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Relembre a entrevista de Elie Wiesel a VEJA

Elie Wiesel, Prêmio Nobel, morreu neste sábado aos 87 anos. Em entrevista a VEJA em 2009, o intelectual festejou o cancelamento da visita do presidente do Irã ao Brasil e disse que o mundo não pode esquecer as lições deixadas pelo holocausto do povo judeu

Por André Petry Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 2 jul 2016, 19h44

(Entrevista publicada na edição 2112 de VEJA, em 13/05/2009)

ACERVO VEJA: O discurso do ódio perdeu

Elie Wiesel tem 80 anos, 58 quilos e 1,73 metro de altura. É franzino. Diz estar cansado e sentir o peso da idade. Quando abre a boca, é um gigante que fala. Sobreviveu à prisão em dois campos de concentração nazistas. Perdeu a mãe e a irmã em Auschwitz. Viu o pai morrer em Buchenwald. Decidiu que sua missão seria não deixar morrer a verdade sobre o holocausto dos judeus. Escreveu cinquenta livros, tornou-se um humanista, um porta-voz da tolerância, e ganhou o Nobel da Paz em 1986. Há pouco, estava em Genebra, protestando contra a presença do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, na conferência sobre racismo da ONU. Passou por Nova York, onde mora (e onde perdeu todas as suas economias de meio século de trabalho, cerca de 13 milhões de dólares, pelas mãos do maior golpista de Wall Street, Bernie Madoff), e em seguida foi a Paris para dar mais uma palestra. Viajou feliz ao saber que Ahmadinejad cancelara sua visita ao Brasil. Antes de embarcar, falou a VEJA.

O cancelamento da visita do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, é um bom sinal? Sem dúvida. Seja qual for o motivo real do cancelamento da visita, é uma vitória da democracia e dos direitos humanos sobre o discurso do ódio. Ahmadinejad não merece visitar nenhuma sociedade civilizada, democrática. Como gesto político, o convite que o governo brasileiro lhe fez pode ter suas razões, mas é um grande erro do ponto de vista moral. Convidar alguém para ir a sua casa equivale a prestar-lhe uma homenagem, e Ahmadinejad simplesmente não merece ser homenageado.

Mesmo o Brasil mantendo relações diplomáticas regulares com o Irã e ele sendo o representante do povo iraniano? Até no mais alto nível da política e das relações internacionais há limites. Ahmadinejad foi além dos limites. Ele não só nega o holocausto judeu. Ele já disse que quer destruir o estado de Israel. Essa mensagem não pode ser aceita em lugar nenhum.

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A diplomacia brasileira diz que seria pior deixar Ahmadinejad isolado. Faz sentido? Só para quem não aprendeu com a história. Antes da II Guerra, os países democráticos achavam que seria pior isolar Hitler e selaram o Acordo de Munique (tratado de 1938 no qual a França e a Inglaterra, junto com a Itália, entregaram um pedaço da então Checoslováquia à Alemanha de Hitler, na ilusão de que a concessão evitaria a guerra). Como se sabe, foi um desastre. Essa abordagem, tanto naquela época como hoje, é um desastre moral, político e estratégico. Não comparo ninguém a Hitler, mas Ahmadinejad não merece confiança, fé política, respeito.

Por que ninguém protesta contra visitas do primeiro-ministro da China, que oprime o Tibete e viola os direitos humanos? Tenho repulsa pelo que a China faz com o Tibete, até por motivos de ordem pessoal, porque o Dalai-Lama é meu amigo querido. Acho que todos devem deplorar e criticar o comportamento da China, mas não é a mesma coisa. Ahmadinejad diz que Israel deve ser varrido da face da Terra. Ele ameaça a existência de outra nação. Ele foi longe demais. Mesmo no mal, deve-se levar em conta o grau, a intensidade.

O presidente Barack Obama propôs abrir um canal de diálogo com o Irã. Ele está errado? Tudo depende do nível dos contatos. Mesmo entre países que rompem relações diplomáticas, quase sempre há algum tipo de contato, ainda que em nível inferior. No caso dos Estados Unidos, certamente Obama não está pensando em convidar Ahmadinejad para visitar a Casa Branca.

Por que negar o holocausto tem de ser um crime e não um direito garantido pela liberdade de expressão?

Porque dói. Dói nos sobreviventes, nos seus filhos e nos filhos de seus filhos. Quem nega o holocausto, por causa da dor que inflige aos sobreviventes e seus descendentes, comete mais do que apenas um pecado. É uma crueldade, uma felonia. Mesmo assim, nem todos os países punem a negação do holocausto. Na Alemanha e na França, isso é crime. Nos Estados Unidos, não. Há o entendimento de que negar o holocausto é um direito assegurado pela Primeira Emenda da Constituição americana, a que garante a liberdade de expressão.

Está errado? Sou um grande admirador da Primeira Emenda, mas acho que ela deveria comportar uma exceção em relação ao holocausto. Não seria uma novidade, pois há exceções. A mais conhecida é a que considera a circunstância do “risco claro e imediato”, ilustrada pela hipótese de fogo no teatro. Se você está em um teatro lotado e começa a gritar “fogo, fogo”, sem que haja fogo algum, e seu grito leva as pessoas a correr em tumulto para a saída, resultando em feridos ou até mortos, você não terá proteção da Primeira Emenda. Ou seja, não poderá alegar que ao gritar “fogo, fogo” estava apenas se valendo de seu direito de expressão e poderá acabar na cadeia por ter produzido ferimentos ou mortes. Com base nisso, acho que negar o holocausto também deveria ser crime, porque também fere.

Por que as entidades judaicas nos Estados Unidos não vão à Suprema Corte com esse pleito? No início dos anos 80, quando eu presidia a Comissão sobre o Holocausto por indicação do presidente Jimmy Carter, havia manifestações de pessoas negando o holocausto. Reuni um grupo de grandes juristas para discutir o que fazer. Eu achava que deveríamos processar os mentirosos, não pela negação do holocausto em si, mas pelo sofrimento que causavam às vítimas. Todos os juristas me disseram: “Não, não faça isso. Não toque na Primeira Emenda”. Nos Estados Unidos é assim. A Constituição é um documento sagrado, tratado como uma bíblia moderna. Mesmo sem a exceção que eu defendo, acredito que a Primeira Emenda faz parte da grandeza americana.

Qual é a melhor punição para quem nega o holocausto? A memória. No plano legal, não sei qual é a punição mais adequada, porque não sou jurista. Mas sei que nossa memória, a memória dos sobreviventes e das suas testemunhas, é a melhor punição que pode haver.

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O senhor teme que essa memória desapareça em, digamos, 300 ou 500 anos, pela ação dos que negam o holocausto? Não. É um evento da história fartamente documentado. Há milhões de pedaços de todos os lados, das vítimas, dos criminosos, das testemunhas, das crianças que escreveram poemas, das mães que fizeram cartas, está tudo documentado. Além disso, acredito profundamente que quem escuta uma testemunha do holocausto torna-se também uma testemunha.

Quase 65 anos depois do fim da II Guerra, as lições do holocausto estão devidamente absorvidas? Tentamos entendê-las, mas precisamos prestar mais atenção. Há alguns anos fui convidado para falar na Assembleia da ONU e disse que, se o mundo tivesse aprendido as lições do holocausto, não teria havido tragédias como as do Camboja, da Bósnia, de Ruanda ou de Darfur.

O senhor ainda se arrepende de ter ajudado a popularizar a palavra holocausto para designar a matança de judeus na II Guerra? Sim, porque a palavra holocausto não é adequada para descrever o horror. Acho que não existe uma palavra adequada. Hoje, em vez de holocausto, prefiro usar apenas Auschwitz, nome do campo de concentração onde houve a maior matança de judeus. Auschwitz talvez seja a palavra que mais se aproxima do que queremos designar. Só Auschwitz.

A filósofa Hannah Arendt cunhou a expressão “banalidade do mal” ao escrever sobre o julgamento do nazista Adolf Eichmann em Jerusalém, em 1961. Qual é o significado dessa expressão para o senhor? Eu também estive no julgamento de Eichmann em Jerusalém e não vi essa banalidade. Eichmann sabia o que estava fazendo. Não era um burocrata cumpridor de ordens. Fui amigo de Hannah. Tivemos várias conversas sobre isso e sempre discordei dessa ideia. Discordo também da tese de Hannah de que os judeus foram passivos, não reagiram à altura, não fizeram o bastante para resistir ao esmagamento nazista. Eu dizia: “Hannah, não havia alternativa. Era impossível. Você fugia de um gueto e não tinha para onde ir”. Mas Hannah tinha suas convicções. Fez uma carreira brilhante, era uma mulher inteligentíssima. O livro Origens do Totalitarismo é uma obra-prima. Mas acho que se equivocou ao falar da banalidade do mal em Eichmann e da passividade dos judeus.

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O racismo e a xenofobia cedem mas não morrem. São doenças incuráveis? De alguma forma, as pessoas entendem umas às outras, mas o racismo e a xenofobia ainda estão por aí. Deploro o racismo. Deploro a xenofobia. No início dos anos 80, quando estava no auge o Movimento Santuários nos EUA (o movimento dava abrigo e proteção a imigrantes ilegais, sobretudo salvadorenhos que fugiam da guerra civil), eu me insurgi contra a denominação que lhes davam de “ilegais”. Nenhum ser humano pode “ser ilegal”. Pode fazer algo ilegal, mas não pode “ser ilegal”. O antissemitismo, que é uma expressão de racismo, parece incurável. Pensei que o antissemitismo tivesse morrido em Auschwitz, em 1945. Hoje sei que os judeus morreram em Auschwitz.

O racismo está diminuindo nos Estados Unidos? Cheguei aos EUA em 1956 e percorri o país para conhecê-lo melhor. Quando visitei o sul, vi o racismo funcionando na vida cotidiana e, pior ainda, legalmente, previsto em lei. Nunca senti vergonha de ser judeu. Mas, no sul dos Estados Unidos, senti vergonha de ser branco. Hoje, o racismo é ilegal. Isso não quer dizer que não haja racismo, porque há, mas a lei deixou de ser racista e passou a punir o racismo. A mudança que ocorreu foi coroada com a eleição de Obama. Fui convidado para sua posse. Sentei três fileiras atrás dele, e senti orgulho do que vi. Tive a impressão de que a história tentava corrigir suas injustiças. Um negro é presidente dos Estados Unidos. Não é pouca coisa.

Se o senhor pudesse salvar uma minoria de todo o preconceito e sofrimento, que minoria escolheria? É preciso pensar, porque há tantas. Escolheria os ciganos da Hungria, da Romênia, de várias partes da Europa. Acho que os escolhi apenas porque li há poucos dias uma reportagem no New York Times sobre as dificuldades que eles estão enfrentando, e o assunto ficou na minha cabeça. Na verdade, não acredito que se possa lutar em defesa de uma minoria. Luta-se por todas elas.

Os mais idosos costumam sonhar mais com a infância e a juventude. Isso acontece com o senhor? Sim, tem acontecido comigo à medida que fico mais velho.

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Os horrores do holocausto aparecem mais do que antes? Sim. Quando isso começou a me acontecer, procurei amigos que também estiveram em campos de concentração, e todos me disseram que estavam passando pela mesma coisa. Quanto mais velhos ficamos, mais sonhamos com esse passado.

Todas as noites? Não, mas muito frequentemente.

O senhor ainda tem o número que os nazistas tatuavam no braço dos prisioneiros dos campos de concentração? Sim, está aqui (puxa a manga da camisa e aparece a inscrição azul-esverdeada, ainda legível, encravada na pele do antebraço esquerdo). Minha identificação é essa aí, A-7713. A identificação do meu pai era A-7712. Ele estava na frente de mim na fila.

Doía? Um pouco. Era coisa rápida. Os nazistas eram profissionais nisso, tinham técnica. Afinal, criaram uma máquina imensa, fizeram isso milhares, milhões de vezes.

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O senhor pensou em tirar a marca do braço? Nunca.

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