“No Brasil, quando você se torna líder majoritário, é inevitável não cruzar a linha da corrupção”, diz Cabral em entrevista a VEJA (clique para ler).
Na Ala E da notória penitenciária Bangu 8, no Rio de Janeiro, um corredor estreito abriga, lado a lado, seis celas de 6 metros quadrados cada uma. Em uma delas vive Sérgio Cabral, 57 anos, o ex-governador fluminense (2007-2014) condenado a inacreditáveis 282 anos de prisão por corrupção, lavagem de dinheiro e outros crimes relacionados ao astronômico esquema de propinas que ele montou ao longo do mandato. Preso desde o fim de 2016, Cabral resolveu no início do ano passado tomar o caminho de praxe dos políticos, empresários e executivos envolvidos na Operação Lava-Jato para reduzir sua punição e poder ir para casa mais cedo: a delação premiada. A primeira tentativa, um lote de vinte relatos encaminhado ao Ministério Público Federal, foi rejeitada por não trazer novidades. Cabral reviu as histórias, acrescentou detalhes e as apresentou novamente, desta vez à Polícia Federal. A avaliação no meio jurídico é de que o material revisado não traz revelações capazes de dar um salto no que já se sabe sobre a corrupção no país.
Diante da quantidade de nomes com foro privilegiado, a PF encaminhou o calhamaço de 800 páginas ao Supremo Tribunal Federal. Cabral , então, deu mais sorte. Em fevereiro, o STF homologou a delação — ou seja, permitiu que a apuração fosse adiante. No momento, dezesseis casos se encontram na fase de investigação e coleta de provas. O restante foi arquivado por lhes faltar substância. Precavendo-se contra a aparente fragilidade das delações em andamento, o ex-governador prepara-se para voltar à carga: entregará outras 75 denúncias, inéditas. VEJA teve acesso a onze desses detalhamentos, que enredam 24 personagens da política. Todos desmentem Cabral e veem na enxurrada de acusações um ato de desespero para entrar na cobiçada lista dos delatores atrás de alívio de pena.
LICITAÇÃO COMBINADA
A denúncia — Cabral recebeu a incumbência de tocar a obra do Parque Olímpico de Deodoro com recursos federais. Repassou a tarefa para Eduardo Paes, que direcionou a licitação para a construtora Queiroz Galvão. A propina de 5% seria dividida entre Cabral e Paes, mas no fim o então prefeito ficou com tudo.
O outro lado — Paes diz que a delação de Cabral não tem valor jurídico porque “não encontra respaldo na realidade”. A Queiroz Galvão informou que não se manifesta sobre investigações em curso.
Entre os casos que a reportagem examinou, três fazem menção ao ex-prefeito Eduardo Paes, antigo colega de partido e aliado, hoje desafeto, que Cabral parece ter especial prazer em arrastar para o centro de suas acusações. Em uma das delações da nova leva, o ex-governador conta que Paes, depois de empossado, achou por bem reformar a residência oficial, a Gávea Pequena, e pediu a ele que acionasse Fernando Cavendish, da Delta Construções, já então fornecedor privilegiado do governo estadual, para bancar o serviço de 1,5 milhão de reais. Em troca do agrado, Cavendish ganharia em licitação fraudada a construção do Parque Madureira, na Zona Norte carioca, obra de 90 milhões de reais. Em outra suposta fraude, o então prefeito teria combinado com o governador entregar de bandeja para a construtora Queiroz Galvão a instalação do Parque Olímpico de Deodoro, arrecadando propina de 5%.
Ainda em relação a Paes, Cabral conta que Arthur Soares, o rei Arthur, grande benfeitor e beneficiário do esquema criminoso, atualmente foragido, depositou 6 milhões de reais no caixa dois da campanha do ex-prefeito em 2008, arrebatando, em retribuição, o comando do Centro de Operações da Prefeitura e seu lucrativo departamento de contratação de terceiros. Ouvido por VEJA, Eduardo Paes, candidato do DEM à prefeitura do Rio, foi enfático e negou veementemente as denúncias. “Sérgio Cabral é um criminoso confesso. E tenta, a qualquer custo, encontrar uma saída para os crimes que cometeu”, disse. A favor da tese do ex-prefeito está uma mudança de comportamento do próprio Cabral no tema. Em depoimento ao juiz Marcelo Bretas em 1º de julho de 2019, quando já admitia propinas em seus negócios, o ex-governador negou toda e qualquer participação do então aliado em sua organização criminosa. “Eu nunca pedi nenhum favor a ele e ele nunca me pediu nada. Eduardo Paes não recebeu nenhum tipo de benefício”, disse na ocasião.
TUDO EM CASA
A denúncia — Cabral conta que, entre 2007 e 2010, Pezão e Hudson Braga se encontraram em suas próprias casas, quinzenalmente, com o então ministro Alexandre Padilha e o assessor Alan Silva, enviados de Lula e do PT para receber a propina por projetos em favelas do Rio pagos com recursos federais. Em duas ocasiões o próprio Cabral mandou seu agente financeiro, Carlos Miranda, entregar 300 000 reais a Padilha.
O outro lado — Padilha diz que se trata de um ataque à sua imagem “sem provas e sem checagem”. Lula afirma que jamais recebeu repasse algum, “direta ou indiretamente”, do ex-governador. Braga mantém que “a fala dele não tem nenhuma credibilidade”. Silva informa que os “supostos convênios” não eram de sua responsabilidade. Pezão não quis comentar.
Além de um domínio completo na máquina fluminense, que comandou durante sete anos, Cabral desfrutou uma posição privilegiada em nível nacional. Era muito próximo do ex-presidente Lula, com quem já passou réveillons em sua casa de Mangaratiba, e era ouvido para indicações de cargos federais e alianças políticas. No apogeu, embalado por ótimos números no governo estadual e pela ocupação de favelas no programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), foi reeleito com quase 70% dos votos. Descontadas as histórias que ele mesmo confessa, pode-se dizer que foi o melhor governador do Rio nas últimas décadas (o que mostra também o nível dos outros). Seu problema foi não ter percebido o tsunami que se aproximava. Confiando na impunidade, ao ser preso, apesar das muitas evidências de roubalheira, adotou a linha de negar tudo e se dizer injustiçado pelo sistema. Aí, perdeu o bonde — quando resolveu falar, a maior parte do que sabia já tinha sido delatada antes por outros colaboradores. Mas ele continua tentando e se dedica com afinco a rememorar o que viveu.
Extensa, a atual leva de casos deletérios cavuca episódios antigos, como a suposta compra, na disputa pela prefeitura em 1996, de 2 pontos em uma pesquisa do Ibope. Pelo arranjo, Cabral teria pago 200 000 reais ao dono do instituto, Carlos Augusto Montenegro, e ainda repetido a dose em outras duas votações. Consultado por VEJA, Montenegro ironizou: “Uma pessoa que faz declarações como essa não pode estar bem da cabeça”. Outro pecado mais remoto no pacote é uma suposta negociata com a FGV Projetos: em troca de pareceres favoráveis a contratos de serviços superfaturados, tanto a instituição quanto o governador receberiam um troco por fora. A FGV Projetos, atualmente sendo investigada por denúncias de natureza semelhante, afirmou a VEJA que “repudia a reiterada tentativa de desconstrução de sua imagem com base em alegações totalmente inverídicas”.
PROPINA DE EXPORTAÇÃO
A denúncia — Cabral apresentou o amigo Daniel Scioli, ex-vice-presidente e atual embaixador da Argentina no Brasil, a Ronald de Carvalho, encarregado da instalação das UPAs do Rio. Scioli o contratou para um projeto semelhante em Buenos Aires e ganhou 10% de propina na obra.
O outro lado — A embaixada argentina não quis se manifestar e Carvalho afirmou que não recebeu “qualquer solicitação para pagamento de vantagem indevida a quem quer que seja”.
Simpático, e cosmopolita, dado a se divertir pelo mundo, Cabral fez amizades fora do Brasil e, a se crer nos anexos a que VEJA teve acesso, generosamente estendeu a elas sua rede de corrupção. Em uma passagem, o ex-governador conta que o argentino Daniel Scioli, ex-vice do presidente Néstor Kirchner e atual embaixador do país vizinho no Brasil, o contatou quando ainda era governador da província de Buenos Aires para ser apresentado a Ronald de Carvalho, o responsável pela instalação do programa de Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) no Rio. Contato feito, diz Cabral, Carvalho fechou o negócio de 1 milhão de dólares para fazer UPAs portenhas e Scioli ganhou comissão de 10%. A inauguração da primeira unidade teve a presença da então presidente Cristina Kirchner, de Diego Maradona e do próprio Cabral. Procurada, a embaixada argentina em Brasília não quis se manifestar. Já o interesse do ex-primeiro-ministro da Espanha Felipe González, conta o ex-governador, seria em um complexo turístico dentro de uma área de proteção ambiental em Maricá, no estado do Rio. Cabral o teria recebido diversas vezes, a pedido de Lula, e facilitado a obtenção de licenças para a empresa espanhola encarregada da obra. Em retribuição, diz, recebeu 300 000 euros, que repartiu com outros dois facilitadores. Procurado por VEJA, González não respondeu às perguntas.
Lula é citado novamente no trecho em que Cabral requenta um tema de outras delações: os supostos repasses ilícitos ao PT, intermediados pelo ex-ministro Alexandre Padilha, de contratos de obras federais no Rio de Janeiro. Ao já denunciado, ele acresce os seguintes detalhes: 1) o dinheiro era entregue a Padilha por Luiz Fernando Pezão, seu vice e sucessor, e pelo ex-secretário de Obras Hudson Braga, a cada quinze dias, em encontros na casa de um ou de outro; 2) um único repasse alcançou 10 milhões de reais; e 3) o próprio Cabral, por meio de seu operador financeiro Carlos Miranda, providenciou a entrega de 300 000 reais em duas ocasiões. Os envolvidos rechaçam a acusação. Em outro ponto, é Tarso Genro, então candidato ao governo do Rio Grande do Sul, que teria ido ao Palácio Guanabara pedir apoio e doação via caixa dois (e saído com 500 000 reais em duas parcelas). Ouvido por VEJA, Genro levantou a hipótese de Cabral estar “confundindo o candidato”.
PONTOS A MAIS
A denúncia — Cabral, deputado estadual e candidato a prefeito, negociou em 1996 com Carlos Montenegro, do Ibope, uma manipulação de pontos que o pusesse em boa posição nas pesquisas. Pagou 200 000 reais por 2 pontos e conseguiu ir para o segundo turno, mas Luiz Paulo Conde acabou eleito. A “sociedade” se repetiu na eleição de Cabral para governador, em 2006, e na de Eduardo Paes para prefeito, dois anos depois.
O outro lado — Montenegro argumenta que uma irregularidade dessas acabaria com a credibilidade do Ibope e que Cabral “não pode estar bem da cabeça”.
As esperanças do ex-governador de emplacar como delator ganharam força desde que assumiu a função de preenchedor de lacunas em investigações em andamento. No início do ano, quatro promotores que examinam contratos suspeitos da FGV Projetos passaram o dia inteiro na cadeia de Bangu 8 conversando com Cabral sobre seus negócios com a instituição. Ele também foi ouvido sobre serviços prestados ao governo fluminense pela Gamecorp, empresa de Fábio Luís, filho de Lula, na mira da Operação Lava-Jato. Os contatos dos agentes da PF, promotores e procuradores são feitos por seu advogado, Márcio Delambert. Antes da pandemia, Cabral era levado à superintendência da corporação, na Zona Portuária do Rio, para conversar. Agora, os contatos são a distância — já participou de cinco videoconferências do gênero. No início do mês, ele pediu e recebeu um “atestado” da Polícia Federal, assinado pelo delegado Bernardo Guidali Amaral, da diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado, nos seguintes termos: “Reconheço que o colaborador, de forma voluntária, tem apresentado esclarecimentos sobre fatos criminosos diversos”. Na visão do ex-governador, acenos desse tipo podem contar pontos a seu favor.
Na rotina da prisão, Cabral, 15 quilos mais magro, passa a maior parte do tempo lendo e, quando a tristeza chega, costuma tomar um antidepressivo pela manhã e um comprimido para dormir à noite. Entre seus vizinhos de corredor estão o ex-presidente da Assembleia Legislativa Paulo Melo e Wilson Carlos, seu ex-secretário de governo e amigo desde a adolescência. Eduardo Cunha, hoje em prisão domiciliar, chegou a ficar na mesma ala. As visitas dos filhos e da mãe foram interrompidas pela pandemia. Só o mais velho, Marco Antônio, advogado, continua a bater ponto no presídio duas vezes por semana.
Reservadamente, dois ministros do STF ouvidos por VEJA aventam a possibilidade de a delação de Cabral sucumbir ao “fator Palocci” — referência ao descrédito do material oferecido pelo ex-ministro Antonio Palocci por falta de consistência (leia a reportagem na pág. 40). Mas ele persevera. Firme no propósito de inundar a polícia de relatos de delitos próprios e alheios e assim abater a pena multissecular, Cabral já pensa no futuro fora das grades. A um dos policiais, disse que nunca mais voltará para a política. Em relação à mulher, Adriana Ancelmo, também já decidiu o que vai fazer. Ela chegou a ser detida, o que o afetou emocionalmente e foi seu pior momento na cadeia, hoje cumpre prisão domiciliar e namora um advogado. Quem convive com o ex-governador já ouviu que, quando ele sair, “cada um vai seguir seu rumo”.
Publicado em VEJA de 26 de agosto de 2020, edição nº 2701