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Mia Couto: “Rever obras é censura”

O consagrado escritor é contra a onda do revisionismo guiada pelo politicamente correto, filtro em que enxerga desnecessários excessos

Apresentado por Atualizado em 26 Maio 2023, 10h09 - Publicado em 26 Maio 2023, 06h00

Um dos grandes escritores da atualidade, o moçambicano Mia Couto, 67 anos, mantém fortíssimo laço com o Brasil, que em suas contas já visitou pelo menos três dezenas de vezes. O autor, traduzido em mais de trinta idiomas e vencedor do prestigiado Prêmio Camões, tem suas raízes literárias fincadas em nomes como Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo, que leu desde cedo. Intelectual que não foge de temas que incendeiam a atualidade, Couto sempre se situou à esquerda no espectro ideológico — na juventude, fez inclusive parte do movimento armado de independência de seu país —, mas acha que falta à ala mais progressista de hoje o reconhecimento “de que o mundo se torna a cada dia um lugar mais complexo”. Em meio à ascensão do politicamente correto, ele enxerga os vários matizes de polêmicas questões, como a adoção da linguagem neutra e o revisionismo na literatura. Dono de obras-primas do realismo fantástico e agora dedicado a um livro sobre a I Guerra, o biólogo de formação concedeu, com sua inconfundível voz baixa e tranquila, a seguinte entrevista a VEJA.

Clássicos da literatura mundial estão sendo questionados e até modificados à luz do politicamente correto. O senhor é a favor do movimento revisionista tão em voga? Definitivamente, não. Sempre que tentam fazer isso, o resultado é desastroso para a arte da escrita. Uma vez, em visita à Alemanha, fui chamado por uma editora que estava traduzindo um livro meu. Na história, um capitão português que vive no ano de 1890 chama um africano de preto em um dos diálogos. Era a forma dele, colonial, de se expressar. Havia um contexto. Mas o tradutor alemão insistiu que não poderia usar aquele termo. Eu então perguntei qual seria sua sugestão. E veio a resposta: “Use um ‘excessivamente pigmentado’ no lugar de preto”.

Aceitou a sugestão? Não. Achei um absurdo total, até porque este “excessivamente pigmentado” embute uma subjetividade que também pode resvalar em preconceito. A moda do revisionismo gera situações ridículas, que acabam por fragilizar o movimento da diversidade e da inclusão — este, sim, sério e respeitável.

O senhor diria que o revisionismo é uma modalidade de censura? É uma censura, sim. E pior: feita contra alguém que provavelmente já não está mais vivo e não tem direito à palavra. Essa ala da sociedade que sai por aí alterando grandes obras pretende purificar o passado. A revisão possível, a meu ver, deve se restringir a adicionar observações em um livro explicando o contexto histórico em que foi escrito. As mudanças não podem ser na base da subtração ou da substituição, mas do acréscimo de informações. Assim, é razoável.

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Certa vez, o escritor Umberto Eco (1932-2016) disse que as redes sociais deram voz aos imbecis. Concorda? Nos dias de hoje, o que percebo é que muitas pessoas só leem frases soltas de meus livros nas redes. Me dizem “adorei aquela sua frase”, que é apenas o fragmento de uma obra muito maior, e ela é ignorada. Os escritores viraram frasistas. Outro problema é que todo mundo se sente um pouco especialista ali e alguns até viram referência em assuntos dos quais não têm nenhum domínio. Confundem fato com opinião, tudo em troca de likes, o que alimenta um ciclo perigoso.

“Na era da internet, percebo que muitas pessoas só leem frases soltas dos livros nas redes. Me dizem: ‘Adorei aquela sua frase’. A obra em si é ignorada. Os escritores viraram frasistas”

Em seu livro Antes de Nascer o Mundo, o senhor aborda, a partir de um protagonista misógino, a ideia de um planeta sem mulheres. Os homens vivem uma crise de masculinidade? Vivem. Existe um tipo de macho que se sente muito pouco à vontade no lugar que passou a ocupar na modernidade. As mulheres já têm emprego, estão em posições de poder e não servem mais somente ao espaço familiar. Isso deixa os homens com um misto de raiva e medo e, em certos casos, é daí que nascem violências físicas e psicológicas contra as mulheres. A caminhada em prol das conquistas femininas não pode esmorecer nem tampouco perder o foco no que importa.

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E há sinais de que isso está acontecendo? Não, mas tenho dúvidas sobre o ideal de representatividade de que tanto se fala hoje. Em Moçambique, meu país, a maior parte do Congresso é feminina, mas continuamos sendo uma nação extremamente patriarcal. Colocar uma mulher em um lugar de poder, por si só, não resolve as desigualdades.

Mas não é um bom primeiro passo? Sim. Só que não basta simplesmen­te criar uma categoria “mulher” e aplaudi-las apenas porque estão em cargos nunca antes ocupados. Claro que fico feliz em vê-las em lugares de destaque, mas, justamente para que se preserve a igualdade, é preciso lhes dar o direito de terem de provar sua competência, da mesma forma que acontece com os homens.

Qual sua posição no candente debate sobre o uso da linguagem neutra? Se eu fosse parte de uma minoria, provavelmente também brigaria pelo emprego dessa linguagem. Mas, honestamente, não considero uma pauta essencial, por seu baixo potencial de produzir mudanças verdadeiramente significativas. Já aconteceu de eu entrar em reuniões por videochamada, falar “bom dia a todos e todas” e aí alguém emendar: “Você precisa incluir o todes”. Não acho que isso deva ser imposto como uma regra universal. Agora, se eu estiver conversando com uma pessoa que prefere ser tratada com neutralidade, vou respeitar. O problema é fazer um alvoroço em torno do tema, o que termina por insuflar desnecessariamente o pessoal da extrema direita.

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A que o senhor atribui o atual fenômeno de ascensão da extrema direita no mundo? A humanidade tem enfrentado uma sequência de crises econômicas e sociais. As pessoas perderam a sensação de segurança, estão com medo e temem pelo futuro de seus filhos. Acho que é uma questão para além da política — ela é existencial. Somos uma espécie que busca produzir sentido à vida, e essa sensação de ausência de propósito acaba justamente por constituir um terreno propício ao crescimento do populismo de extrema direita, que se fia o tempo todo em um discurso messiânico e salvador.

E a esquerda, espectro com o qual o senhor sempre se identificou, não tem dado conta de neutralizar o avanço dos radicais da direita? Não. A esquerda vem adotando um discurso de tom apocalíptico, ambientado no fim do mundo. Enquanto a direita se vende como a salvadora que detém todas as respostas, o outro lado espalha a desalentadora ideia de que está tudo ruindo. Sou de esquerda, sim, mas não sei nem mais de que esquerda exatamente faço parte.

Quais são suas dúvidas essenciais? Fui de uma esquerda ultrarradical na juventude e até fiz parte do movimento armado pela independência de Moçambique nos anos 1970. Nessa época, achava que era só tomarmos o poder que a sociedade se transformaria. Mas o mundo é cada vez mais complexo, e a esquerda segue com dificuldade em reconhecer isso, se achando dona da razão. O que certamente mantenho hoje desse espectro ideológico são os princípios de coletividade, de pensar no bem comum antes do benefício individual.

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O senhor foi um ferrenho crítico do governo Bolsonaro. Como avalia as chances de Lula fazer melhor? Há muitos brasileiros, inclusive amigos meus, que têm uma elevada expectativa em relação à nova gestão, que certamente não será correspondida nesta escala. Não são apenas temas de ordem política e administrativa que estão em jogo. Nos encontramos hoje diante de um Brasil profundamente rachado e isso, para mudar, leva tempo. Lula vai precisar consolidar uma democracia escutando adversários, cedendo, tecendo alianças. Será necessário estar junto daqueles que não são da mesma cor política em prol de um projeto de país. Não há espaço para cultivar a arrogância.

“Não considero o uso da linguagem neutra uma pauta essencial, por seu baixo potencial de produzir mudanças significativas. E acho que fazer um alvoroço em torno do tema acaba por insuflar a extrema direita”

O senhor observa uma boa dose dela nos tempos atuais? Sim. E vejo isso, por exemplo, em um ponto vital para a própria existência — a política ambiental. As principais correntes ideológicas partem do princípio de que a espécie humana ocupa o topo da cadeia evolutiva. Vale para esquerda, direita, extrema esquerda, extrema direita. Todos ainda se sustentam na antiquada ideia de que estamos aqui para usar a Terra, uma mentalidade que causa danos ao planeta de forma preocupante. O discurso pró-ecologia vem se dando em bases mais rasas do que o desejável.

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A herança colonial portuguesa deixou que marcas em países como Moçambique e Brasil? Ela deixou feridas, claro, mas hoje enxergo essas marcas muito mais no Brasil do que em Moçambique. Depois da independência moçambicana, as estruturas sociais foram radicalmente transformadas e o racismo, praticamente eliminado. A noção de raça foi colocada de lado e os cidadãos se definem, em primeiro lugar, como moçambicanos. A etnia pouco importa. No Brasil há ainda uma diferenciação evidente entre o preto e o branco. O preconceito é muito forte.

O senhor já disse ter sido inspirado por Guimarães Rosa no início de sua carreira. Em que medida lhe tomou inspiração? Há décadas, quando li Grande Sertão: Veredas, me apaixonei pela oralidade do texto dele. Me identifiquei na hora com sua escrita, porque os moçambicanos falam de forma poética, assim como os brasileiros. A mania de dar vida a objetos inanimados, que se revela em expressões como “o carro dormiu lá fora” e “um dia alegre”, é uma forma especial e encantada de encarar o mundo.

Depois do lançamento do ChatGPT, ferramenta de inteligência artificial, veio à tona uma necessária discussão sobre os limites éticos desse recurso. Acha que os escritores estão ameaçados pela possibilidade de uma máquina produzir com eficácia um bom texto literário? Sinto um terror absoluto em relação a isso e, sinceramente, não quero estar vivo para ver os desdobramentos mais radicais da inteligência artificial. Antes de tudo, acho que há um erro básico em comparar a lógica mecânica de um computador à capacidade humana de pensar. São coisas totalmente distintas. E nunca, jamais devemos perder o estímulo ao raciocínio e à reflexão.

Publicado em VEJA de 31 de maio de 2023, edição nº 2843

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