Filha de indianos que imigraram para a África, nascida na Inglaterra e criada nos Estados Unidos, a executiva Bela Bajaria exibe as credenciais globalizadas perfeitas para o cargo que ocupa: desde janeiro de 2023, ela é a chefona de conteúdo mundial da Netflix. Bela dá a palavra final sobre o destino do maior orçamento para novas produções em Hollywood, de 17 bilhões de dólares só em 2024. Aos 54 anos e considerada uma das mentes mais inovadoras do entretenimento atual, ela gerencia uma fábrica de filmes, de séries e de outros gêneros espalhada por dezenas de países. Na semana passada, Bela veio ao Brasil para divulgar a minissérie Senna e falou com exclusividade a VEJA sobre planos da Netflix para o país e a América Latina. Na conversa, contou também como a plataforma superou a crise — e expôs curiosidades pessoais, como a paixão por futebol e seu passado de Miss Índia.
A senhora veio ao Brasil só para promover a estreia de Senna. Por que a Netflix apostou tão alto na minissérie? Bem, o Senna é um ícone global do esporte e tem uma história emblemática. Para nós, foi algo a que dedicamos muitos anos, para garantir que tudo fosse feito com o cuidado adequado e atenção aos detalhes. Recriar as corridas desse ícone adorado e os diferentes períodos de tempo da trama requereu uma produção ambiciosa. E o resultado tem tudo isso: a série é ousada, emocionante, inspiradora — e a ação nas pistas é de tirar o fôlego. Agora, o mais importante é: será que as pessoas vão amá-la? Acreditamos desde o início que a história de Senna iria se conectar com as pessoas, se a contássemos bem.
Essa expectativa diz respeito ao público brasileiro ou global? Eu diria que, primeiro e principalmente, a Netflix quer que os brasileiros gostem de Senna. Porque eu acredito que, se os brasileiros amarem, o resto do mundo também vai adorar, porque sentirão a emoção e a autenticidade da produção. Lançamos nossos programas para todos os nossos assinantes globalmente, mas cientes de que o teste mais decisivo é quando as pessoas do país de origem daquela história se identificam com o que veem na tela. Esse é o segredo para que obras específicas de certa cultura ressoem com os espectadores ao redor do mundo. O sucesso de Senna tem de começar com a conquista dos brasileiros, isso é crucial.
Além da aprovação em seu próprio país, quais qualidades uma produção local tem de ter para virar hit global na Netflix? A coisa mais interessante é que não há fórmula pronta. Não tem nada que você diga: “Se fizer isso, vai ser um estouro”. Por exemplo, Pedaço de Mim é uma história tão brasileira, mas pegou as pessoas de muitos países por ser um melodrama potente. O mesmo vale para La Casa de Papel, da Espanha, Round 6, da Coreia do Sul, ou ainda a francesa Lupin. São programas que falam de elementos culturais bem específicos de seus países de origem, mas foram capazes de despertar a curiosidade da audiência em realidades distantes. No meu ponto de vista, quando você tenta fazer um filme ou série para todo mundo, acaba fazendo para ninguém. É muito amplo e diluído tentar fazer uma produção global sob encomenda. Você perde o verdadeiro charme da narrativa, a voz única que vem de uma cultura.
“Ao fazer Senna, queríamos que as pessoas no Brasil aprendessem a trabalhar em uma produção desse porte. Com sorte, elas vão passar o conhecimento adiante e fazer o mercado crescer”
Na posição de quem controla o maior orçamento para investir em conteúdo em Hollywood, o que é essencial para uma história se tornar sucesso na Netflix? A chave do negócio é entender que os 280 milhões de assinantes têm gostos diferentes e cultuam uma infinidade de gêneros. Nosso público adora, sobretudo, ser surpreendido. O portfólio brasileiro é um exemplo: vai da alta velocidade de Senna a um reality como Casamento às Cegas. Tudo começa com um produtor ou autor que tem uma grande ideia, e sentirmos que ali reside algo especial, capaz de galvanizar o público. A partir daí, a Netflix está aberta a experimentar o formato que seja mais adequado para aquele produto, não importa quantos episódios sejam necessários. Existe muita flexibilidade criativa na Netflix.
Ao mesmo tempo que está lançando Senna, a plataforma aposta em outras atrações da América Latina, como a adaptação de Cem Anos de Solidão, do colombiano Gabriel García Márquez. A dramaturgia latina empolga a Netflix? Sim, eu diria que é muito importante. Há contadores de histórias incríveis na América Latina, seja na direção ou na criação. Com essa conjunção de bons contadores de histórias e um público ávido para maratonar nossas produções, a América Latina sempre será estratégica. Estamos há dez anos no Brasil e não paramos de produzir. Tome-se, de novo, o exemplo de Senna: filmamos em quatro países diferentes, com uma equipe de cerca de 3 000 pessoas de oito nacionalidades — mas todos os chefes de departamento eram brasileiros. Isso foi essencial, porque queríamos que as pessoas do Brasil pudessem aprender como trabalhar em uma produção desse porte. Com sorte, elas vão levar esse conhecimento para casa e passá-lo adiante, o que vai gerar mais crescimento do mercado local.
No caso brasileiro, quais são os planos futuros da Netflix? Bem, o Brasil tem sido uma parte central do nosso trabalho e, se você olhar para 2024, acho que será nosso maior ano até agora. Continuamos a encontrar novas histórias e trabalhamos com mais de oitenta produtoras. Temos muitos projetos em andamento, como a segunda temporada de DNA do Crime e um documentário sobre o Vinicius Junior — que eu pessoalmente adoro, pois sou fã do Real Madrid. Já vi algumas partes e está incrível, muito poderoso.
Como é o gosto do brasileiro, em comparação a assinantes de outros países? O Brasil é um mercado imenso e o que nos chama atenção é que as pessoas consomem muitas horas de conteúdo, tanto local quanto estrangeiro. O que eu adoro sobre o público brasileiro é que vocês curtem de tudo. Quando o programa é bom, a audiência do país o devora e compartilha com paixão.
Neste ano, a Netflix comemora o crescimento do número de usuários e dos lucros após uma crise que reduziu investimentos e provocou mudanças na política de assinaturas. Como a empresa deu a volta por cima? Para nós, a saída sempre foi uma questão de focar na vocação da Netflix: criar grandes filmes e séries e garantir que nossos assinantes fiquem satisfeitos. Quando conseguimos criar conteúdo a que as pessoas não conseguem parar de assistir, de que querem falar a respeito, isso nos traz de volta aos trilhos. Mesmo na crise, eu sabia que tínhamos um portfólio incrível e novos títulos que iam conquistar a audiência. Claro, o streaming é um negócio difícil e, como eu sempre digo, meu trabalho não é fácil: precisamos o tempo todo fazer filmes e séries que as pessoas ao redor do mundo aprovem.
Em nenhum momento a crise assustou? Foi um período desafiador, mas nunca achei que seria uma turbulência impossível de superar. Havia muito barulho na mídia, palpites aqui e ali, mas a equipe ao redor do mundo sabia o que precisava ser feito: voltar ao básico e trabalhar com os melhores criadores. A lição é que a Netflix realmente tem de focar no essencial, que é fazer filmes e séries irresistíveis.
No momento em que a Globo vive uma fuga de audiência em seus folhetins, a Netflix foi bem-sucedida com seu próprio melodrama à brasileira, Pedaço de Mim. Como a empresa vê o futuro das novelas? Não só no Brasil, mas em todo o mundo, elas são e continuarão sendo um gênero fundamental. Novelas são desafiadoras de escrever, porque você precisa ter muitas subtramas e reviravoltas. Mas pessoas de diferentes nacionalidades as apreciam e elas permanecem sendo um ótimo investimento. Não imagino que as novelas possam desaparecer. A questão é: existem novas abordagens para elas? Há outros tipos de personagens e estrelas que devam ser incorporados ao gênero? Ou uma nova lógica de tamanho e duração dos capítulos? O que é realmente importante é ser criativo, não fazer sempre a mesma novela, repetitiva. Pedaço de Mim ficou seis semanas consecutivas no nosso Top 10 de títulos em língua não inglesa e trouxe uma base internacional de fãs para a querida Juliana Paes. Para nós, foi um fenômeno muito relevante.
A Netflix planeja, então, produzir mais novelas brasileiras? Sim, com certeza. Acho que nós sabíamos que o público se engajaria e foi muito intencional da nossa parte, porque esse era um gênero que ainda não tínhamos feito e queríamos muito encontrar a história certa. Agora, estamos empolgados. É certo que faremos outras.
“A crise foi desafiadora, mas sabíamos o que precisava ser feito: voltar ao básico, que é fazer filmes e séries irresistíveis. A lição é que a Netflix realmente tem de focar no essencial”
Uma das marcas da sua gestão é a aposta da Netflix na transmissão de eventos ao vivo, especialmente lutas e outros esportes. O filão deve crescer? Olha, para mim, novamente, falamos aqui sobre oportunidades de oferecer mais opções para os estratos tão diversos do nosso público. Esse caráter multifacetado nos dá uma vantagem, não? Podemos fazer os torneios de luta da WWE, que vai estrear em janeiro, ou o desafio de Mike Tyson e Jake Paul. Teremos jogos da NFL no Natal. Eventos assim geram um diálogo com os fãs e o público em geral.
A Netflix cogita entrar pesado no negócio das transmissões de futebol? Essa é uma pergunta interessante. Sabemos que o público adora esportes. Eu, pessoalmente, me amarro muito em futebol — ainda que, quando fiz parte de um time, não tenha sido uma grande jogadora. Mas, sim, estamos conscientes de que o futebol é uma paixão mundial. A questão é: o negócio precisa compensar dentro do modelo da Netflix e, às vezes, as negociações financeiras para esses tipos de contrato não são viáveis, porque são caros a curto prazo, e as renovações podem ser complicadas. Então, gostaríamos de fazer mais, mas nem sempre é possível.
É verdade que a senhora já entrou em campo para convencer estrelas de Hollywood a participar de projetos da Netflix? Sim. Se é um projeto interessante, tento convencer os talentos de que vale a pena vir para a Netflix. Mas normalmente só faço isso quando sinto que a pessoa está considerando o convite, ou se um projeto está em análise e precisamos convencer alguém a embarcar para que se concretize.
Décadas antes de virar executiva, a senhora foi Miss Índia. Como isso aconteceu na sua vida? Isso foi há mais de trinta anos, mas foi uma coisa muito curiosa na minha vida. Eu me sinto muito conectada com minhas raízes, mas, quando você é indiana crescendo na América, fica dividida entre duas culturas. Quando participei do Miss Índia, acho que foi uma tentativa de abraçar minha identidade e de ser indiana de fato. Foi como se eu tivesse descoberto meu superpoder.
Publicado em VEJA de 29 de novembro de 2024, edição nº 2921