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‘Igreja é povo, não é governo ou contra o governo’, diz dom Odilo Scherer

Arcebispo de São Paulo, que virou alvo de radicais de direita, critica a exploração eleitoral da fé e diz que líderes religiosos precisam promover a união

Apresentado por Atualizado em 6 jan 2023, 10h08 - Publicado em 6 jan 2023, 06h00

Há quinze anos à frente da Arquidiocese de São Paulo, a maior do país, com mais de 6 milhões de católicos, o gaúcho dom Odilo Pedro Scherer, 73, é um dos oito cardeais brasileiros e o único a ter o nome cotado para ser papa, na sucessão de Bento XVI, em 2013. À época, a possibilidade lhe rendeu críticas da esquerda católica, que o considerava conservador demais. Já em outubro de 2022, na campanha eleitoral, ele virou alvo da direita bolsonarista, que o acusou até de comunista e abortista (coisas que ele obviamente não é) depois que postou no Twitter críticas a quem colocava em risco a fé, a família e os amigos por causa de política. Até a roupa vermelha, que todo cardeal usa, foi vista como uma alusão ao PT. Nos últimos dias, gastou parte de seu tempo para rebater a fake news de que a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) é filiada ao Foro de São Paulo, uma organização latino-americana de esquerda. Na entrevista concedida a VEJA, ele compara as redes sociais a uma praça, onde é possível ouvir e tirar lições, lembra o legado de Bento XVI, fala sobre a chance de haver um papa brasileiro e critica os religiosos de palanque. “Pastor da igreja tem de manter unida a comunidade e não fazer opção partidária”, afirma.

Como o senhor avalia o papado de Bento XVI, que morreu na última semana? Ele teve a difícil missão de suceder a João Paulo II, que governou por 26 anos. Em sua mão explodiram alguns problemas morais e administrativos, que já estavam presentes quando assumiu o pontificado. Com coragem, enfrentou publicamente a pedofilia no meio do clero, as intrigas e divisões internas. Mas ele acabou se sobrecarregando com essas situações, a ponto de não se sentir mais em condições de levar adiante a carga de sua missão. Passará à história como um papa teólogo, que teve uma percepção aguda das questões do nosso tempo e dos desafios dessas situações para a vida e a missão da Igreja. Ele sofreu muito. Que agora descanse em paz.

Este ano deverá ser difícil, com aperto na economia, crise social e pessoas brigando por causa de política. Quando teremos um pouco de paz? O Brasil será aquele que nós fizermos juntos. Todos devemos nos unir, dentro de seu pedaço e de sua competência, para fazer o melhor pela convivência comunitária, social, pela economia, para promover justiça, solidariedade, para abrir o coração aos mais necessitados. Pedimos que os governantes sejam sábios e prudentes, porque as decisões que tomarem na economia afetarão toda a população.

Em épocas de crise, muitos perdem a fé em Deus? A gente ouve muito isso. Compreendemos as reações em momentos de angústia, dor, perplexidade. Sempre dizemos para essas pessoas terem paciência. Nem tudo a gente compreende logo. E a dor também ensina muita coisa. E ela passa. Como diz um poeta, no meio da tempestade, leve o barco devagar. Não tome decisões precipitadas quando se está em um momento nebuloso da vida.

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“Fizeram despesas para lá da conta no governo de Jair Bolsonaro, e agora também na transição. Isso tem de ser equilibrado com políticas fiscais. Mas o Brasil tem enormes potencialidades”

O que o senhor espera do novo governo Lula? Sem dúvida há uma preocupação importante com a melhora das condições de vida dos mais pobres. Assegurar o mínimo necessário para o povo poder se alimentar e ter um pouco de possibilidade de uma vida mais digna. Acho que as políticas sociais vão crescer daqui para a frente. E acredito que vamos enfrentar dificuldades econômicas. Fizeram despesas para lá da conta no governo Jair Bolsonaro, e agora também na transição. Isso tem de ser equilibrado mediante políticas fiscais. Mas o Brasil tem enormes potencialidades.

Como avalia os quatro anos do governo Bolsonaro? Foi uma gestão econômica prudencial, no sentido de não abrir demais os cofres, salvo agora durante o período eleitoral. O Brasil foi bem economicamente, claro que teve uma pandemia, um período difícil. Em outras ele deixou muito a desejar, sobretudo na área da saúde. Na pandemia, Bolsonaro demorou para tomar decisões importantes, a população estava prostrada. Depois as decisões foram tomadas, e a situação melhorou. Na cultura, educação e nas áreas social e de meio ambiente ele também deixou muito a desejar.

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Recentemente, o senhor criticou quem fala que “a igreja me representa” ou “não me representa”. Ela não defende bandeiras de ninguém, é isso? Eu quis dizer, e talvez não tenha sido compreendido, que a igreja não é instituição de representação. Ninguém escolheu a igreja para ser representado por ela. Ela é uma instituição de adesão de fé, de valores, e portanto nós é que pertencemos à igreja. Estamos unidos a ela por uma graça que supera de muito longe aquilo que possamos escolher como motivo de pertença. A igreja é nossa família, nossa casa, nossa mãe, tem a mensagem, a palavra. Nesse sentido é um disparate dizer que a igreja não nos representa.

O senhor já postou nas redes sociais sobre a necessidade de “deixar o mundo de delírios, ouvir e caminhar com os pés no chão da realidade”. A mensagem foi para o pessoal que pede intervenção militar e contesta o resultado da eleição? Quis falar às pessoas que me cobravam por não me posicionar politicamente em favor ou contra um candidato. Essa cobrança veio muito forte, mas tenho por princípio, como clérigo e representante de uma comunidade da igreja, a missão de unir, não de criar divisões. Entendo que o povo tenha, e é legítimo ter, adesões a partidos. Mas quem é pastor da igreja, como eu, tem de manter a comunidade unida e não fazer opção partidária. Certas cobranças e certas fantasias de dizer que as urnas foram fraudadas ou que o presidente eleito não poderia tomar posse me parecem fora da realidade depois que houve a aferição da idoneidade do processo eleitoral.

Por falar em redes sociais, já pensou em deixar esse ambiente? Estou no Twitter desde 2008, com o propósito de postar passagens da palavra de Deus. É o que tenho feito, mas ocasionalmente há um motivo ou outro para entrar em uma discussão e tenho consciência de que, ao fazer isso, estou sujeito a respostas de todo tipo, até insultos. Não me assusta que haja reações, mas me impressiona o modo como são proferidas, sem levar em conta o histórico da pessoa. Eu penso que, mesmo assim, vale a pena estar em uma mídia aberta para sentir o que as pessoas pensam e como reagem. E eventualmente tirar lições de como devemos tratar as questões e onde estão os problemas.

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Vemos uma exploração cada vez maior da fé na política. Esta última eleição teve até o padre ortodoxo Kelmon Luís disputando a Presidência da República. O que acha disso? As escolhas políticas têm de ser tratadas nos níveis políticos. Isso não quer dizer que nossas escolhas religiosas não tenham consequências políticas. Elas têm, claro. A Igreja Católica tem essa opção de não fazer escolha partidária ou de candidato, e talvez no momento isso esteja sendo mal compreendido. Igreja é povo, não é governo ou contra o governo. Não é de ideologia A ou B. E, portanto, os pastores do povo não podem fazer opção, colocando parte dessa sociedade contra si.

Quantos padres que declararam voto na eleição o senhor puniu? Não houve caso de punição. O que houve foram chamados para uma conversa.

Quantos casos? Uns três ou quatro. E tudo se resolveu.

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Temas como aborto, assim como casamento de pessoas do mesmo sexo, surgem sempre em períodos eleitorais. Esses assuntos, que são caros à igreja, sempre ganham conotações políticas. É porque dão voto? Essas são questões de convivência, que afetam valores compartilhados e, portanto, têm mais implicação política. Discutir isso eu acho legítimo. É claro que se explora isso de maneira desmedida, todo um discurso de campanha fica em cima disso. Veja o caso do aborto ou de outras questões de costume. Esquecem de outros assuntos, como justiça social, economia, violência, falta de acesso ao trabalho, que ficam na sombra. Dá-se valor excessivamente grande à discussão de temas muitas vezes fora de foco. Discutem-se questões que nem são atribuição do presidente, mas do Parlamento.

“Entendo que o povo tenha adesões a partidos. E é legítimo ter. Mas quem assume o papel de pastor da igreja, como eu, tem de manter a comunidade unida e não fazer opção partidária”

O senhor afastou um padre de São Paulo que abençoou uma cerimônia com casais homossexuais. Ele diz não ter feito casamento, mas que apenas deu a bênção. Qual foi o entendimento da arquidiocese? Ele participou de uma cerimônia, do ponto de vista da Igreja, totalmente irregular. E não foi só pelo fato de haver casais de pessoas do mesmo sexo. O padre, para fazer casamentos em outras dioceses, tem de ter autorização da diocese ou do pároco local. Tem de ter processo regular encaminhado para ver se as pessoas estão em condição de se casar. Ele diz que foi apenas uma bênção, mas entendemos que foi uma simulação de casamento, o que é um delito canônico de grandes consequências. Também pode se caracterizar como um ato de enganar as pessoas, pois elas estavam lá para se casar, não para receber uma bênção.

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Como cardeal, o senhor fala com frequência com o papa Francisco? Participo das reuniões quando sou convidado a ir a Roma. Normalmente são reuniões de assessoramento ao papa. Ao final, há o encontro em conjunto com ele. Raramente há reuniões pessoais. São geralmente visitas de ofício.

Ele disse em 2022 que pode renunciar por causa da saúde. Isso pode de fato ocorrer? O papa é muito realista. Quando não tiver condições físicas, ele saberá tomar as decisões que tiver de tomar. No momento, ele está bem. Tem problemas no joelho, certa dificuldade de locomoção, mas de resto está muito bem. Como ele mesmo disse certa vez, o papa não governa com o joelho, mas com a cabeça.

Ainda veremos um papa brasileiro? Somos um grande país, temos muitos bispos, quem sabe saia daqui um papa. A Igreja é muito universalizada. Houve um tempo em que ela estava muito centrada na Itália, depois na Europa como um todo, na América do Norte, e hoje está globalmente presente. Como temos um papa latino-americano, não creio que tenhamos um papa da região tão proximamente.

A última pergunta seria se o senhor poderia ser o próximo papa… Não (risos). Ninguém faz campanha para ser papa. Antes de entrar em um conclave, os cardeais se reúnem e fazem suas reflexões. E depois vai se definindo o perfil do próximo papa. No conclave não tem mais conversa, não tem mais discurso. Reza-se e vota-se até sair a fumaça branca.

Publicado em VEJA de 11 de janeiro de 2023, edição nº 2823

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