados acusados de lavagem, Lewandowski só condenou Valdemar Costa Neto, o maior beneficiário do valerioduto entre todos os parlamentares (quase 9 milhões de reais). Quando o fez, foi interrompido por Barbosa, que disse que o réu teria razões para contestar o voto do revisor, que ora aplica o “ne bis in idem”, ora não. Lewandowski respondeu a Barbosa que neste caso, e só neste caso, ficou demonstrado um segundo conjunto de fatos explícitos da lavagem: a triangulação forjada por meio de uma corretora. Sobre o assunto, mais de um ministro já citou jurisprudência da própria corte: o voto de 2001 do ministro Sepúlveda Pertence, que, ao analisar o caso de um réu que recebeu certa vantagem indevida na conta de um parente, decidiu que a caracterização de lavagem de dinheiro não exige “requintada engenharia financeira” nem envolver vultosas quantias.

Para o ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr., os votos dos ministros sobre o tema ainda não foram muito precisos. “A matéria já dividiu o plenário, mas houve idas e vindas. A doutrina ainda vai precisar se debruçar sobre essa questão”, diz. “O assunto não foi suficientemente discutido no Brasil.”

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Crime, castigo e prescrição

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Desafio global – Lavagem de dinheiro é um tipo penal complicado desde a sua definição: “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores” provenientes de um certo rol de delitos. Disso decorre que a condenação passa pela comprovação do chamado “crime antecedente”: é preciso demonstrar que o dinheiro lavado era “sujo”. Essa investigação é especialmente complexa, segundo a procuradora regional da República Carla de Carli, autora de Lavagem de Dinheiro, Ideologia da Criminalização e Análise do Discurso. Isso porque o “branqueamento de capitais” se dá em etapas, por meio de instrumentos que, em si, são legais, como abrir e fechar contas, remeter dinheiro ao exterior, comprar imóveis etc. “E a cada etapa da lavagem, fica mais difícil rastrear o dinheiro e ligá-lo ao crime.”

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Para complicar, a definição de lavagem é recente. Dada a notória lentidão da Justiça, são poucos os casos transitados em julgado, e portanto ainda é relativamente magra a jurisprudência sobre o assunto. O crime foi descrito pela primeira vez em 1998, num esforço para conter o crime organizado, em lei que também criou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf.

A imbricação entre corrupção e lavagem é tal que existe até uma Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro, onde De Carli representa o Ministério Público Federal. Essa é a instância que articula ações de diversos órgãos no combate ao crime. Foi criada em 2003, mesmo ano em que foram instaladas as primeiras varas especializadas em lavagem, o que tem permitido a policiais, promotores e juízes um domínio cada vez maior do tema, segundo De Carli. Alguns dos escândalos mais notórios da política passam pela suspeita de lavagem de dinheiro, entre eles o do superfaturamento de obras da prefeitura de São Paulo na gestão de Paulo Maluf, que resultou em ação penal que corre desde 2011 no próprio STF.

Este esforço contra a lavagem de dinheiro é global, dado a atuação internacional de certas máfias e a facilidade com que hoje se movimentam fortunas de um lugar a outro. De Carli explica que, para tornar efetiva a colaboração entre os países – envio de documentos, recuperação de valores etc. – , é necessário que os países tenham uma definição aproximada do crime. Por isso o delito foi reformulado em julho deste ano – o que não tem efeito nenhum sobre o julgamento do mensalão, cujos crimes estão sendo julgados com base na lei de 1998. Com a mudança, o lei agora está mais severa, explica o criminalista Jair Jaloreto. O novo texto elimina o rol de crimes antecedentes – basta provar que o dinheiro provém de qualquer infração penal, mesmo prescrita, o que inclui, por exemplo, contravenções como o jogo do bicho. O grande alcance da nova lei ainda dará trabalho a juízes e doutrinadores para que sejam evitadas distorções. Para Jaloreto, o julgamento do mensalão deve servir de baliza. “Vai ser um grande ponto de partida”, diz.

Em um voto especialmente duro, o ministro Luiz Fux escreve que: “Não se deve perder de vista que a atividade de lavagem de recursos criminosos é o grande pulmão das mais variadas mazelas sociais, desde o tráfico de drogas, passando pelo terrorismo, até a corrupção”. Fux cita estimativas de que a lavagem envolva de 5% a 10% do PIB mundial. É por isso, explica De Carli, que não basta perseguir a condenação do criminoso. É preciso buscar a devolução do produto do crime. O Ministério Público sustenta que o caixa de Valério foi abastecido com 55 milhões de reais tomados junto aos bancos Rural e BMG mais 74 milhões desviados da Visanet.

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No vídeo a seguir, os colunistas do site de VEJA Reinaldo Azevedo, Augusto Nunes e Ricardo Setti debatem ao lado do historiador Marco Antonio Villa a sessão desta quarta-feira do julgamento do mensalão no STF:

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