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Dengue: por que é tão difícil exterminar a doença

O vírus hábil combinado a um mosquito urbano e oportunista até hoje dribla a ciência. Especialistas explicam por que a enfermidade ainda não conhece uma vacina ou como ela é capaz de infectar até 100 milhões de pessoas em todo o mundo, resistindo a inseticidas e repelentes

Por Rita Loiola Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 24 Maio 2016, 16h29 - Publicado em 12 abr 2015, 08h19

Em todo o mundo, os números da dengue se multiplicaram nos últimos 50 anos. A doença infecta 100 milhões de pessoas anualmente, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), em ciclos epidêmicos. Este ano, o Brasil viu seu número de casos triplicar. Eles aumentaram em todas as regiões: há 224 101 casos notificados, ante os 85 401 que surgiram entre janeiro e março de 2014. A Região Sudeste, especialmente São Paulo, é a líder. O estado contabiliza 585 casos por 100 000 habitantes, quase o dobro do patamar usado para caracterizar uma situação de epidemia, que é de 300 casos por 100 000 habitantes. Se os números continuarem crescendo em abril, mês historicamente preferido pela doença para fazer suas vítimas, 2015 tem tudo para ser o ano em que o Brasil verá uma epidemia histórica de dengue.

Desde que o vírus foi isolado pelo cientista polonês radicado nos Estados Unidos Albert Sabin, durante a II Guerra Mundial, ele dribla a ciência. Até hoje não há vacina e tratamento. O único método de combate é tentar matar o mosquito. Combate-se a dengue da mesma maneira que nos anos 1950. As armas contra a doença que pode levar à morte em sua forma grave são inseticidas, repelentes e a eliminação dos criadouros do Aedes aegypti, mosquito que carrega o vírus.

“Essa é não é uma doença de solução fácil. Há uma combinação entre um vírus hábil, um mosquito extremamente adaptado e estratégias públicas de combate e prevenção que não são constantes e, por isso, não funcionam”, explica o infectologista Celso Francisco Granato, chefe do laboratório de virologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Os elementos do atraso na erradicação da dengue incluem também aspectos sociais e culturais, além do baixo investimento em pesquisas. Enfrentando esses aspectos, os cientistas têm feito o que podem. Uma vacina para o vírus complexo deve surgir nos próximos anos e os pesquisadores estão criando mosquitos capazes de impedir o parasita de se multiplicar. Se conseguirem, vão derrubar um inimigo histórico, beneficiando cerca de 2,5 bilhões de pessoas, ou dois quintos da população mundial que, atualmente, vivem em áreas de transmissão da doença.

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Vírus viajante – A primeira menção a uma doença semelhante à dengue está em uma enciclopédia chinesa de 992. Os estudos indicam que o vírus se desenvolveu no Sudeste da Ásia e se espalhou pelo mundo nos séculos XVIII e XIX junto com os navios que transportavam produtos pelos oceanos. Tanto o vírus, que faz parte da família Flavivírus (o mesmo da febre amarela e da hepatite C), quanto os mosquitos que o carregam, o Aedes aegypti e o Aedes albopictus, chegaram a diversos países tropicais, causando grandes epidemias. O Aedes aegypti teve mais sorte que seu correspondente silvestre e conseguiu se adaptar com sucesso ao ambiente urbano. Novos surtos voltaram a aparecer com força após a II Guerra Mundial, quando as cidades cresceram exponencialmente e as viagens se tornaram mais comuns.

Nesse período foram registrados os primeiros casos de dengue grave, que causa hemorragia e pode levar à morte. Foi também o momento em que o vírus foi isolado por Sabin e começou a ser estudado. Descobriu-se que ele havia sofrido mutações durante seu desenvolvimento ao redor do globo e não era um, mas quatro. São os chamados quatro sorotipos, que vão de DEN-1 a DEN-4.

“Na época, achava-se que as grandes diferenças ocorriam entre os sorotipos. No entanto, com as pesquisas em biologia molecular, verificou-se que isso era uma gigantesca simplificação. A análise genética do vírus, por volta dos anos 1980, mostrou que, em cada sorotipo há vírus que são tão diferentes como o homem e o chimpanzé. A dengue é feita de muitos de vírus diferentes”, diz Granato.

Doença esperta – Além dessa imensa variação entre os genes da doença, outra característica incomum do vírus é sua capacidade de se tornar mais agressivo na segunda ou terceira infecções. Isso acontece porque ele consegue se ligar aos anticorpos do organismo e “enganar” o sistema imunológico. Uma pessoa que tem dengue pela primeira vez desenvolve células de defesa contra a doença. Se acontecer de ser picada pelo mosquito uma segunda vez, infectado por outro sorotipo, o novo vírus que entra no organismo consegue se colar aos anticorpos criados pela primeira infecção. Assim, o anticorpo funciona como um cavalo de Tróia, levando o vírus para dentro do sistema imune: a dupla entra com facilidade nas células imunológicas, que reconhecem o vírus como sendo uma célula de defesa. Desse modo, o parasita se multiplica rapidamente no organismo.

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De acordo com estimativas dos médicos, na primeira vez que alguém tem dengue, apenas três em cada 1 000 pessoas terão a forma grave. O número aumenta para três em cada 100 na segunda infecção e para seis em cada 100 na terceira. “Na quarta vez, há um risco de 10% de que a forma grave se desenvolva”, explica Granato. “Não estamos acostumados a lidar com um vírus assim. Não há nenhuma outra doença que tenha esse modo de ação.”

Parasita sem barreiras – É também por esse motivo que ainda não existe no mercado uma vacina que proteja contra a doença. Além de ser capaz de fazer o corpo humano desenvolver anticorpos contra os quatro sorotipos, a vacina também deve oferecer alta proteção. Do contrário, ao menos teoricamente, ela pode promover a incidência da forma grave. Afinal, o objetivo das vacinas é fazer com que o corpo produza anticorpos capazes de combater uma provável infecção. No caso da dengue, sua capacidade de fazer os anticorpos se ligarem ao vírus faz com que, se não houver anticorpos contra os quatro sorotipos, a probabilidade do desenvolvimento da forma grave, que pode levar à morte, seja multiplicada.

“Por isso, uma vacina aceitável contra a dengue deve ser, obrigatoriamente, tetravalente”, explica o infectologista Esper Kallás, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. “Ela não combate um, mas muitos vírus e esse é um dos motivos que dificultou o desenvolvimento das vacinas contra a doença até hoje.”

A criação de uma vacina atrasou, de acordo com os especialistas, porque a dengue carrega o estigma de ser doença de países pobres. Atingindo principalmente regiões tropicais, muito populosas e com saneamento e urbanização precárias, os investimentos em pesquisas de estratégias de combate demoraram a chegar.

Isso ajudou a incidência da doença a crescer. A grande adaptação do vírus e de seu mosquito levaram a dengue a chegar sem barreiras a lugares cada vez mais frios e mais altos. Um grande surto atingiu Cingapura, em 2004, e em 2013, chegou à Flórida, no Sul dos Estados Unidos, e à França. No ano passado, foi a vez do Japão, que não tinha casos recentes da doença.

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Vacinas promissoras – Com isso, nos últimos anos, diversas equipes de pesquisa, financiadas principalmente pelos governos americano e europeus, decidiram buscar uma solução para o problema. Kallás é um dos principais pesquisadores envolvidos nas pesquisas de uma vacina contra a dengue que está sendo desenvolvida pelo Instituto Butantã em parceria com o National Institutes of Health (NIH, na sigla em inglês).

Os primeiros resultados dos testes desse imunizante, em estudo há quase de dez anos, indicam uma alta capacidade de proteção, que vai de 85% a 90%, com uma única dose. Ainda são necessários os testes da fase III, que poderão comprovar essas conclusões em um grande número de pessoas acompanhadas por, no mínimo, um ano, mas a equipe de cientistas acredita que, a partir de 2017, ela pode ser uma boa opção para combater a doença.

Outra vacina promissora é a desenvolvida pelo laboratório Sanofi Pasteur, a mais avançada em todo o mundo. As pesquisas da fase III foram finalizadas e, de acordo com a empresa, o imunizante deve ser lançado entre o fim deste ano e o início de 2016. Ela protege contra a doença em 60,8% dos casos, evitando mais de 70% dos casos de dengue tipo 3 e 4, e menos de 50% das infecções por dengue tipo 1 e 2. De acordo com os estudos, ela é capaz de reduzir em até 80% o risco de hospitalização causada por complicações da dengue e diminui em 95% os casos graves da doença. Para oferecer a proteção completa, são necessárias três doses, com intervalo de seis meses entre elas.

“Ainda não temos nenhuma vacina que ofereça o número mágico de proteção de mais de 80% contra todos os subtipos. No entanto, um imunizante assim é altamente factível e é a forma mais eficaz de combate contra a doença. Se houver um investimento contínuo em pesquisa, ela poderá ser feita em um futuro próximo. O benefício de um projeto como esse, para todo o mundo, é imensurável”, diz Kallás.

Mosquito hábil – Para atingir a tantas pessoas, além de se multiplicar em vários sorotipos diferentes, o vírus da dengue também foi capaz de se adaptar tanto ao homem quando ao mosquito Aedes aegypti. Sua estratégia evolutiva permitiu que ele conseguisse sobreviver tanto em um mamífero quanto em um inseto – animais com biologias muito diversas. Mais que isso, a opção pelo Aedes se mostrou um sucesso para sua reprodução. Esse mosquito é extremamente adaptado aos ambientes urbanos. Ao longo dos séculos, suas fêmeas aprenderam a colocar ovos apenas em ambientes artificiais que retêm água, como calhas, caixas d’água ou pneus. Em ambientes silvestres, o Aedes aegypti não se reproduz. Ele jamais colocará seus ovos em poças d’água naturais.

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Além disso, seus ovos adquiriam uma resistência incomum, capazes de sobreviver por meses (mesmo sem água). Essa característica faz com que eles possam viajar, espalhando-se por diversas regiões sem sofrer grande impacto, e também resistam ao tempo. Os ovos de um ano conseguem eclodir no ano seguinte, colaborando para as epidemias. Por isso, os surtos de dengue costumam acontecem em intervalos. Os ovos colocados em um verão com pouca incidência da doença podem dar origem a diversos mosquitos que infectarão um grande número de pessoas na estação do ano seguinte.

A fêmea do Aedes aprendeu a não colocar todos os seus ovos em um só lugar. Ela os separa, garantindo assim, que alguma porção sobreviva, assim que a chuva vier. “Esse é um mosquito oportunista, que vai encontrar maneiras de se reproduzir mesmo em ambientes difíceis”, explica a bióloga Denise Valle, pesquisadora do Laboratório de Biologia Molecular de Flavivírus do Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. “Ele é capaz de ficar em casa, esperando a hora de você chegar, mesmo que seja à noite. E soube como, rapidamente, criar resistência aos inseticidas mais utilizados e aos repelentes, sobrevivendo a eles. Além disso, seu ciclo de vida é curto, de até dez dias, o que faz que sempre haja novas populações nascendo.”

A evolução ensinou também o Aedes a picar durante o dia, eliminando a concorrência de pernilongos ou borrachudos. Em qualquer hora do dia, um Aedes pode sugar o sangue humano e transmitir a dengue.

Controle tecnológico – Esse inseto astuto, que desenvolveu uma série de mecanismos evolutivos para sobreviver, tem escapado de todas as táticas de prevenção e controle da doença. As únicas estratégias de combate contra a dengue indicadas pela OMS são o uso de telas em janelas e portas, a supressão ou proteção de reservatórios de água que funcionam como criadouros e o uso de inseticidas. Até hoje, elas não erradicaram o mosquito, que vem se reproduzindo com velocidade alarmante ao redor do planeta.

“Os altos números da dengue mostram claramente que as estratégias de combate não estão funcionando. O mais absurdo é que permitimos a reprodução desse mosquito extremamente adaptado ao ambiente urbano e ao ser humano e difícil de combater. É como se estivéssemos criando Aedes no quintal”, diz o biólogo Paulo Ribolla, professor do Instituto de Biociências da Unesp de Botucatu e um dos maiores especialistas no mosquito no Brasil. “É loucura pensar que repelentes e inseticidas poderão combater esse mosquito. Por isso, o melhor é investir em acabar com os criadouros.”

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Nesse sentido, duas opções estão sendo testadas por pesquisadores. Uma delas veio da Austrália e está sendo desenvolvida pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no Rio de Janeiro. O programa de pesquisa internacional consiste em soltar mosquitos Aedes que contém a bactéria Wolbachia, que os impede de transmitir o vírus da dengue. Essa bactéria, que sobrevive no organismo da maior parte dos insetos, não existe naturalmente no Aedes e, de acordo com os cientistas, não causa nenhum efeito no corpo humano. No entanto, no organismo do Aedes, ela barra a infecção pela dengue. A ideia dos pesquisadores é substituir toda a população de mosquitos pelos insetos infectados – o que reduziria os casos de dengue.

Outra estratégia, que foi proposta para combater a dengue em São Paulo, é o uso de mosquitos transgênicos. Produzidos por empresas de biotecnologia, como a brasileira Moscamed ou a britânica Oxitec, esses mosquitos machos, ao copularem com as fêmeas, geram descendentes incapazes de chegar à idade adulta. Assim, eles não transmitiriam a doença. A proposta é que a quantidade de mosquitos seja reduzida nos locais onde esses machos são soltos. O único inconveniente é que, até isso aconteça, é preciso soltar muitos mosquitos no ambiente.

Essas estratégias buscam ludibriar o inseto e impedir que a dengue seja exterminada na base de mata-moscas e tampas de caixa d´água. “Não podemos lutar contra um mosquito e um vírus tão desafiadores com medidas simples e intermitentes. Eles aprenderam a estar conosco e são muito eficientes nisso. Por essa razão, a dengue só será erradicada com investimento em pesquisa e em programas sérios de saúde e educação pública, que envolvam todos os setores da sociedade. Sem isso, seremos obrigados a conviver com essa doença ainda por um longo tempo”, diz Ribolla.

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