Carta ao Leitor: Uma difícil composição
O Brasil não pode ficar paralisado em meio à queda de braço entre poderes. A coalizão precisa acontecer em torno de princípios e valores — e quanto antes
Há mais de trinta anos, o sociólogo Sergio Abranches diagnosticou de forma precisa a nova relação entre os poderes Executivo e Legislativo que começou a tomar forma no país nas últimas décadas. Segundo o especialista, passou a vigorar no Brasil o “presidencialismo de coalizão”, um regime no qual o ocupante do Palácio do Planalto depende cada vez mais da aprovação do Congresso para impor sua pauta programática. Nos casos mais complexos, dois terços dos deputados precisam votar com o governo, algo que só é possível a partir de uma base parlamentar sólida. Assim, elevou-se substancialmente a necessidade das negociações suprapartidárias.
Dentro de um contexto em que há uma selva de legendas sem demarcações ideológicas claras, a semente do chamado Centrão germinou, cresceu e adquiriu viço. O fenômeno teve origem na época da Constituinte de 1988, quando parlamentares conservadores começaram a se unir para combater propostas que consideravam progressistas demais durante as discussões temáticas lideradas por Ulysses Guimarães. Um dos líderes do movimento, o deputado Roberto Cardoso Alves (1927-1996) cunhou na época a frase que definiu para sempre o espírito da turma: “É dando que se recebe”. Nos governos seguintes, o grupo teve diferentes lideranças e nuances políticas, mas sem nunca abandonar esse espírito pragmático que dá origem a algumas negociações republicanas com o Poder Executivo em torno de projetos e prioridades, e outras que ficam bastante longe disso, pois versam sobre distribuição de cargos e verbas.
Em seu retrato mais atual, o Centrão se apresenta de uma forma ainda mais coesa e com poderes multiplicados, sob a batuta competente de Arthur Lira, o presidente da Câmara. Outra característica marcante do momento é que o grupo, com claras inclinações liberais e conservadoras, distancia-se (e muito) das convicções do presidente eleito, o que já cria obstáculos naturais para as conversas entre os poderes. Como se não bastasse, a articulação política de Lula não parece até aqui ter entrado no jogo do presidencialismo de coalizão com a necessária organização.
Conforme mostra a reportagem da edição, alas do PT capricham no fogo amigo, dificultando a convivência do governo com outras legendas, sem que o presidente faça gestos firmes de contenção, algo que soa como uma carta branca para autorizar os companheiros a fazer a medição de forças. Do outro lado, Lira vem aumentando o tom dos alertas, reclamando de que o Poder Executivo tem sido amador no trato com o Congresso. Em um evento na última segunda, 6, afirmou que Lula não tem hoje uma base de apoio consistente nem na Câmara nem no Senado, mas ponderou que há tempo ainda para que a atuação das lideranças do Palácio do Planalto se estabilize.
Para o país, é fundamental o entendimento, desde que, claro, ele ocorra dentro do desejável cânone republicano. Reformas necessárias, como a tributária, e projetos como o do novo arcabouço fiscal serão apreciados em breve pelo Congresso. Lá fora, a situação vem se deteriorando com sinais de recessão na economia americana, o que vai acarretar uma alta dos juros nos Estados Unidos, e a momentânea falta de pujança da China, nosso maior parceiro comercial. Diante desse quadro sombrio, o Brasil não pode ficar paralisado em meio a uma queda de braço entre os poderes (mais uma). Evidentemente, também não seria positivo construir essa composição repetindo erros do passado, nos moldes do toma lá dá cá que originou o mensalão. A coalizão precisa acontecer em torno de princípios e valores — e quanto antes.
Publicado em VEJA de 15 de março de 2023, edição nº 2832