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‘Quando fugimos, não podemos carregar comida ou roupas’

Depoimentos de vítimas de tortura, estupro e assassinatos relatam o clima de guerra no qual estão condenados a viver na República Democrática do Congo

Por Cecília Araújo
10 jul 2012, 12h16

Na República Democrática do Congo (RDC), segundo maior país do continente africano, as crises emergenciais provocadas por conflitos armados e epidemias diversas se tornaram tão frequentes que parecem rotineiras. Segundo um ranking divulgado pelas Nações Unidas em 2011, a RDC tem o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo – consequência, em parte, da negligência dos seus governantes e da comunidade internacional. A organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) concentra neste país, onde atua desde 1981, o maior número de projetos: em maio de 2012, 31 ações mobilizavam cerca de 1.850 profissionais. Os tratamentos variam entre doenças como malária, cólera, aids, sarampo e doença do sono – epidemias comuns na África -, e feridas físicas e psicológicas, de vítimas dos conflitos armados. A ONG alerta que a RDC enfrenta um grave pico de violência – e pede atenção.

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Mapa República Democrática do Congo
Mapa República Democrática do Congo (VEJA)

Desde sua independência da Bélgica, em 1960, a República Democrática do Congo se vê no meio de um fogo cruzado que parece interminável: diversos grupos étnicos disputam o poder no país, que é rico em recursos naturais. Nove países fazem fronteira com a RDC, e milícias radicais vindas de territórios vizinhos acabaram se instalando no território. “Por onde passam os grupos, há denúncias de atrocidades, e os MSF vão ao encontro daqueles que sobreviveram a ataques e precisam de atendimento”, diz a organização. “Famílias inteiras se veem obrigadas a se movimentar incessantemente, para fugir dos ataques e roubos de grupos armados, deixando tudo para trás”, acrescenta. O deslocamento, que há tempos é comportamento tradicional de tribos nômades, passou a ser reflexo do instinto de sobrevivência. Segundo a Anistia Internacional, ele é resultado dos confrontos entre o Exército nacional (FARDC) e grupos armados estrangeiros, de Ruanda e Uganda, por exemplo.

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A possibilidade de ataques violentos e emboscadas noturnas assombra a população, principalmente nas províncias do leste do país. Em Kivu do Norte, torturas, estupros, trabalho forçado e assassinatos são parte da rotina dos civis. Os estupros em massa são usados como arma de guerra pelos grupos armados. “Geralmente acontecem quando as pessoas estão em trânsito, da aldeia para o mercado, e são paradas por homens armados que as separam em grupos – homens, mulheres, meninas. Eles roubam seus pertences e dividem as mulheres e garotas entre eles. Homens e meninos por vezes são também estuprados”, conta Alice Echumbe, enfermeira e supervisora do Centro Jamaa Letu, em Baraka, no Kivu do Sul. Ela diz que também sente medo, mas que não pode deixar tais sentimentos transparecerem, para não fragilizar ainda mais os pacientes. Os relatos, colhidos entre abril e maio deste ano e enviados com exclusividade pelos MSF ao site de VEJA, são chocantes, como se pode ver no quadro abaixo:

Clima de guerra na República Democrática do Congo

“A aldeia de meus pais foi atacada. Eles tentaram fugir, mas minha mãe não estava apta, e eles não puderam sair. Cortaram minha mãe com uma machete (espécie de facão). Meu pai correu, mas foi morto a tiros. Naquela aldeia, foram contadas 11 pessoas mortas com machetes, mas haviam muitos outros queimados em suas casas, cujos corpos não puderam ser contados.”

Mulher, de 30 anos, mãe de cinco filhos, que fugiu de um ataque a sua aldeia

em Kivu do Norte; seu marido e um de seus filhos estão desaparecidos

“Uma horda de pessoas corria em nossa direção, e nós também começamos a correr. Coloquei uma das crianças nas costas e peguei o mais velho pela mão. Minha mulher levava o bebê. Estamos em guerra, e não sabemos para onde ir.”

Homem, de 28 anos, pai de cinco filhos – dois deles estão desaparecidos

desde que sua aldeia em Kivu do Norte foi atacada

“Fugimos de nossa aldeia e, no mesmo dia, grupos armados chegaram lá. Se a casa tivesse teto de metal, eles jogavam gasolina para queimá-la. Se fosse coberto de folhas, ateavam fogo e queimavam as pessoas que ali estavam. Eu vivi essa história: me escondi com meus filhos no mato enquanto queimavam nossa casa. Minha cunhada, meu cunhado e minha sogra foram queimados vivos na casa deles.”

Mulher, de 30 anos, mãe de 4 filhos, fugiu de um ataque a sua aldeia em Kivu do Sul

“Uma mulher começou a abortar durante a noite; o sangramento era intenso. Mas com todos os grupos armados e militares nas estradas, a família estava com muito medo de viajar naquela hora, e esperaram até a manhã para caminhar as poucas horas até nosso hospital. Ela chegou ao meio-dia; já havia perdido muito sangue e havia pouco que pudéssemos fazer. Ela morreu minutos depois de sua chegada.”

Enfermeira de MSF do hospital de Mweso, em Kivu do Norte

“Cheguei hoje ao hospital com minha filha, que está com desnutrição severa. Moramos em uma aldeia a três horas de caminhada daqui. Por causa da insegurança dessas últimas semanas, não dormimos mais em nossa casa, e sim nos campos ou no mato. Durante a noite, bandidos atacam as aldeias, e de dia é a vez dos militares. É difícil encontrar comida com as balas voando e nos impedindo de ir até os campos.”

Mãe de uma paciente de 4 anos no centro de alimentação de MSF em Kivu do Norte

“Saí de minha aldeia com minha família no início dos conflitos. Na quarta-feira, já sem comida, voltei com alguns amigos para colher vegetais de minha plantação. Ouvimos tiros e uma bala se alojou em meu braço esquerdo. Retornei com meus amigos, que não estavam feridos, até a aldeia. Lá, eles improvisaram uma maca com galhos para me carregar para a estrada principal, onde pudemos encontrar uma moto que nos levasse até a próxima cidade. Esperamos até o dia seguinte para irmos ao hospital porque não queríamos viajar à noite.”

Homem, de 28 anos, com 3 filhos, em Kivu do Norte

“Ouvimos tiros na aldeia e fomos nos abrigar em nossas casas. Minha menina foi a última a se esconder, porque a quantidade de gente dificultou a entrada em casa. Ela levou um tiro na coxa. Chorou e gritou muito. Nós a levamos até o centro de saúde, onde ela ficou por um dia. E então, na quinta-feira, nós a levamos para o hospital de moto. Temo muito por meus filhos e pelo que acontecerá a eles se essa guerra continuar, porque quando fugimos, não podemos carregar comida ou roupas e somos constantemente atacados por grupos armados.”

Mãe de 5 crianças, em Kivu do Norte

Mortes – O atual pico de instabilidade em Kivu do Norte e Kivu do Sul é parte de um ciclo de violência em andamento na região leste da República Democrática do Congo. Como mostram os depoimentos acima, muitas famílias se veem obrigadas a se refugiar em acampamentos, com medo de serem atacadas em suas casas durante a noite. “Mais desconcertante do que ver filas de pessoas carregando seus colchões pelas estradas é passar pelas aldeias completamente silenciosas”, diz a MSF. Segundo a organização, milhares de pessoas estão vivendo com outras famílias – estranhos que dividem suas casa e comida com aqueles em fuga. Muitas outras estão escondidas nas florestas, abrigadas em lonas plásticas cobertas com folhas para não serem visíveis a distância. E a violência não se resume aos nativos: de novembro de 2011 a abril de 2012, equipes de MSF foram vítimas da violência de grupos armados 15 vezes no estado de Kivu, nas regiões Norte e Sul. Confira, na lista abaixo, as principais formas de abuso:

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