Em Paris, no início dos anos 2000, Steve Jobs e Jonathan Ive, o inglês responsável pelo desenho dos produtos da Apple, entraram numa loja de utensílios de cozinha atraídos pela beleza das peças. Ive pegou uma faca que chamara sua atenção, mas, decepcionado, a pôs de volta no mostruário. Jobs fez o mesmo movimento. “Ambos notamos que havia um restinho de cola entre o cabo e a lâmina”, relembraria Ive. “Steve e eu damos importância a coisas desse tipo, que destroem a pureza e maculam a essência de um produto.” Na criação do Watch, Ive seguiu à risca aquele comportamento intuitivo que os fez rechaçar a faca mal-acabada.
A dupla começou a trabalhar junto na Apple em meados dos anos 90, logo depois de um período de pobreza estética. Jobs tinha retornado ao comando da empresa e, impressionado com a inteligência criativa de Ive, decidiu torná-lo seu parceiro habitual. Nas palavras de Philip Schiller, vice-presidente de marketing da Apple: “Antes de Steve voltar, os engenheiros diziam ‘Aqui estão as vísceras’ – processador, disco rígido -, e os designers davam um jeito de enfiá-las num gabinete. Os produtos ficavam horríveis”.
O tempo da feiura terminou com uma convicção defendida sem concessões por Ive: “É preciso entender profundamente a essência de um produto para podermos nos livrar das partes não essenciais”. Soava como música para Jobs. Aos 48 anos, esse inglês atarracado, de sotaque britânico forte e peito estufado (herança do tempo como jogador de rúgbi na escola), francamente não parece ter sido desenhado pela Apple. É um personagem que não combina muito com a vasta obra. Depois de colecionar em sua trajetória a criação de iPods, iPhones e iPads, peças de raríssimos botões, delgadas, ele hoje é a estrela da empresa mais inovadora do mundo. O Watch, de curvas suaves, botões minimalistas, retangular – “O modo mais apropriado de ver listas do que quer que seja, de telefones, de nomes, de atividades, de músicas, e não em algo circular”, resume Ive -, talvez seja sua obra-prima. É, ao menos, o primeiro grande produto sem a sombra de Jobs, com quem dividia o gosto pelo evangelho do designer industrial alemão Dieter Rams, da empresa eletrônica Braun: “Menos, mas melhor”, atalho para o perfeito casamento entre forma e função, dilema vivíssimo na arquitetura.
O Watch não é um acidente na vida de Ive. Seu pai era um hábil joalheiro que, no Natal, costumava presentear o filho com uma visita a sua oficina e amplo direito a mexer nas ferramentas todas. Matriculado na Politécnica de Newcastle, Ive logo se interessou também pela engenharia dos produtos e rapidamente passou a conhecer com profundidade os materiais, até que ponto curvá-los, a que temperatura aquecem demasiadamente.
Ive trabalha com dezenove designers, em um estúdio na sede da Apple, em Cupertino. Seu braço-direito é o australiano Marc Newson, que ficou multimilionário desenhando aeronaves, relógios, roupas e móveis antes da Apple. A maior característica de liderança do inglês é justamente convencer mentes incríveis, e que costumam não estar nem aí para o salário, a integrar seu time. Ive explica com delicadeza essa capacidade de atração: “Corro o risco de soar sentimental, mas acredito termos na Apple a sensação de estar realmente fazendo algo pela humanidade. Algumas pessoas podem acreditar que é uma crença estúpida, mas nosso objetivo é transformar a cultura”. Não é preciso muito esforço para saber de quem ele emprestou tanta certeza e ambição. Dizia Jobs, a respeito de Ive: “A diferença que Jony fez, não só na Apple, mas no mundo, é imensa. Se tive um parceiro espiritual na Apple, foi Jony”.
Esse texto faz parte da reportagem “O pulso da Apple”, sobre o lançamento do Apple Watch. Para ler a continuação dessa reportagem compre a edição desta semana de VEJA no tablet, no iPhone ou nas bancas. Tenha acesso a todas as edições de VEJA Digital por 1 mês grátis no iba clube.
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