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Dinheiro público para quê?

Músicos, escritores e outros criadores já recorrem ao crowdfunding, ou financiamento coletivo da internet, para dar vida a seus projetos. O mecanismo coloca em xeque as deformadoras leis de fomento da área de cultura

Por Paula Reverbel
5 ago 2011, 22h58

Hit recente do YouTube, a iniciante Banda Mais Bonita da Cidade, de Curitiba, se prepara para gravar seu primeiro CD, com onze canções. Para levar a produção a cabo, arrecadou, exclusivamente na internet, 52.000 reais, utilizando-se de um mecanismo que ganha força na rede: o crowdfunding – ou financiamento coletivo. Pelo sistema, projetos de áreas tão diversas como artes, jornalismo ou tecnologia são apresentados a sites especializados, que selecionam os melhores e os expõem à avaliação popular: quem gosta da ideia, coloca dinheiro nela, investindo quantias que podem variar de 1 a dezenas de milhares de reais. Se a arrecadação on-line não atingir o montante necessário à realização do projeto, todo o dinheiro é devolvido aos apoiadores, como são conhecidos os mecenas do universo virtual. “O crowdfunding é mais um passo na evolução dos serviços baseados em colaboração na rede. De fato, o modelo vem se tornando uma realidade também no Brasil”, diz Eric Messa, coordenador do curso de extensão em mídias sociais da Faap.

O financiamento coletivo é um feito somente possível graças aos vários níveis de conexão que a internet permite. Esses elos virtuais põem em contato velhos amigos e também pessoas que nunca se viram, mas que compartilham interesses à distância. O feito do crowdfunding torna-se ainda mais relevante por concretizar – de forma transparente, voluntária e sem distribuição de benesses públicas – o financiamento de projetos culturais. Pode-se gostar ou não da Banda Mais Bonita da Cidade, do figurino “bicho-grilo tardio” de seus músicos e dos versos meio românticos, meio naïfs de sua canção mais famosa, Oração (Coração não é tão simples quanto pensa / Nele cabe o que não cabe na despensa / Cabe o meu amor / Cabem três vidas inteiras / Cabe uma penteadeira). Mas a forma pela qual a banda resolveu financiar seu CD, sem recorrer às leis de incentivo fiscal vigentes no Brasil, é louvável e pode prenunciar uma mudança saudável. A razão é simples: quem gostou do projeto da Banda, pagou para vê-lo tornar-se realidade; quem não gostou, não foi obrigado a financiá-lo por meio de impostos.

Histórias bem-sucedidas como a da Banda servem (ou deveriam servir) de lição para medalhões do cinema e da MPB, por exemplo, acostumados, no sentido ruim da palavra, a concretizar suas ideias com dinheiro alheio. Criada na década de 1990, a Lei Rouanet, principal mecanismo legal de financiamento público de cultura, pretendia fomentar produtos que, de outra forma, não se viabilizariam. Tornou-se uma muleta para produtores culturais preguiçosos. Viciou o segmento com duas distorções. Em primeiro lugar, confere unicamente ao estado o poder de decidir quais artistas e projetos terão ou não direito a receber a bênção pública – o processo fica a cargo das engrenagens do Ministério da Cultura (MinC). Em segundo, autoriza empresas a transferir para os bolsos dos produtores eleitos dinheiro que seria recolhido aos cofres públicos na forma de impostos – que, de outra forma, poderiam ser transformados em escolas, hospitais, estradas… Continue a ler a reportagem

Um exemplo recente ilustra o grau da distorção. No início do ano, a cantora Maria Bethânia obteve junto ao MinC autorização para captar 1,35 milhão de reais. O objetivo: colocar no ar o blog O Mundo Precisa de Poesia, com 365 vídeos em que a baiana declamaria poemas. É possível que o mundo precise de mais poesia. Mas Bethânia poderia ter atendido à demanda usando seu prestígio de cantora nacionalmente reconhecida para colher no mercado, junto a seus fãs, o montante para dar corpo a sua ideia. Não o fez. Agora, um punhado de empresários deverá fazer a caridade com o chapéu alheio – ou seja, com dinheiro de impostos. Pode-se argumentar que o projeto da baiana precisa de muito mais dinheiro do que o da Banda Mais Bonita da Cidade. É verdade. Mas não se pode esquecer de que Bethânia é infinitamente mais conhecida do que o grupo curitibano, o que lhe rende mais atenção, admiradores e, quiçá, apoiadores.

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“No Brasil as pessoas não estão acostumadas a trabalhar com arte e pensar em negócios ao mesmo tempo. Mas isso começa a mudar agora”, diz Diego Reeberg, fundador do site Catarse, serviço pelo qual a Banda Mais Bonita da Cidade arrecadou os 52.000 reais para o CD de estreia. No ar desde janeiro, o site já recebeu pouco mais de mil projetos, que só são exibidos depois de avaliação. Eles devem ter escopo definido e oferecer algum tipo de retorno ao público – é possível financiar uma viagem de volta ao mundo, desde que o tour renda, por exemplo, um relato aos interessados no assunto. Projetos de caridade não são aceitos. “Para promover seus projetos, e atrair recursos, cabe aos autores alimentar sua rede de contatos. Caso contrário, não conseguirão financiamento”, diz Reeberg.

Cerca de 120 propostas já foram aprovadas pelos administradores do Catarse: 54 conseguiram amealhar as quantias necessárias à sua realização, quarenta estão a caminho e outros 26 não caíram nas graças do público – num processo de “seleção natural”, foram engavetados. O investimento dos apoiadores é feito por meio de transferências eletrônicas de valores, por mecanismos como PayPal ou MoIP – o Catarse fica com 5% do arrecadado. Pela página do serviço, é possível acompanhar, centavo a centavo, a evolução das doações frente à meta pretendida. Caso o objetivo não seja atingido, o valor investido por cada patrocinador é integralmente devolvido. Em média, o site recebe diariamente 3.500 visitantes virtuais, mas a presença de “estrelas” como a Banda Mais Bonita da Cidade pode elevar a cifra a 12.000. A presença de Maria Bethânia ali seria um bom teste para a popularidade do serviço – e também da cantora.

O Catarse foi inspirado no similar americano Kickstarter, maior site de crowdfunding do mundo, lançado em abril de 2009. De acordo com Mark Nowotarski, especialista que analisou o negócio, desde sua criação, a ferramenta já permitiu que 7.500 projetos atraíssem 40 milhões de dólares. Os dez maiores abocanharam cerca de 10% do total. A campeã até o momento é a ideia do designer Scott Wilson: uma pulseira em que o iPod Nano, MP3 player da Apple, pode ser fixado. Wilson levantou 940.000 dólares, 62 vezes a quantia necessária. A título de curiosidade: é quase o dobro do valor que o americano Peter Thiel investiu no nascente Facebook, em 2004, episódio retratado no filme A Rede Social.

“O que acontece aqui se situa em algum ponto entre o patrocínio e o comércio”, afirma Justin Kazmark, membro da equipe de comunicação do Kickstarter. “Há sempre uma troca de valor entre apoiadores e autores do projeto. O financiamento vem em troca de recompensas criativas e experiências únicas.” No caso da inventiva pulseira de Wilson, quem investiu na ideia recebeu primeiro o produto, assim que ele se mostrou viável. Continue a ler a reportagem

A arrecadação financeira não é o único mecanismo a viabilizar sonhos e negócios. Quem já passou da fase de projeto, pode divulgar o produto de sua criatividade em formato digital com a ajuda de ferramentas como o PagSocial, versão nacional do Pay with a Tweet, em inglês. Pelo serviço, autores de livros, músicas e vídeos, entre outras criações digitais, oferecem suas obras para download em troca de divulgação: para baixá-la, os interessados devem replicar, em seus perfis em redes sociais, uma mensagem que propagandeie o arquivo cedido.

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No ar desde maio, o PagSocial já hospeda quase 300 links, referentes a 300 obras prontas para download. Há um pouco de tudo ali, até uma revista em esperanto. Mais de 8.600 arquivos já foram baixados, mediante “pagamentos” (mensagens de divulgação reproduzidas) via Facebook (54% do total), Twitter e o Orkut (23% cada) – no Pay with a Tweet, já foram feitos mais de 400.000 downloads. O mecanismo vem a calhar quando a meta é conquistar visibilidade em lugar de dinheiro. É o caso de Gustavo André de Freitas, autor do e-book Como Transformar Seu Blogspot em Um Blog Profissional, baixado mais de 1.600 vezes.

O site Queremos desenvolve um outro mecanismo, interessante especialmente para músicos: o serviço atrai interessados em cotizar os custos de shows. Os primeiros ingressos são vendidos aos apoiadores por valores altos, com o objetivo de cobrir os custos do evento. Se o número de bilhetes vendidos for insuficiente, a atração não se realiza; se superar o valor de custo, o show acontece e os apoiadores são ressarcidos, pagando valores mais baixos. O sistema já foi testado com artistas e bandas como LCD Soundsystem, Miike Snow, Darwin Deez, Jamie Lidell, Miami Horror e The National. “Organizadores tradicionais costumavam alegar, por exemplo, que um show do Miike Snow não encontraria público no Rio, não sendo lucrativo. Nós, contudo, provamos que há público para isso”, diz Bruno Natal, um dos criadores do Queremos. De todos os shows realizados, o mais ambicioso até agora foi o da banda LCD Soundsystem. Para colocar os americanos sobre um palco no Rio, eram necessários 160.000 reais, vendendo ingressos inicialmente a 200 reais. A iniciativa não só deu certo, mas a arrecadação chegou a tal valor que todos os apoiadores – aqueles que investiram primeiro no projeto e permitiram que ele se viabilizasse – foram reembolsados e assistiram ao show de graça. A banda só soube da história ao desembarcar na cidade. James Murphy, vocalista do conjunto, afirmou que estava comovido: “Toco em bandas desde os anos 80 e foi a primeira vez que fiz uma apresentação financiada coletivamente. Bandas deveriam se expor a esse tipo de experiência mais vezes. Foi um dos shows mais gratificantes da minha vida.”

Música, literatura, cinema. O crowdfunding assegura lugar para a dança também. O projeto Pulp Dance, de Porto Alegre, se dispôs a batalhar por 4.000 reais no Catarse. Em troca, ofereceria três apresentações de dança contemporânea inspirados em filmes do diretor Quentin Tarantino. Superou as expectativas, recolhendo quase 4.600 reais. É uma iniciativa tímida, é verdade, face a outras ideias grandiosas que circulam pela rede ou pelos corredores do MinC. Mas o mais importante é o que ele revela. “Nos últimos anos, os projetos de dança criaram uma relação de dependência com editais públicos, que financiam espetáculos. A tal ponto que companhias mais profissionais de Porto Alegre dependem integralmente deles: se não ganham um edital no ano, não produzem nada”, diz Juliana Vicari, diretora do Pulp Dance. “O mais importante do financiamento coletivo é que ele coloca a responsabilidade de promover a cultura sobre o cidadão, que passa a se envolver mais com o assunto.” É ele, o cidadão, quem decide o que deve ganhar os holofotes – e o quanto deve-se pagar por isso.

Advém daí outra ideia preciosa resgatada pelo financiamento coletivo: o risco. O oficio de artista, como, aliás, todos os demais, envolve riscos. A exemplo de Maria Bethânia, o ex-Titã Nando Reis obteve do MinC autorização para captar junto a empresas 1,14 milhão de reais. Em troca, promete fazer shows em dez cidades paulistas, com ingressos vendidos entre 15 e 30 reais. Legalmente, o músico tem o direito de pedir o benefício. Mas por que todos os contribuintes, a maioria dos quais não assistirá aos shows, devem bancar a turnê? O correto seria o ex-Titã por o pé na estrada, arriscando-se, cidade após cidade, a vender todos os ingressos ou, então, defrontar-se com a casa vazia. É o risco inerente à sua profissão.

Com reportagem de Rafael Sbarai e Renata Honorato

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