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A resistência de Paris

À barbárie do fanatismo fundamentalista, a cidade reagiu com sua arma mais devastadora: um modo de vida feito de prazer, cultura e civilização, tudo aquilo que os terroristas mais odeiam

Por Fábio Altman e Éric Garault, de Paris
19 nov 2015, 20h42

Os terroristas não escolheram o Bataclan por acaso. No infame comunicado de reivindicação dos atentados, o autointitulado Estado Islâmico informou: “Oito irmãos, com cinturões explosivos e fuzis, atacaram lugares minuciosamente escolhidos, no coração da capital francesa”. O Bataclan foi atingido “porque reunia centenas de idólatras em uma festa perversa”. É desnecessário buscar causas profundas para a barbárie da sexta-feira 13 de novembro, porque só há superficialidade e cegueira nas motivações criminosas para massacrar 129 pessoas e deixar mais de 350 feridas. Basta saber o que os fanáticos mais odeiam – e o que eles mais odeiam, em poucas palavras, é um modo de vida que Paris praticamente inventou e até hoje simboliza, oferecido com fartura a todos os que flanam por suas ruas.

Eles odeiam a liberdade, o direito de ir e vir, a música, a literatura, o vinho. Odeiam o profano e o impuro. Odeiam a humanidade e suas imperfeições. Odeiam um indesculpável vício iluminista do Bataclan, casa de espetáculos inaugurada no fim do século XIX: estar instalado no Boulevard Voltaire. Odeiam, por fim, algo que só poderia mesmo acontecer em Paris, e não por coincidência: na quarta-feira 18, cinco dias depois do massacre, uma vendedora ambulante do metrô entrou na Estação République, Linha 9, Pont de Sèvres/Marie de Montreuil, para oferecer uma edição de bolso do Tratado sobre a Tolerância, de Voltaire, aquele cujo nome batiza a avenida que corre acima dos trens. O Tratado, um ensaio filosófico sobre o fanatismo religioso, foi escrito logo depois da morte de Jean Calas, comerciante de tecidos de família protestante huguenote, acusado de matar seu filho para impedi-lo de converter-se ao catolicismo. Escreveu Voltaire: “Para que um governo não tenha o direito de punir os erros dos homens, é necessário que esses erros não sejam crimes; os erros somente são crimes quando perturbam a sociedade; eles perturbam a sociedade desde que inspirem fanatismos: é preciso, portanto, que os homens comecem a deixar de ser fanáticos a fim de merecer a tolerância”. O texto, de 1763, é vendido hoje a 2 euros no metrô.

À intolerância feita de terror do fanatismo islâmico os parisienses responderam, nos primeiros dias depois da matança, com armas de destruição em massa. No Le Petit Cambodge – restaurante no qual morreram pelo menos doze pessoas e onde estavam dois brasileiros feridos -, um pequeno cartaz foi colado próximo às centenas de velas e flores com uma declaração de guerra irrecorrível: “Se tomar uns goles, ir a um concerto ou a um jogo de futebol vier a se tornar um combate, então tremei, terroristas! Porque estamos superbem treinados!”. A capa do jornal satírico Charlie Hebdo, cujos jornalistas sobreviventes dos ataques de janeiro andam escoltados, foi na mesma linha. Sobre um fundo vermelho e o desenho de um homem perfurado por balas, de cujos orifícios saem espumante e não sangue, lê-se a manchete: “Eles têm armas. Que se danem, nós temos champanhe”. A palavra “danem”, aqui, na tradução para o português, foi usada à guisa de outra expressão mais forte, iniciada pela letra F. Entre coroas e pavios, alguns apagados pelo vento de outono que varre as folhas secas eternizadas por Yves Montand, há garrafas de vinho e cerveja. São santuários possíveis apenas em Paris, a odiada e hedonista Paris dos terroristas.

O incontornável “Je suis Charlie” de janeiro foi substituído pelo “#JeSuisEnTerrasse” e pelo “TousAuBistrot“, para deixar claro: se o objetivo dos fundamentalistas era tirar as pessoas das mesas externas dos cafés, dos bistrôs, não passarão (apesar do susto da quarta-feira, com a invasão de dois apartamentos em Saint-­Denis, na periferia, à caça de terroristas, que deixou Paris amuada, preocupada e mais vazia do que na véspera). A seu modo insosso porém firme, o presidente François Hollande resumiu o espírito do Brumário francês de 2015: “A França que os assassinos queriam matar era a da juventude, com toda a sua diversidade e seu único crime, o de estar viva”.

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Paris, revelam-nos seus monumentos, seus museus (excepcionalmente fechados no primeiro fim de semana depois do massacre), suas ruas, as canções, as placas em homenagem aos heróis tombados na II Guerra, tem histórica resiliência. De cada derrota encontrou saídas. Não há cidade no mundo mais identificada com a justiça e a civilização, conceitos lapidados com combates e política, muitas vezes com sangue. O substantivo “intelectual”, no sentido de sábio engajado em alguma causa nobre, foi usado pela primeira vez no fim do século XIX, quando o capitão de artilharia Alfred Dreyfus, de origem judaica, foi erroneamente acusado de traição. Na onda de preconceito que defendia a condenação do oficial, poetas, escritores e cientistas, os “intelectuais” liderados por Émile Zola, saíram em defesa de Dreyfus.

Diz o intelectual Pascal Bruckner, filósofo e escritor, a respeito do 13 de novembro: “Não devemos mudar em nada nossos hábitos, e sim viver como se o terrorismo não existisse. Devemos nos opor aos assassinos com nosso desprezo de civilizados”. De preferência, com uma boa taça de vinho, falando de Voltaire, do Charlie Hebdo, de François Hollande e do Estado Islâmico (ou Daesh, nas iniciais em árabe, como se acostumaram a dizer os franceses) no Le Carillon, no Le Petit Cambodge, no À la Bonne Bière, no La Belle Équipe, no Le Comptoir Voltaire, no Cosa Nostra e no Bataclan. Aux armes, citoyens!, entoam, com ênfase, grupos pequenos, outros maiores, todos evidentemente comovidos. Desafiam o veto às aglomerações, na cidade em estado de emergência, gritando “Não temos medo!”, “On n’a pas peur”. E encerram com a Marselhesa, o hit da temporada. Taças na mão, aux armes, citoyens.

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