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‘Haiti tem a oportunidade que nunca teve para se reconstruir’

A porta-voz da missão da ONU, no país há oito anos, conta o que mudou depois do terremoto de 2010 e rebate as críticas aos capacetes azuis

Por Cecília Araújo
12 jan 2012, 13h27

“Nenhum país do mundo gostaria de ter em seu território forças estrangeiras, mesmo que sejam missões de paz. Grande parte da população fica visivelmente incomodada. Sente que é uma forma de ocupação estrangeira.”

Sylvie van den Wildenberg

Protagonista da ajuda humanitária no Haiti, antes mesmo do terremoto que assolou o país há dois anos, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah) tem sido alvo de inúmeras críticas. O contingente das forças de segurança mobilizadas para atuar na ilha após a tragédia de 12 de janeiro de 2010 cresceu muito – e por motivos óbvios -, mas o cenário de hoje ainda é devastador: 500.000 pessoas vivem em abrigos de emergência, 4,5 milhões sofrem com a escassez de alimentos, 60% da população está desempregada e mais de 7.000 habitantes já morreram vítimas da epidemia de cólera que se alastra.

A credibilidade da missão foi colocada em xeque após um caso de abuso sexual em setembro de 2011. Um vídeo divulgado na internet mostrava seis soldados da Marinha uruguaia atacando um haitiano de 19 anos. Os militares, que faziam parte da Minustah, foram repatriados depois de vir à tona o caso, que teria acontecido em uma base da ONU. E, mesmo sendo réus em dois processos (um de ordem militar e outro na Justiça comum), foram colocados em liberdade condicional no último dia 10. Autoridades do Ministério da Defesa uruguaio e da Minustah dizem que ainda não conseguiram entrar em contato com a vítima e, sem ela, o caso corre o risco de ser encerrado. Três meses depois dessa acusação, uma nova denúncia de violência extrema foi feita. Oito soldados – desta vez, brasileiros – teriam espancado três jovens, que ficaram gravemente feridos. As investigações estão em andamento, e não há provas contra os capacetes azuis, diz a missão. Além disso, até o reaparecimento do cólera no Haiti, que estava erradicada havia décadas, é atribuído aos agentes da Minustah.

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Apesar dessa série de episódios que aumentou consideravelmente a pressão para que as forças das Nações Unidas deixem o país, o Conselho de Segurança prorrogou a permanência da missão por pelo menos mais um ano e reduziu seus destacamentos militar e policial em 1.600 e 1.150 agentes, respectivamente. Em entrevista ao site de VEJA, Sylvie van den Wildenberg, porta-voz da Minustah, respondeu a cada uma das acusações e tentou mostrar o outro lado da situação no país, reforçando que esse é o melhor momento para a ilha caribenha se reeguer de fato. “Entendo que não seja fácil levar em conta o que já foi feito diante da frustração do que ainda nos falta fazer. É como tentar enxergar um copo metade cheio, enquanto todos estão vendo um copo metade vazio”, diz, por telefone, direto de Porto Príncipe. Leia a entrevista:

Qual era o papel da Minustah no Haiti antes do terremoto? As Nações Unidas estão no Haiti há dezenas de anos, indo e vindo, com uma série de missões diferentes. Em 2004, devido a um pedido do governo de transição após a queda de Jean-Bertrand Aristide (eleito presidente em 1991 e derrubado por um golpe de estado em 1996), o secretário-geral da ONU enviou suas forças até que o país se estabilizasse completamente. O Haiti vivia uma verdadeira guerra civil, prestes a eleger seu novo representante. O Exército não existia, pois havia sido descartado pelo presidente Aristide. Havia apenas alguns milhares de policiais, cerca de 2.000 ou 3.000 apenas. Eram poucos. Então, havia a necessidade de autoridades para manter a segurança no país. Tínhamos como tarefa garantir a segurança dos cidadãos. Para isso, seria preciso reformar a polícia local, a fim de colocar ordem nas ruas, onde diferentes facções entravam frequentemente em conflito. De fato, treinamos e formamos 10.000 policiais profissionais desde 2004. Outra incumbência era reforçar o estado de direito e as instituições – como, por exemplo, fazer funcionar bem o Ministério da Justiça e o Parlamento, para que as pessoas pudessem ter seus direitos protegidos. Além disso, fomos chamados para acompanhar os processos eleitorais legislativos e presidenciais, adiados até 2006. O Haiti é um país muito polarizado politicamente e, por isso mesmo, é comum que haja violência em meio às eleições.

O que mudou depois de janeiro de 2010? Em outubro de 2009, o Conselho de Segurança da ONU se reuniu e chegou à conclusão de que a situação do Haiti era estável – social, política e economicamente – e que a presença da Minustah no país poderia ser reduzida gradualmente. Com o terremoto, nos foi dado outro mandato para que pudéssemos garantir apoio humanitário e proteção civil até o restabelecimento do país. Ouso dizer que a catástrofe natural foi sem precedentes na história das Nações Unidas. Como a Minustah já estava ali desde 2004, foi a coluna vertebral para todos os outros atores humanitários que chegaram depois. Nossa experiência ajudou a acelerar a assistência de urgência. Tivemos um papel crucial, especialmente nesse primeiro momento. Trouxemos pelo menos 1.200 engenheiros civis ao Haiti para trabalhar na reabilitação das ruas e construções civis, além da reparação de canais de drenagem. No contexto eleitoral, entre 2010 e 2011, os capacetes azuis ajudaram a proteger os civis e as urnas em meio à violência – retomando seu trabalho de quatro anos antes. Também garantiram a segurança dos 1,5 milhão de deslocados para os acampamentos, onde há atos violentos – ainda restam 500.000 para proteger. Além disso, trabalhamos para superar a epidemia de cólera: criamos centros de tratamento e ajudamos a levar medicamentos aos afetados.

Como a Minustah responde à acusação de ser responsável pela epidemia de cólera no Haiti? Em todo país que recebe uma missão de paz e tropas estrangeiras, é normal surgir um sentimento de frustração em relação às Nações Unidas e à presença dos soldados. O papel dos capacetes azuis é difícil de explicar às pessoas comuns. Aquelas que se beneficiam diretamente com as ações dos militares, em operações de segurança, compreendem bem o que fazemos. Para os outros, porém, não é fácil mostrar na prática, de forma visual, o que temos feito. Depois de um terremoto, todos os epidemiologistas do mundo concordariam que a propensão para o surgimento do cólera no Haiti era enorme. As condições sanitárias do país são catastróficas, entre as piores do mundo. Mas, num primeiro momento, ela não apareceu, o que já foi um milagre. Depois, quando a epidemia foi disseminada, estudos destacaram a grande possibilidade de o foco da doença ter sido uma base da ONU. Mesmo que isso não tenha sido comprovado, não podemos, de fato, excluir a possiblidade de um soldado nepalês ter trazido a doença de seu país de forma involuntária, sem que a contaminação aparecesse nos testes feitos antes de seu deslocamento – infelizmente, a bactéria do cólera pode ser invisível nos testes. A grande questão é: em toda a história da humanidade, já tentamos alguma vez estigmatizar apenas um indivíduo pela disseminação de uma epidemia? A conclusão está nas mãos dos advogados das famílias das vítimas de casos de cólera. Mas se deve levar em conta que toda epidemia surge a partir de uma confluência de circunstâncias favoráveis ao seu aparecimento. Não se pode atribuir a responsabilidade a um só grupo de indivíduos.

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E quanto às acusações de abusos sexuais de um jovem haitiano por parte soldados uruguaios da Minustah? As Nações Unidas aplicam uma política de tolerância zero para esse tipo de atitude entre seus funcionários. Tentamos criar um sistema para prevenir esses atos ao máximo, mas infelizmente é quase impossível detectar pedófilos, criminosos e más pessoas. O jeito é tomar todas as medidas ao nosso alcance para que os acusados sejam devidamente julgados e, se for o caso, condenados. É importante ressaltar que recebemos uma série de acusações sobre maus atos dos capacetes azuis diariamente, mas grande parte delas é falsa. Não podemos ignorar o contexto em que a Minustah trabalha: sempre há tentativas de desestabilizar sua presença. Assim, as investigações em torno das acusações se fazem ainda mais necessárias. Nesse caso específico dos militares uruguaios, o empecilho que enfrentamos é que não conseguimos convencer a vítima a participar das investigações criminais, apesar de todos os nossos esforços. Por esse motivo, elas estão bloqueadas temporariamente. Até que isso aconteça, os soldados estão em liberdade condicional. Embora nosso posicionamento seja de tolerância zero, nenhuma decisão pode ser tomada pela ONU, embora tenhamos que arcar com a responsabilidade moral do crime. Pode ter certeza de que todas as atitudes possíveis estão sendo tomadas. Esperamos que a vítima se disponha a ajudar.

Já existe uma resposta para o caso dos militares brasileiros que espancaram outros jovens? Não posso comentar esse caso oficialmente, pois as investigações ainda estão em andamento. Adianto ser inquestionável que as vítimas foram espancadas e muito machucadas. Mas destaco que, depois de um mês de investigações, não foi encontrada uma só prova de que as torturas tenham sido cometidas por soldados da Minustah. Não podemos excluir a possibilidade, por exemplo, de que pessoas comuns se disfarçaram de capacetes azuis e cometeram os crimes. E há duas coisas muito estranhas nessa história: as vítimas se recusaram a assinar seus depoimentos e, logo depois, a equipe não conseguiu mais encontrá-las. De qualquer forma, mesmo que os soldados sejam condenados, os atos de alguns não podem tirar a credibilidade de toda a missão. E é importante que a população brasileira saiba que o trabalho do Brasil no Haiti é extraordinário e que estamos orgulhosos de seus soldados. Há uma espécie de identificação dos haitianos com os brasileiros. E os funcionários brasileiros fazem um trabalho de proximidade muito importante nas comunidades de risco. Ali, as crianças falam português para os receberem. Muitos dizem que querem se tornar capacetes azuis quando crescerem. É uma cena muito tocante!

A ONU lamenta não ter feito uma missão preventiva no Haiti? Como prever que um terremoto dessa magnitude iria atingir o Haiti? As missões preventivas são impossíveis, um debate filosófico. Nenhum país do mundo gostaria de ter em seu território forças estrangeiras, mesmo que sejam missões de paz. Grande parte da população fica visivelmente incomodada. Sente que é uma forma de ocupação estrangeira. Se você pergunta para um haitiano da classe média o que ele pensa da Minustah, ele responderá que é humilhante ter forças internacionais ocupando as ruas do seu país, com tanques e armas, sendo que o Haiti nem sequer está em guerra. Ainda mais quando se pensa na história desse país, que foi a primeira república negra independente e já conheceu inúmeras ocupações anteriores.

Após dois anos, ainda há muito o que fazer. O nível de destruição foi tão grande que demanda muito tempo até que as mudanças que conseguimos fazer se tornem visíveis, tanto pela população como pelos observadores internacionais. Isso porque o Haiti enfrentava problemas estruturais mesmo antes do terremoto, somados a um estado frágil e a uma pobreza extrema. Um tremor de mesma magnitude não seria tão destrutivo em um lugar mais estruturado. Os mais afetados foram os mais pobres e mais vulneráveis. Há pessoas que foram deslocadas para os acampamentos que dizem nunca ter vivido em uma condição tão boa. Diante de qualquer quadro trágico, é normal que as pessoas busquem sempre a quem culpar, mas, antes de fazer qualquer julgamento, é essencial olhar para o Haiti antes do terremoto. Entendo que não seja fácil levar em conta o que já foi feito diante da frustração do que ainda nos falta fazer. É como tentar enxergar um copo metade cheio, enquanto todos estão vendo um copo metade vazio. Não há como resolver a situação das mais de 500.000 pessoas sem lar da noite para o dia. Hoje, o Haiti tem uma oportunidade que nunca teve antes de se reconstruir. A prioridade de muitos haitianos, de acordo com o que ouço deles próprios, não é receber novas casas, mas sim empregos – já que a falta de trabalho afeta 60% da população. Na construção de um novo Haiti há prioridades: emprego, moradia, educação, saúde, instituições e um estado. E nós não pretendemos encerrar as atividades até que o Conselho de Segurança considere nosso trabalho terminado.

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