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Ebola: como o vírus ‘burro’ se tornou uma epidemia

Apesar de ser grave e altamente mortal, o vírus é rudimentar e possui uma estrutura fácil de ser combatida. Infectologistas ouvidos pelo site de VEJA acreditam que aspectos sociais e culturais são os principais obstáculos a serem combatidos para vencer o maior surto da história

Por Rita Loiola Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 24 Maio 2016, 16h29 - Publicado em 11 out 2014, 17h23

O mundo enfrenta a pior epidemia de ebola da história. Até o momento, o caso suspeito do Brasil se soma aos 8 399 casos na Guiné, Libéria e Serra Leoa, com 4 033 mortes, de acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS). A doença, fatal em quase metade dos casos, é numericamente pior que a epidemia de 1976, quando o vírus foi descoberto.

Em setembro daquele ano, uma misteriosa doença atacou o norte do Zaire, hoje república Popular do Congo. As vítimas tinham febre, diarreias, vômitos seguidos de sangramento e, irremediavelmente, morriam. Desesperado com essa situação, um médico que tentava combater a enfermidade enviou em uma garrafa térmica amostras de sangue para o Instituto de Medicina Tropical em Antuérpia, na Bélgica. Ela chegou ao cientista belga Peter Piot que, analisando o sangue em um microscópio, encontrou um vírus desconhecido.

Ele tinha uma estrutura gigantesca para os padrões virais e lembrava um vírus chamado Marburg, descoberto em 1967. Na Alemanha, esse patógeno contaminou 31 pessoas que trabalhavam em laboratórios com macacos infectados da Uganda. Sete pessoas morreram de febre hemorrágica.

Sem ter ideia de como a contaminação do novo vírus acontecia, Piot viajou até a aldeia africana, onde centenas de mortes estavam sendo registradas. Analisou novas amostras sanguíneas e decidiu batizar a nova doença de ebola, mesmo nome do rio que passava pela região.

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Aos poucos, a equipe de cientistas descobriu que a transmissão se dava, principalmente, pelas injeções que mulheres grávidas recebiam com agulhas não esterilizadas. Os médicos também perceberam que muitas pessoas ficavam doentes após irem a funerais: o contato direto com os corpos repletos de vírus para a lavagem ou preparação dos mortos eram uma via importante de contaminação.

A primeira medida – até hoje a mais eficaz de combate ao vírus – foi o isolamento dos pacientes para interromper a transmissão. Assim, a epidemia, que infectou 318 pessoas e matou 280, foi debelada.

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Vírus “burro” – Junto ao surto da República Democrática do Congo, outro foco de ebola apareceu ao mesmo tempo, no Sudão, com 284 casos e 151 mortes. A partir das primeiras descrições do vírus e das constantes pesquisas acerca de suas características, os cientistas descobriram que o ebola é dividido em cinco gêneros, de acordo com cada região onde ele se desenvolve. Assim, o agente do surto inicial e da epidemia que hoje está causando preocupação em todo o mundo é o Zaire ebolavirus. Há também o gênero Sudan, que causou as mortes no Sudão; o Tai Forest, encontrado na Costa do Marfim; Bundibugyo, visto na Uganda, e Reston, descoberto nas Filipinas.

Todos eles pertencem à família Filoviridae, que inclui outros dois gêneros além do ebola: Marburgvirus (que causaram a doença na Alemanha) e Cuevavirus (descoberto em 2011 em infeções em morcegos).

Os cientistas acreditam que todos os gêneros e espécies do ebola se desenvolveram em morcegos que comem frutas e insetos. Esses animais seriam seu hospedeiro natural – ou seja, os seres vivos em que o vírus melhor se desenvolve.

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“Durante séculos o ebola deve ter ficado apenas entre os morcegos, infectando-os sem que eles desenvolvam a doença. Esse é o melhor cenário para os vírus, que conseguem sobreviver junto com seu hospedeiro. Quando ele chega a outros animais, como o homem, ele mata rapidamente, porque não está adaptado. Por isso, pode-se dizer que é um vírus ‘burro’: não consegue sobreviver por muito tempo no ser humano”, diz Alexandre Barbosa, professor de infectologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp – Botucatu).

Acredita-se que o vírus chegou até o homem por meio da ingestão da carne de macaco ou morcego – que faz parte dos hábitos culturais de algumas regiões africanas – ou pela mordida de bichos infectados.

É um mecanismo semelhante ao vírus da raiva, temido em todo o mundo até o século XIX, quando o infectologista francês Louis Pasteur (1822-1895) criou a vacina contra a doença. “Assim como o ebola, o vírus da raiva também infecta morcegos e é transmitido ao homem. E, quando chega até nós, costuma ser altamente letal: sem tratamento, mata em dias”, diz Barbosa.

Ação – Apesar de mortal, o ebola é um vírus muito rudimentar, que possui uma estrutura razoavelmente fácil de ser combatida. Como a maior parte dos vírus, ele entra no organismo e permanece em incubação, período em que se trava uma guerra do sistema imunológico contra o patógeno. Essa etapa pode durar de dois a 21 dias. Após esse momento, o agente ataca as células endoteliais, que revestem o interior dos vasos sanguíneos. É quando se manifestam os sintomas da doença: febre alta, dor de garganta e muscular, fraqueza e desconforto. E é também quando acontece o contágio: a moléstia é transmitida se qualquer fluido corporal (sangue, suor, saliva ou sêmen) entra em contato com mucosas ou feridas na pele.

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A partir daí, rapidamente, o vírus causa lesões nas células que, rompidas, levam às hemorragias características da doença. Náuseas, vômitos, dificuldades respiratórias e sangramento das mucosas (olhos, narinas, gengivas) são os sintomas mais comuns nessa etapa avançada.

Para combater ação do vírus, o organismo reage com uma infecção generalizada, que costuma atingir os órgãos vitais como fígado, rim, pulmão e coração, levando, em quase 50% dos casos, à falência múltipla dos órgãos e morte. Em geral, são apenas dez dias entre a manifestação dos sintomas e a morte.

Tratamento – Até hoje, o tratamento do ebola é o mesmo que o da década de 1970: isolamento, hidratação rigorosa e manutenção dos níveis de sais como potássio e sódio do organismo. Há tratamentos experimentais, como o soro ZMapp, desenvolvido por pesquisadores americanos e canadenses, que consiste em injetar anticorpos nos pacientes. A prevenção também ainda está em fase de testes – a OMS tem a previsão de que duas vacinas estarão no mercado até o início do ano que vem.

De acordo com Barbosa, mesmo causando uma doença tão grave, o ebola é incapaz de sofrer as mutações que impedem sua prevenção e tratamento, como é o caso do vírus da aids e da hepatite C. Por isso, a criação de vacinas ou tratamentos não serão grandes desafios científicos nos próximos meses.

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“O ebola não consegue criar subtipos virais que confundem os anticorpos e medicamentos. Ele permanece constante e, por isso, é muito factível que, em pouco tempo, tenhamos uma vacina e também um soro eficaz para combate-lo”, afirma o infectologista.

Causas sociais e culturais – De acordo com os especialistas em infectologia, a proporção que a epidemia tomou desde o início do ano tem a ver com a gravidade da doença, mas foram os aspectos culturais e sociais das regiões onde surgiu que potencializaram a explosão do número de casos.

O atual surto teve início em março, na Guiné e, em maio, se espalhou para Serra Leoa após um curandeiro infectado transitar entre os dois países. Profissionais de saúde que ajudam a tratar pacientes infectados estão entre as vítimas, como o médico que liderava o combate à doença na Libéria, morto no fim de julho. Dessa vez, o vírus conseguiu ultrapassar as áreas rurais e chegou às capitais, onda a densidade demográfica é mais alta. Isso tornou mais difícil isolar os pacientes e controlar a doença.

“Acredito que o que está acontecendo é uma perfeita tempestade: quando as condições individuais são um pouco piores que as normais e se combinam para criar um desastre. Com essa epidemia há muitos fatores desvantajosos desde o início. Muitos dos países envolvidos estavam saindo de guerras civis, sem médicos e com o sistema de saúde em colapso. Na Libéria, por exemplo, havia apenas 51 médicos em 2010 e muitos deles morreram de ebola desde então”, disse o cientista Peter Piot, em entrevista ao jornal britânico The Guardian.

Além das condições precárias dos países, crenças populares e falta de informação atrapalham o combate à moléstia. “Os aspectos sociais e culturais são dramáticos. Em algumas comunidades, existe o medo de levar o doente ao hospital – alguns acreditam que, como a maior parte chega ao hospital e morre, é a internação que causa a doença – e há também pessoas que se negam a tratar os doentes, com medo do contágio”, diz Marcelo Burattini, infectologista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “O ebola é uma doença grave que preocuparia grandes sistemas de saúde. Mas, quando ela ocorre em países tão pobres, com modelos de saúde precários, a contenção da doença torna-se muito difícil. E, atualmente, há o grande fluxo de viagens aéreas, que podem espalhar a doença para qualquer lugar do mundo.”

Segundo Burattini, em um ambiente hospitalar que siga as medidas adequadas contra a doença (proteção dos profissionais de saúde, isolamento dos pacientes e esterilização dos materiais), o risco de contaminação é mínimo. Com a capacitação dos profissionais de saúde para reconhecer e diagnosticar a moléstia, e o tratamento adequado, o ebola deixa de ser um vírus ameaçador. “O período crucial para o vírus é entre a manifestação dos sintomas e o diagnóstico. Se for bem diagnosticado, ele não se espalhará”, diz o infectologista.

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