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A verdade e a busca da verdade

Por Por Eurípedes Alcântara
5 abr 2015, 13h38

Apesar das diferenças culturais e das vertentes históricas nem sempre coincidentes, os países da nossa América do Sul tendem a mover-se coordenadamente em política. O caudilhismo, a mímica do fascismo europeu, as turbulentas experiências democráticas do pós-guerra, os regimes militares durante a Guerra Fria e, agora, o populismo “dependentista”– em que, idealmente, o nascimento, vida e morte de empresas, e quem sabe, de pessoas — depende unicamente da vontade do Estado. Movemo-nos em nossos países acompanhando o eixo pendular de forças tectônicas que, abaixo das nossas percepções conscientes, direcionam nosso pensamento e ação políticas. O processo, é evidente, dá-se em ritmos e graus diferentes. No entanto, individualmente nossos países são como passageiros caminhando para a traseira no corredor do avião imaginando que vão para onde seus narizes apontam, quando o vetor de seu deslocamento real é aquele pelo qual vai a aeronave. Com o risco de render-me ao fatalismo e de minimizar o protagonismo individual como agente da história, esse é o processo que, a meu ver, predomina em nossa caminhada conjunta na América do Sul.

Como bom materialista, o francês Fernand Braudel, em A Dinâmica do Capitalismo, sua obra quase póstuma, de 1985, tenta explicar,em parte, esse comportamento de manada no continente sul-americano e, de certa forma, de toda a América Latina, pela nossa matriz econômica comum: monoculturas locais com preços das nossas mercadorias definidos nos centros consumidores da Europa, Estados Unidos e, mais recentemente, China. Em uma palavra, dependência, da qual, aponta Braudel, só nos livraremos com educação de qualidade para a maioria e capacidade técnica para agregar valor a nossos produtos de modo que eles imponham seus preços em qualquer mercado. Antes de prosseguir para a questão central que motivou esse artigo, quero crer que, interpretando os rumores do mundo à minha volta, o pêndulo do continente já está se movendo do populismo dependentista para uma posição de equilíbrio. A imprensa livre e comercialmente viável de nossos países teve e está tendo um papel importante em apressar o movimento reparador da dolorosa distorção populista.

Saiba mais: Chavistas confirmam conspiração denunciada por Nisman

Ocupo esse espaço no diário Perfil como uma oportunidade muito bem recebida de comentar, no limite dos respeito às fontes jornalísticas, as circunstâncias que levaram VEJA a obter as informações que embasaram a reportagem “A Conexão Teerã-Caracas-Buenos Aires”, de 18 de março deste ano, em que se revelou a intermediação por Hugo Chávez, em Caracas, de acordo firmado entre o governo do Irã e da Argentina, que tinha dois objetivos:

1) a retirada de ordens de captura contra funcionários iranianos acusados de envolvimento no atentado à Amia;

2) dar acesso a Teerã a certas tecnologias nucleares relacionadas à produção, estocagem e transporte de plutônio, resíduo do urânio não-enriquecido, um dos combustíveis dos reatores de água pesada da usina argentina de Atucha.

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Em troca, o Irã se comprometia a financiar o dramático aumento no volume de compra por Chávez de bônus soberanos argentinos.

A pista para se chegar às pessoas que passaram a VEJA essas informações foi aberta em 2010 pelo Wikileaks que, então, mencionou, de passagem, que os serviços de segurança dos Estados Unidos trabalhavam em colaboração com suas contrapartes no Brasil na investigação de simpatizantes e financiadores de grupos terroristas, em especial, o libanês Hezbolá e outros de menor capacidade operacional, mas que tinham em comum o recebimento de apoio material e logístico do Irã. VEJA designou o jornalista Leonardo Coutinho para, a partir das informações do Wikileaks, encorpar a história.

Depois de quatro meses de trabalho, Leonardo Coutinho produziu e assinou a reportagem “A rede – O terror finca bases no Brasil”. A reportagem revelou a existência de uma rede de financiadores do terror em operação no Brasil, cujos integrantes podiam ser encontrados em diversas cidades do país, algumas bem distantes da região do Iguaçú, a Tríplice Fronteira, epicentro da investigação dos agentes brasileiros e americanos. VEJA e Leonardo Coutinho foram processados judicialmente por algumas das pessoas identificadas pela reportagem. As acusações contra VEJA e seu repórter não prosperaram na Justiça, onde já foram ou continuam sendo recusadas por juízes de diversas instâncias.

Como ocorre com frequência com jornalistas que trabalham com seriedade, transparência e clareza de propósitos, Leonardo Coutinho tornou-se interlocutor de muitos de seus entrevistados, alguns deles tendo sido identificados como suspeitos pela reportagem, mas que descobriram estar sendo instrumentalizados por extremistas em quem, por desconhecimento, confiaram. Paralelamente, diplomatas de diversos países, analistas políticos, investigadores, policiais e membros moderados da comunidade muçulmana no Brasil e no exterior passaram a procurar Coutinho com o objetivo de compartilhar o que sabiam sobre aquelas atividades. As relações de Hugo Chávez com o Irã e os Kirchner na Argentina surgiram no radar de Coutinho de uma dessas conversas.

VEJA parte do princípio de que em uma investigação jornalística, más pessoas podem ser portadoras de boas informações. Assumimos também que uma fonte com intenções escusas tem interesse em ver revelado aquilo que nos conta. Seu motivo mais frequente é vingança, por exemplo, por ter se sentido injustiçada na repartição do produto de algum ato de corrupção. Pouco importa. Temos de falar com esse tipo de fonte, ouvir o que têm a dizer, entender seus motivos, checar a e rechecar o que contam com outras fontes, obter provas documentais — ou, na impossibilidade de obter os originais ou cópias fotográficas, pelo menos, vê-las e manuseá-las. Como dissemos internamente em VEJA, “falar com o Papa não nos torna santos, da mesma forma que falar com corruptos não nos corrompe”. Leonardo Coutinho obteve diversas provas de que sua fonte sobre Chávez era alguém que privara da confiança e do convívio com o líder venezuelano e sua corte. Através dessa fonte, Leonardo soube de detalhes do câncer que acabou por matar Hugo Chávez e, assim, pudemos relatar a evolução real da doença e não, ingenuamente, dar publicidade às versões edulcoradas da propaganda oficial. O mesmo alto funcionário do governo de Caracas deu-lhe a estrutura do que viria a ser uma excelente reportagem sobre as relações entre o chavismo com o narcotráfico.

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Com a subida de Nicolás Maduro ao poder, alguns dos informantes do repórter de VEJA na Venezuela romperam com a nova ordem e abandonaram o país, a maioria indo se estabelecer nos Estados Unidos. Eles se juntaram a quase uma dezena de outros expoentes do núcleo de poder chavista cujos acordos e alianças não puderam ser transferidos para Maduro. Exilados nessas condições sabem que, dependendo de com quem se relacionam, são valiosos ora pela fortuna material que legitimamente possuem — ou subtraíram de suas pátrias — ora pelas informações de que são portadores. A tendência é que gastem esse patrimônio com parcimônia, pois para eles a ruína seria que suas vidas biológicas durem mais do que suas fortunas. Mais ruinoso ainda para o interesse pessoal deles seria a revelação de que seus tesouros materiais são feitos de ouro de tolo e moedas falsas ou que as informações que passam à frente não tenham qualquer substância.

É natural, portanto, que esses personagens sejam fontes de informações sobre o que se passava no coração da estrutura de poder de Chávez. É natural que despertem a curiosidade de bons jornalistas e o interesse de diplomatas e serviços de inteligência de diversos países. Mas é natural também que as histórias que cada um conta não devam ser tomadas na integralidade por seu valor de face. É preciso, como fez Leonardo Coutinho, cruzar as histórias entre eles e checa-las com outras fontes até que, por serem do interesse público, pudessem ser publicadas.

A publicação de reportagens — como as que revelam o acordo Caracas-Teerã-Buenos Aires e a existência de contas conjuntas no exterior da família Kirchner e uma alta funcionária do governo argentino — não deve ser vista como o julgamento definitivo sobre esses fatos. Uma boa reportagem é apenas uma porta aberta para outras reportagens. Não quero e não posso aqui afirmar que as reportagens de VEJA sobre esses episódios, sendo fidedignas e corretas no essencial, sejam absolutamente verdadeiras em todos os menores detalhes. O que quero e posso afirmar é que na história de 46 anos de VEJA, chegar e se manter na posição de maior, mais lida e respeitada revista de informação do Brasil é um feito conseguido não pela publicação apenas de verdades absolutas, mas por meio da absoluta clareza de propósitos na busca da verdade. É exatamente isso o que incomoda e nos distingue de arranjos políticos com pendor totalitário. Eles acreditam ter encontrado e se assenhorado da verdade. Nós estamos sempre em busca dela.

Este artigo de Euripedes Alcântara, diretor de redação de VEJA, foi publicado em 5 de abril pelo diário Perfil, da Argentina, com o título “Trastienda secreta de la investigación de ‘Veja'”.

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