Carta ao Leitor: Volta ao passado
Em nome de sua reeleição, Bolsonaro vem promovendo uma ilegal e desnecessária reaproximação entre Igreja e Estado
No fim do século XIX, preocupado em fazer o país progredir, o governo militar que derrubou a monarquia brasileira colocou entre suas prioridades a separação entre Igreja e Estado. Pouco mais de cinquenta dias após a proclamação da República, Deodoro da Fonseca assinou o decreto 119-A, que instituía a liberdade religiosa no Brasil e retirava do catolicismo o status de credo oficial. Ratificada pela Constituição de 1891, a alteração tornou-se um símbolo de modernidade, sendo confirmada em todas as outras Cartas desde então, não importando a orientação nem o regime de governo. Aliás, a atual Constituição (em seu artigo 19) é enfática: ela proíbe “a União, os estados e os municípios de estabelecerem cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento, ou manter com eles ou seus representantes uma relação de dependência ou aliança”. É importante ressaltar que o Brasil adotou a medida com bastante atraso, cerca de 100 anos depois dos Estados Unidos e da Revolução Francesa. Mas inegavelmente foi uma conquista relevante. A instituição do Estado laico, que não mistura seus interesses com o de organizações religiosas de qualquer natureza, tornou-se um dos marcos da civilização ocidental.
Infelizmente, um enorme passo atrás vem sendo dado no Brasil da atualidade. Exemplo gritante desse retrocesso foi a recente viagem do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, para Angola. Um dos objetivos do périplo, de acordo com Mourão, foi uma negociação com o governo local em favor dos interesses da Igreja Universal do Reino de Deus, seita evangélica que enfrenta problemas no país africano. Numa clara violação à Constituição, o pedido de intermediação foi feito pelo próprio presidente Jair Bolsonaro, cuja maior intenção é agradar a um eleitorado que desempenha papel relevante em sua base de apoio. Recentemente, aliás, o chefe do Executivo fez outro aceno a essa parcela da população com a indicação de André Mendonça a ministro do STF. Tal escolha não foi realizada pelo seu notório saber jurídico ou reputação ilibada, qualidades que Mendonça, de fato, possui. Mas, sim, por ser “terrivelmente evangélico”, como apregoou antecipadamente o presidente.
Governos podem, eventualmente, ir ao estrangeiro na defesa de interesses de empresas nacionais. Os Estados Unidos, por exemplo, são bastante atuantes nesse segmento, ajudando a diplomacia estratégica de suas companhias. Esse comportamento, porém, só faz sentido quando o próprio país acaba beneficiado por tais negociações — seja pela manutenção de empregos, seja pelo aumento das exportações. No caso da Universal, o interesse, evidentemente, é outro. A igreja, que já recebe diversas isenções tributárias, não vai pagar impostos sobre a receita que vier a acumular em Angola. O objetivo de Bolsonaro em ajudar os bispos é exclusivamente eleitoral. Como se sabe, trata-se de um eleitorado numeroso no Brasil e parte dele segue bovinamente a orientação de seus pastores. Ou seja: em nome de sua reeleição, obsessão desde que entrou no Palácio do Planalto, o presidente vem promovendo uma ilegal e desnecessária reaproximação entre Igreja e Estado. Uma perigosa volta ao passado. Mais uma.
Publicado em VEJA de 28 de julho de 2021, edição nº 2748