Não deixa de ter lá a sua graça: o presidente que tomou posse prometendo devolver ao povo o poder de Washington tem seu governo parcialmente paralisado pelo poder de Washington. Donald Trump não conseguiu convencer parlamentares do Partido Democrata, tampouco alguns do seu Partido Republicano, a destinar verbas para a construção do polêmico muro na fronteira mexicana. Sem a aprovação do Orçamento, partes do governo automaticamente deixam de receber recursos. O muro foi talvez a principal promessa da campanha vitoriosa de Trump — até hoje ele insiste que os mexicanos vão pagar a conta.
O imbróglio ilustra bem como um discurso antipolítico pode ser muito eficiente para ganhar uma eleição — e virar uma tragédia daí em diante. Quase metade dos americanos culpa Trump pela paralisação do governo. A situação do presidente deve se complicar bastante: acabam de tomar posse deputados e senadores eleitos em novembro, uma vitória contundente da oposição democrata. As investigações quanto a desvios de campanha prosseguem e se aproximam dele e de sua família. É cedo para decretar seu fim, mas é certo que a instabilidade deve crescer na metade final do seu mandato. Se a economia americana fraquejar, o mito Trump irá pelo ralo.
E é na economia que podem estar as diferenças mais visíveis em relação ao que pretende o presidente Jair Bolsonaro, um trumpista convicto. Trump entende o comércio internacional como um jogo de soma zero em que os Estados Unidos estão sempre levando a pior. O ministro Paulo Guedes assumiu pregando mais abertura. Trump também conduziu uma gestão macroeconômica temerária, cortando impostos num momento de alta do ciclo. Alertou-se amplamente para o risco de superaquecimento. Por isso mesmo, Trump tem voltado suas baterias contra Jerome Powell, presidente do banco central americano. Trata-se de uma ruptura perigosa num país em que o governo tradicionalmente não se mete na política monetária. Por aqui vemos o oposto: Guedes foi enfático em apontar nosso desequilíbrio fiscal como o maior problema econômico brasileiro. E aproveitou para reafirmar que o Banco Central terá autonomia para combater a inflação.
O tempo dirá se o fascínio exercido por Trump na família Bolsonaro surtirá algum efeito prático. A política externa vai seguir um alinhamento mais automático com a dos americanos, mesmo quando isso afetar nossos negócios? Em outro front, será particularmente importante acompanhar como o novo governo vai reagir às críticas. Trump vem promovendo uma inédita campanha de ataque ao jornalismo que busca — em vão — impedir o contraditório. As inúmeras restrições na cobertura da posse de Bolsonaro podem ter sido apenas exageros de segurança ou arrogância dos novos donos do poder. Ou o prenúncio de dias obscuros.
Não faltam coisas maravilhosas para copiar dos americanos. Eles têm as melhores universidades. Um ambiente de negócios propício à criatividade. Liberdade para o cidadão. Uma sociedade civil vibrante. Uma democracia vigorosa. Um governo forte nas áreas em que é indispensável. Nada disso veio de Donald Trump.
Publicado em VEJA de 9 de janeiro de 2019, edição nº 2616