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Os senhores da bola

É ingenuidade (ou má-fé) associar a Fifa apenas a um grupo de cartolas inescrupulosos — o que a define, hoje, é a dificuldade de conciliar o cotidiano de uma entidade bilionária e muito bem-sucedida com uma estrutura executiva já arcaica

Por Álvaro Oppermann
30 jul 2011, 01h27

Nos subterrâneos da Fifa, os telefones celulares não funcionam. os cartolas reclamam, à boca pequena, de claustrofobia nas salas de reuniões do comitê executivo instaladas no subsolo do imenso edifício em Zurique, na Suíça. o desconforto, misto de dificuldade de comunicação com sensação de falta de ar, é metáfora adequada da entidade que manda no futebol mundial. Para joseph Blatter, presidente da Fifa desde 1998, as diatribes dos inimigos contra o prédio são mera provocação. Blatter vê a construção, colada a um bosque, numa bucólica região da cidade, como símbolo de um grupo pouco modesto. A um custo de 184 milhões de dólares, a sede abriga os 310 funcionários da instituição. o projeto arrojado – feito com muito vidro, alumínio, tábuas de nogueira americana e xisto brasileiro – respeita a rigorosa legislação ambiental da Suíça. Para que não se ferisse a mata em torno, dois terços do lugar, cinco pisos, foram erguidos debaixo da terra. há pouca iluminação. “A luz deve irradiar das pessoas reunidas”, diz Blatter, de 75 anos, homem acostumado a frases de efeito.

Luz é o que se pede, nos últimos tempos, à Fifa, atolada em denúncias de compra de votos e malversação de fundos. Nem sempre há provas nas acusações, e algumas vezes quem aponta o dedo também tem culpa no cartório. O resultado: muita desconfiança, uma zona cinzenta que os faz impopulares no esporte mais popular do mundo. Mas convém olhar os dirigentes não como bandidos, atávicos gatunos, e sim como executivos de um negócio que cresceu tanto, mas tanto, que tudo o que o cerca movimenta bilhões de dólares e quantidade igual de disputas comerciais. São os custos do crescimento de uma organização que reúne 208 países (a oNu tem 192) e faturou mais de 2 bilhões de dólares apenas com os direitos de transmissão da Copa de 2010.

A realidade era muito diferente em 1904, quando nasceu a Fédération Internationale de Football Association, em Paris. o ato de fundação contou com representantes da França, Espanha, Bélgica, Dinamarca, Suíça, Suécia e Holanda. o francês Robert Guérin foi aclamado presidente. Como explicar a ausência dos ingleses na listagem? os fundadores do chamado esporte bretão tinham muito orgulho da sua FA – a Football Association -, liga do futebol inglês, criada em 1863. desdenharam da ideia de uma nanica Fifa. Guérin tentou em vão dissuadir o presidente da FA, o lorde Arthur Kinnaird.

Essa divergência inicial acabou fomentando uma rivalidade histórica entre franceses e britânicos na instituição. a FA aderiu relutantemente à Fifa em 1905. Em 1928, irritados com o então presidente da instituição, o francês Jules Rimet, que aceitava ligas semiprofissionais na entidade, os ingleses abandonaram a Fifa, para a ela só retornar em 1946. na presidência do britânico Stanley Rous, entre 1961 e 1974, os franceses deram o troco. foi na histórica disputa eleitoral entre Rous e João Havelange, em 1974, na qual os franceses apoiaram discreta, mas decisivamente, o brasileiro. a candidatura de Havelange vinha sendo tramada desde 1962, como confidenciou a Veja na época o dirigente Paulo Costa, da Confederação Brasileira de Desportos (CBD).

Os primórdios da federação dão ideia de quão incipiente era o mundo da cartolagem internacional. na primeira Copa do mundo, em 1930, no Uruguai, o presidente da Fifa, Jules Rimet, enviou convites de participação a todos os 46 países filiados (não havia eliminatórias). Acreditava, otimista, que metade atenderia ao convite. na data-limite das inscrições, nenhum dos 24 representantes da Europa havia se manifestado. Depois de muita insistência, Rimet conseguiu a adesão da França, Bélgica, Iugoslávia e Romênia.

Stanley Rous conduziu a Fifa como um seleto clube de lordes europeus, no qual os sul-americanos, apesar da relevância futebolística, eram tratados como cidadãos de segunda classe. Com as nações da África e da Ásia, reinava o descaso. Rous hesitava em abrir vaga automática para as seleções africanas participarem da Copa.

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Um olhar mais detalhado sobre a gestão de Rous é a comprovação de que, se as denúncias atuais são corrosivas, antes não se vivia um ingênuo conto de fadas. o inglês não escondia seus interesses. na Copa da Inglaterra, de 1966, os jogos da seleção brasileira contra Portugal, Hungria e Bulgária tiveram como juiz e bandeirinha sete britânicos e um alemão. Pelé foi impiedosamente caçado em campo, sob o olhar complacente da arbitragem, e saiu machucado da Copa. meses mais tarde, numa solenidade em Zurique, Havelange, então presidente da CBD, encontrou Rous. O inglês estendeu a mão, mas Havelange recusou-se a cumprimentá-lo. “O que você tem?”, perguntou Rous. “Faça um exame de consciência, você tem a resposta”, retrucou o brasileiro.

Era o início, naquele simbólico desentendimento, da segunda fase, a idade adulta, da história da Fifa. em junho de 1974, depois de uma tumultuada votação em dois turnos e debates acalorados, Havelange bateu Rous na disputa à presidência da organização. foi uma vitória apertada, 68 votos a 52, ganha com os votos dos representantes africanos e asiáticos. o brasileiro, hoje com 95 anos, cujo nome de batismo é Jean-Marie Faustin Goedefroid de Havelange, filho de um engenheiro belga que fez fortuna com o comércio de armas no Rio de janeiro, tinha planos ambiciosos para a Fifa. Entre as promessas de campanha estavam o aumento do número de seleções na Copa, de dezesseis para 24 (hoje são 32), ampliando nela a participação de países não europeus, e a organização de um campeonato de juniores, realizado fora da Europa.

Outra meta referia-se ao choque de gestão na empoeirada entidade. Empresário de sucesso no Brasil, dono da Viação Cometa, Havelange encontrou a entidade com o cofre quase vazio ao assumir. Ela funcionava no térreo de um velho edifício em Zurique. o staff limitava- se a uma recepcionista e um secretário- geral, que morava no andar de cima do prédio, junto à família, a um gato e dois cachorros.

Para reinventar a Fifa e o mundo do esporte – ou “sport business”, na definição de Havelange -, o presidente da Fifa encontrou o parceiro ideal em Horst Dassler, presidente da Adidas na França, filho do fundador da marca esportiva, Adolf “Adi” Dassler. A Adidas, apesar do poderio, não tinha dinheiro para injetar na Fifa. Para cobrir os ambiciosos planos de Havelange, porém, a solução encontrada para fazer caixa acabou mudando para sempre o negócio do futebol. A proposta de Dassler foi montar uma estrutura que servisse de ponte entre os organizadores de eventos esportivos e as companhias anunciantes, transformando a Copa do Mundo num pacote publicitário atrativo. em 1975, a Fifa vendeu seu grande produto ao maior anunciante planetário, um fabricante de refrigerantes.

No início, a Fifa teve dificuldade em lucrar com os direitos de transmissão dos jogos da Copa, hoje a maior fonte de renda. É compreensível que em 1954 a licença fosse dada de graça às pouquíssimas redes de TV existentes na Europa. Os direitos de transmissão de 1990, 1994 e 1998 foram vendidos por 92 milhões de dólares. Foi um negócio ruim, feito no momento em que a audiência global estava a ponto de explodir – hoje, os direitos são negociados a valores 25 vezes mais altos. “o ano de 1998 marcou a nossa última Copa pobre”, disse Joseph Blatter em maio passado à revista britânica The Economist. desde então, o nome do jogou mudou: deixou de ser futebol para virar dinheiro. “Quando começa uma Copa, já não me interesso, porque aí se trata somente de futebol”, diz o jornalista Andrew Jennings, autor do livro Jogo Sujo, acusador das entranhas da Fifa, persona non grata a quem é negada a credencial de jornalista para acompanhar o Mundial. “Tudo bem, porque a graça toda está no que acontece antes e depois do torneio.”

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A sede de Zurique, nos intervalos entre as Copas, é o palco de todas as negociações. A parte administrativa da Fifa ocupa os escritórios envidraçados dos pisos superiores do prédio. Na entidade, a batuta administrativa é do secretário-geral Jérôme Valcke, executivo francês, de 51 anos, que entrou na Fifa em 2003. Todos os departamentos da organização respondem diretamente a ele – o jurídico, o setor de competições internacionais, de relação com as federações, finanças, marketing e televisão. o marketing (área de expertise de Valcke) tem se tornado cada vez mais estratégico à vida financeira da Fifa. Com 47 profissionais, responde pelas seis parcerias comerciais da federação. Há também um seminal programa de licenciamento da marca Fifa, que é usada no famoso videogame Fifa ou até em maletas de viagem de grifes de luxo. Na governança do futebol, os braços da instituição estendem-se além de Zurique. em maio último, a entidade firmou com a Interpol a criação de uma “Ala de Treinamento Anticorrupção da Fifa” dentro do complexo global do órgão de polícia internacional em Singapura. o foco: o combate às apostas ilegais que assolam a Ásia.

O sucesso econômico e a visibilidade, a quase onipresença, cobram um preço, e ele é alto. A Fifa vive o dilema de ser uma empresa globalizada, financeiramente bem-sucedida, mas que funciona sob uma estrutura já arcaica, em muitos sentidos. “Se a Fifa fosse um país, a ONU estaria fazendo pressão para mudar o seu regime de governo”, comentou recentemente o jornal Qatar Gulf Times, em tom divertido. o comitê executivo da entidade, por exemplo, concentraria poder demais. Responsável pela escolha dos países-sede da Copa do Mundo da Fifa, sua estrutura é alvo de críticas. Composta de 24 membros saídos das associações nacionais de futebol, e encabeçada pelo presidente Joseph Blatter – que tem o voto de minerva nas reuniões -, seria frágil e suscetível à pressão de grupos de interesse, como no escândalo recente das supostas propinas que teriam influenciado a escolha da Rússia como sede da Copa de 2018. ele culminou no afastamento e na posterior renúncia de Jack Warner, da Confederação de Futebol da América do Norte, Central e Caribe (Concacaf), o membro mais antigo do comitê. Tais críticas não vêm de hoje. em 1983, o ex-secretário de estado dos EUA Henry Kissinger queixou-se de que, ao lidar com o comitê da Fifa, sentiu saudade da mediação de paz entre palestinos e israelenses, nos anos 70. Kissinger representou os EUA na disputa para sediar a Copa de 1986, corrida vencida pelo México, e escandalizou-se com a falta de transparência do processo – ou talvez seja reclamação de mau perdedor.

Segundo o historiador inglês Alan Tomlinson, coautor do livro Fifa and the Contest for World Football (Fifa e a competição pelo futebol mundial, de 1998, inédito em português), essa arapuca jurídica foi montada, inadvertidamente, por Stanley Rous, nos anos 60. Até então, a escolha do país-sede ficava a cargo do congresso da Fifa, órgão da entidade no qual cada federação nacional tem direito a um voto. o cartola acreditava que tal decisão ameaçava provocar “fissuras na amizade” entre as nações. Por 55 votos a 7, o congresso autorizou a mudança da decisão, que passou a ser da alçada do comitê executivo. Em 1966, o pequeno comitê da Fifa, presidido por Rous e reunido para um chá da tarde no hotel Royal Garden, em Londres, confirmou a Alemanha Ocidental (1974), a Argentina (1978) e a Espanha (1982) como sedes do Mundial de futebol. Sem polêmicas.

Rous via a Fifa como um clube de cavalheiros – e talvez ela assim fosse, em certo sentido, em 1966. Porém, no século XXI, tal visão é anacrônica, incompatível com o escopo atual da instituição e com os bilionários interesses em jogo. “É o clássico problema de governança”, disse a Veja o economista inglês Stefan Szymanski, da Cass Business School, de Londres, especialista em gestão esportiva. O sistema de escolha dos membros – pelas respectivas associações nacionais e confederações – tenderia ao conflito de interesses. “Não existe isenção necessária nas decisões executivas”, afirma Szymanski. A Fifa vive em uma encruzilhada de sua história, e é nesse cenário que seus dirigentes desembarcarão no Rio de Janeiro para o sorteio das eliminatórias.

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