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O último nocaute de Eder Jofre

Os estudos do cérebro do lendário pugilista de 78 anos podem fornecer o argumento que faltava para tomar-se a decisão de que os profissionais do esporte passem a lutar com protetor de cabeça

Por Fábio Altman e Natalia Cuminale
7 jun 2014, 01h00

Em Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, o patriarca José Arcadio Buendía inventa um engenhoso método para compensar uma peste, sucedânea da insônia, que engole o povoa­do de Macondo e apaga a memória dos cidadãos. Com um pincel começa a marcar em etiquetas o nome e a utilidade de cada objeto. No pescoço de uma vaca, uma placa informa: “Esta é a vaca que deve ser ordenhada todas as manhãs para produzir leite e o leite deve ser fervido para poder ser misturado ao café”. E seguia a vida, com mais de 14 000 bilhetes e a euforia da reconquista das lembranças. Na Macondo particular de Eder Jofre, um quarto tão simples quanto bem arrumado, de 2 por 4 metros, na casa da filha, no bairro de Campo Limpo, Zona Sul de São Paulo, uma folha de papel A4 colada na porta do armário de madeira compensada avisa com letras femininas e carinho: “Eu, Eder Jofre, moro com a minha filha Andrea, o marido, Oliveira, e os filhos Lanika, Axel, Babi e Sidney. Moro aqui há nove meses. Quem cuida das minhas coisas são os meus filhos Marcel e Andrea. Estou morando aqui desde que minha esposa, Maria Aparecida Jofre (Cidinha), faleceu, em 10 de maio de 2013. Aqui sou lembrado dos meus remédios e compromissos. Pela manhã, após o café, tenho que me exercitar, desenhar e escrever. Depois do almoço descanso e desenho, com a mão esquerda. Depois do lanche me exercito e assisto TV. Depois do jantar volto a assistir TV até a hora de dormir”. É – ou deveria ser – leitura diária a caminho de jornadas árduas, de recuperação da consciência de quem é ou foi.

Eder Jofre é o maior pugilista brasileiro de todos os tempos, campeão mundial em duas categorias (galo e pena), reverenciado por especialistas em boxe de todo o mundo – a capa da edição número 500 da revista americana de referência para o esporte, The Ring, em outubro de 1963, tinha foto de Eder e a pergunta que pressupunha uma única resposta, incontornável: “O maior boxea­dor do mundo?”. Aos 78 anos, Eder foi à lona pela primeira vez na vida com a morte repentina da mulher, em maio do ano passado, de infarto. “Ela era a cabeça e meu pai, o corpo”, resume Andrea Jofre. Funcionaram perfeitamente nessa combinação durante os 52 anos de casamento. No relato dos filhos, Eder era um homem até 10 de maio do ano passado, virou outro a partir do dia 11. Parou de comer, chorava copiosamente. Enfraquecido, começou a apresentar episódios de confusão mental. Há pelo menos nove anos já dava sinais, silenciosamente enganadores, de perda de memória – a chave do carro que punha todos os dias no mesmo móvel e já não conseguia encontrar, os sinais vermelhos ultrapassados, o esquecimento das listas de compras de supermercado que não passavam de cinco itens, as diversas vezes que indagava “que dia é hoje?”. Mas nada comparado ao estado de prostração no qual mergulhou. A morte da mulher alterou o funcionamento do seu cérebro. Eder ficou grogue com o desequilíbrio dos neurotransmissores serotonina, dopamina e noradrenalina, responsáveis por sensações de satisfação e bem-estar.

Deprimido, foi internado na Santa Casa de São Paulo. Era incapaz de realizar mesmo as sinapses cerebrais básicas, quanto mais as que o fizeram famoso no auge da carreira de 81 lutas e apenas duas derrotas por pontos. Seu corpo jovem obedecia com exatidão às ordens emanadas do cérebro, uma sinfonia química e elétrica que fazia dele no ringue uma casamata de músculos contraídos de onde surgiam sem aviso punhos rápidos como o raio e duros como o aço. O cérebro do jovem lutador liberava cortisol no momento certo e na dose exata e o fazia contrair o abdômen, rearmar a guarda, recolher os punhos quando o adversário ainda estava avaliando o castigo que acabara de levar. Em Eder Jofre se combinaram admiravelmente a habilidade, a velocidade, a força, o sacrifício, o coração, a inteligência e os reflexos, qualidades que fazem do boxe, se não a única maneira civilizada de liberar a violência inata do homem, com certeza a forma esportiva mais pura de atender ao instinto de domínio sobre o outro. Eder encarnou a expressão máxima dessa arte. O Brasil sabe disso. O mundo reconhece. A tragédia é que o próprio Eder Jofre, aprisionado no porão de um cérebro que decai, não compreende mais as alturas que galgou.

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Nos vídeos a seguir, assista à entrevista de Eder Jofre concedida a VEJA.com em 2009:

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