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Condenado em mais de 40 processos trabalhistas, Kalil não paga dívida

O candidato ao governo de MG foi réu por não pagar salários, não recolher FGTS e se apropriar do INSS de seus funcionários - a maioria não recebeu um tostão

Por Hugo Marques Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 3 jun 2022, 10h08 - Publicado em 3 jun 2022, 06h00

Jair Ferreira de Jesus trabalhou durante quase duas décadas numa prestadora de serviços de Belo Horizonte. Em 2017, depois de dezenove meses sem receber salário, foi demitido. O que parecia ruim ficou ainda pior quando ele descobriu que o empregador não estava depositando o FGTS e também não recolhia a contribuição do INSS. À Justiça, o porteiro relatou que enfrentava jornadas ininterruptas de doze horas, controlando a entrada e a saída de caminhões, período em que tinha direito a uma única refeição — normalmente um pão francês acompanhado de um copo de leite. No processo, os advogados compararam Jair a um “escravo da era moderna”. Em 2019, a empresa foi condenada a pagar uma indenização de 237 000 reais ao ex-funcionário. O caso, porém, até hoje não chegou ao fim. Mesmo condenado, o dono da empresa — famoso, rico e influente — se recusa a pagar a dívida, alegando que enfrenta dificuldades financeiras.

É bem provável que o porteiro jamais veja a cor desse dinheiro. No fim do ano passado, Jair, hoje com 86 anos, sofreu um acidente vascular cerebral (AVC), ficou preso a uma cadeira de rodas, não fala mais e ainda luta contra os efeitos do diabetes agravados pela falta de medicamentos. É surpreendente descobrir que o dono da empresa é Alexandre Kalil, ex-prefeito de Belo Horizonte, pré-candidato ao governo de Minas Gerais. Mais surpreendente ainda é saber que esse não é um caso isolado. Nos tribunais do estado, tramitam outros setenta processos que têm o prefeito como réu — todos relatando situações de atraso de salários, sonegação de INSS, não recolhimento de FGTS e exploração de trabalhadores humildes contratados pela Erkal e Fergikal, empresas de Kalil. As irregularidades já foram reconhecidas em mais de quarenta ações. O prefeito e as empresas foram condenados a indenizar os ex-funcionários em todas elas — mas a maioria ainda não recebeu até hoje um único tostão.

DEMITIDOS - O porteiro Jair de Jesus e o servente Vanderson dos Santos: sem salário, sem indenização e passando dificuldades -
DEMITIDOS - O porteiro Jair de Jesus e o servente Vanderson dos Santos: sem salário, sem indenização e passando dificuldades – (./.)

Vanderson dos Santos, por exemplo, está aguardando sua indenização há cinco anos. Servente de pedreiro, ele deixou a Fergikal em 2016, depois de seis meses sem receber salário. Assim como o porteiro citado no início desta reportagem, o rapaz procurou a Justiça para reclamar os direitos trabalhistas e ganhou uma indenização de 25 000 reais. Depois da sentença, em 2018, um oficial de Justiça foi até o endereço onde morava Alexandre Kalil para notificá-lo da decisão. Sem sucesso, o oficial relatou: “O senhor Alexandre Kalil não recebe ninguém ali e nenhum documento e orienta que encaminhe à prefeitura de Belo Horizonte”. No início de maio, a juíza Rejane Ferrel determinou que se usasse “força policial”, se necessário, para apreender um rolo compactador da empresa do ex-prefeito como forma de quitar a dívida. O equipamento até hoje não foi entregue.

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A questão não é a condenação pela Justiça trabalhista. Vários empresários passam por isso, em decorrência da maior benevolência da legislação com os funcionários. Mas fugir do compromisso de acatar a decisão da Justiça é bem mais complicado. Heugem Oliveira, que atua no processo de Vanderson e outros dois ex-funcionários, afirma que o ex-prefeito promove infindáveis chicanas para evitar pagar as dívidas trabalhistas. “O Kalil faz todo tipo de manobra processual que você imaginar.” Segundo o advogado, os processos trabalhistas no Judiciário mineiro demoram em média um ano e meio para receber a sentença, mas as ações que envolvem o ex-prefeito consomem quatro vezes mais tempo que o normal até uma decisão definitiva. “Me diz como um oficial de Justiça não encontra o prefeito de Belo Horizonte para intimá-lo?”, indaga o defensor. O advogado ressalta que a dificuldade é tão grande que ele era obrigado a fazer pessoalmente as pesquisas na Serasa para informar à Justiça onde Alexandre Kalil morava. “A intimação precisa ser feita no endereço residencial do réu, mas ele nunca era encontrado para receber”, ressalta.

Ao todo, o ex-prefeito deve 12 milhões de reais em dívidas trabalhistas, metade disso apenas com salários atrasados, décimo terceiro não pago, férias e multas. Para garantir o pagamento, a Justiça determinou o congelamento das contas dele. Nova surpresa: Kalil, que declara ser dono de um patrimônio pessoal superior a 10 milhões de reais, tinha apenas 19 000 depositados no banco. O juiz determinou também o confisco de 30% do salário do então prefeito. Os advogados afirmam que o ex-prefeito tem contas não declaradas no exterior, o que ele nega. “Eu vivo apenas do meu cheque especial, de uns aluguéis”, garante ele que, em uma primeira entrevista a VEJA, negou a existência das dívidas trabalhistas com os ex-funcionários. “Isso foi inventado pelo PSDB”, acusou. Depois, confrontado com as sentenças, admitiu o problema e garantiu que vai pagar tudo. “Nós já oferecemos uma fazenda para quitar essas dívidas”, afirmou.

FAVORITO - Zema: o governador que busca a reeleição lidera as pesquisas de intenção de voto -
FAVORITO - Zema: o governador que busca a reeleição lidera as pesquisas de intenção de voto – (Gil Leonardi/.)

É perfeitamente compreensível que um empresário enfrente problemas que o impossibilitem temporariamente de cumprir determinados compromissos financeiros, inclusive trabalhistas. Porém não parece ser esse o caso de Alexandre Kalil. Antes de se candidatar a prefeito de Belo Horizonte, ele era um bem-sucedido empreiteiro que prestava serviços à prefeitura de Belo Horizonte. Entre 2012 e 2016, a Fergikal e a Erkal faturaram 29 milhões de reais, executando obras de infraestrutura e manutenção de vias públicas. A partir de 2017, quando Kalil assumiu o cargo, suas empresas, que já enfrentavam dezenas de ações trabalhistas e acumulavam pesadas multas tributárias e previdenciárias, entraram em processo de falência. Hoje, além dos problemas na Justiça trabalhista, o ex-pre­feito também tem seu nome inscrito na Dívida Ativa da União. Ele é acusado de omitir receitas, de lesar credores, de encerrar as atividades das empresas de maneira irregular e de maquiar seu patrimônio pessoal para sonegar impostos. Sua dívida com a Receita Federal ultrapassa 48 milhões de reais. Explicar isso aos eleitores será um desafio.

Numa pesquisa divulgada na segunda-feira 30 pelo instituto Real Time Big Data, Kalil aparece em segundo lugar, com 29% das intenções de voto, atrás de Romeu Zema, o atual governador, que tem 43%. Recentemente, o ex-prefeito anunciou uma aliança com o ex-­presidente Lula. Ele acredita que essa parceria tem potencial para lhe garantir a vitória em outubro. Um levantamento feito pelo instituto Paraná Pesquisas mostra que o petista é o candidato preferido por 41% dos mineiros. Há nessa parceria uma aparente contradição. Em outros tempos, seria inimaginável uma sociedade política entre o Partido dos Trabalhadores e um empresário acusado de sonegação e de fraudes contra trabalhadores como o porteiro Jair ou o servente Vanderson. Mas a contradição é realmente apenas aparente. Em São Paulo e Brasília, tramitam nove processos movidos contra o PT por ex-funcionários do partido que reclamam de burlas trabalhistas.

“Minha vida é ajudar pobre”

Em entrevista a VEJA, o ex-prefeito Alexandre Kalil explica por que não pagou os direitos trabalhistas de seus ex-funcionários, garante que tudo será resolvido em breve e que o problema não gera nenhum tipo de constrangimento para a aliança política entre ele, Lula e o PT.

O senhor acaba de se aliar ao Partido dos Trabalhadores. Não constrange o fato de responder a mais de setenta processos por irregularidades trabalhistas, como não dar férias aos seus funcionários? Não. Eu sou empresário. Você já olhou quantos a Andrade Gutierrez tem, que a Odebrecht tem, que a Petrobras tem? A Justiça é para isso. Eu estou com o Lula, eu, como homem público, tenho de defender pobre. Eu não tenho o menor constrangimento de nada. Minha vida política é ajudar pobre.

Mas o senhor já foi condenado em quarenta processos. Eu tenho uma vida empresarial conturbada, como todo empresário passou neste país. O país está parado, estou tentando ajustar minha vida. Como não roubo, nunca peguei nada público, continuo com os mesmos problemas, tentando dar meu patrimônio para liquidar minhas dívidas trabalhistas.

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Por que o senhor não paga as dívidas já sentenciadas pela Justiça? Estamos discutindo. Acabei de oferecer uma fazenda da nossa empresa para pagar as dívidas, mas é muito difícil você conseguir fazer um acordo com a Justiça do Trabalho. Todos os meus problemas com a Justiça são de impostos, eu não tenho nada de apropriação indébita, nem de corrupção, então, todos os meus problemas são de impostos.

Os oficiais de Justiça informaram que não encontravam o senhor em sua residência para intimá-lo. Não tenho nenhum problema com isso, todos eles foram à minha casa, não tenho nenhum problema.

A Fazenda Nacional diz que o senhor omitiu receitas milionárias. Isso é da empresa, não é? É da empresa, mas eu não tenho nenhum processo pessoal de corrupção, de malfeito. Tudo meu está com os bens da empresa garantidos. Eu não tenho processo pessoal, são processos de empresas, normais, que todos têm, e todos com garantia, e todos antigos.

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O senhor disse que pensa igual a Lula. O que acha que Lula diria sobre um empresário que não paga direitos trabalhistas aos seus funcionários? Quando você não paga direitos trabalhistas aos funcionários, não é para você pôr no bolso não. É para pagar a folha, quando a empresa está apertada. Muitos desses direitos não são devidos, por isso que existe Justiça do Trabalho. Você dá bens em garantia e discute. Parece que deve e acabou o assunto. Negativo. É só puxar no Brasil a empresa que não tem problemas na Justiça trabalhista.

A Justiça determinou o bloqueio de suas contas e não encontrou quase nada. Onde o senhor guarda seu dinheiro? Eu não tenho nada nas minhas contas não. Eu vivo do meu cheque especial. Eu tenho cheque especial e vivo dele. Quando falta, recebo meu aluguelzinho, ponho lá, não tenho conta escondida não. Não tenho nada escondido.

Entrar para a política foi um bom negócio? Na política, eu só perdi, não adquiri nada, zero, zero. Eu me aposentei, alugo as máquinas, a empresa está desativada. Hoje eu vivo de aluguel.

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Publicado em VEJA de 8 de junho de 2022, edição nº 2792

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