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O mundo trans sai do armário – e invade o showbiz

Estreia da série documental 'I Am Cait', sobre a transição de gênero de Caitlyn Jenner, ex-Bruce, coroa momento de forte exposição

Por Meire Kusumoto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 29 jan 2021, 10h45 - Publicado em 26 jul 2015, 13h00

“Nunca estive tão animada com a vida.” Essa é uma das primeiras frases de Caitlyn Jenner em I Am Cait, série documental de oito episódios sobre a transição de gênero de Bruce Jenner, que até o começo de junho era conhecido apenas como ex-atleta olímpico e ex-padrasto da midiática socialite Kim Kardashian, além de uma das estrelas do reality show Keeping up with the Kardashians, do canal pago americano E!. Tudo mudou quando Bruce fez sua transição, apareceu na capa da revista Vanity Fair – foi o primeiro transgênero a figurar ali – e anunciou que, depois de 65 anos, finalmente estava sendo ela mesma. Não demorou para que ela se tornasse um fenômeno de visibilidade, com milhões de fãs nas redes sociais e os passos acompanhados de perto por câmeras vorazes de paparazzi. Caitlyn também se tornaria um símbolo da exposição que pessoas trans – aquelas que não se identificam com o gênero atribuído em seu nascimento – estão vivendo, principalmente em séries como Orange Is the New Black, Transparent e Sense8, em filmes como Uma Nova Amiga, de François Ozon, que acabou de estrear, e na moda, com a criação da agência de modelos Apple Model Management. Fundada na Tailândia, ela já se prepara para abrir uma filial nos Estados Unidos, igualmente dedicada a profissionais transgênero. O mundo trans está em cartaz.

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Em I Am Cait, que estreia neste domingo nos EUA e chega aqui uma semana depois, em 2 de agosto pelo E!, Caitlyn se arruma em seu quarto com a ajuda de duas assistentes, uma responsável por seu guarda-roupa e outra por seu cabelo e maquiagem, quando descobre que a Vanity Fair acaba de divulgar a capa e um trecho da reportagem feita com ela. Minutos depois, recebe uma ligação de Rob Kardashian, um de seus enteados, que elogia a sua beleza, e de Kim, que informa que ela já detém um recorde no Twitter: seu perfil alcançou 1 milhão de seguidores em apenas quatro horas, superando o de Barack Obama, que demorou cinco horas para chegar aos sete dígitos. “Adoro recordes!”, grita Caitlyn, enquanto suas ajudantes riem da piada – uma referência aos recordes sucessivos de Jenner no atletismo na década de 1970 e, mais especialmente, àquele que lhe rendeu uma medalha de ouro nas Olimpíadas de 1976, em Montreal, no Canadá. A marca do microblog não é a primeira de sua nova fase. Em abril, a última entrevista concedida pelo então Bruce Jenner foi vista por 17 milhões de pessoas, o melhor número da emissora americana ABC em quinze anos.

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No começo de julho, Caitlyn criou uma conta no WhoSay, espécie de rede social usada por famosos para manter contato com fãs por meio de fotos, vídeos e textos. Na primeira postagem, Caitlyn dizia sentir que havia chegado a hora de se aproximar de pessoas que tinham passado pelo mesmo processo que ela e que havia feito amizade com seis mulheres trans – o que deve aparecer em I Am Cait. Ela também tem feito amigas famosas, caso da atriz Laverne Cox, que se tornou o primeiro transgênero a estampar a capa da tradicional revista Time, em junho de 2014, e a ser indicada a um prêmio Emmy, no mesmo ano, pela série Orange Is the New Black, da Netflix. As duas se conheceram na última semana. “Ela é uma mulher tão doce”, contou Laverne no talk show The Late Late Show with James Corden, da rede CBS.

Laverne, aliás, é apontada como uma das responsáveis por abrir espaço aos trans na indústria do entretenimento. O seriado da Netflix, que retrata o dia a dia de um presídio feminino, estreou em 2013. Nele, Laverne faz a cabeleireira Sophia, uma trans presa por roubar cartões de crédito para pagar sua cirurgia de mudança de sexo – ou de redesignação, como preferem os trans. “Existe um interesse por histórias de superação e de pessoas que são verdadeiras com elas mesmas”, diz Monica Pimentel, vice-presidente de conteúdo da Discovery Networks Brasil, que prepara o lançamento de duas séries sobre o mundo trans, All That Jazz: A Vida de Jazz e New Girls on the Block, ambos no canal pago TLC. “Além disso, a revelação recente de pessoas famosas como Caitlyn Jenner e a aprovação da união homossexual nos Estados Unidos, entre outras medidas formais, levam a uma maior aceitação da sociedade. A busca dos canais por novas histórias para contar, combinada a um interesse claro da audiência, resulta na produção de conteúdo sobre o tema.”

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Daniela Chaparro, vice-presidente de marketing e serviços criativos do E! no Brasil, concorda. “Hoje, temos um ambiente mais aberto e confortável para tratar de temas como a transexualidade”, diz. A psicanalista e ativista transgênero Letícia Lanz também atribui o aumento das produções sobre personagens trans a certa curiosidade sobre esse universo. “As pessoas querem saber como são os transgênero, o que fazem, como vivem”, afirma Letícia, que nasceu Geraldo e levou cerca de cinquenta anos para se assumir como mulher. “Eu sabia desde os 3 anos, mas fiquei no armário até o dia em que tive um infarto.”

História parecida com a de Letícia é mostrada no seriado Transparent, que estreou no serviço de streaming da Amazon em setembro de 2014. Inspirada na vida de sua criadora, Jill Soloway, cujo pai se revelou transgênero depois dos 70 anos, a série retrata a transição de um professor de ciência política aposentado, divorciado e com três filhos crescidos. De Mort, o catedrático, se torna Maura. A produção, que deve estrear sua segunda temporada este ano, levou duas estatuetas no último Globo de Ouro, as de melhor série cômica ou musical e de melhor ator de série cômica ou musical para Jeffrey Tambor, intérprete de Maura, se tornando o primeiro seriado de um serviço de streaming a conquistar o troféu de melhor comédia ou musical no Globo de Ouro. E acaba de ser indicada a seis categorias no Emmy 2015, entre elas as de melhor série cômica e melhor ator em série cômica.

Apesar dos elogios a Transparent, a produção é criticada por ativistas trans por ter como protagonista um ator cisgênero – termo usado para definir a pessoa que se identifica com o gênero determinado em seu nascimento – e, segundo os descontentes, negar emprego a um legítimo transgênero. A criadora da série defende a escolha de Jeffrey Tambor. “Quando eu o via Jeffrey, ele me lembrava o meu pai”, disse Jill em entrevista ao jornal The New York Times. Jill contou também ter contratado consultores transgênero para ser o mais fiel possível a esse universo e que cerca de vinte atores e membros da equipe de produção da série são trans.

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O ator baiano Luís Miranda, que fez sucesso como a transgênero Dorothy Parker na novela das sete Geração Brasil, exibida pela Globo em 2014, considera uma bobagem esse tipo de crítica. “O que os atores mais querem é o desafio”, diz. O ator, que todo dia passava por transformações de mais de uma hora para encarnar Dorothy, entre maquiagem, cabelos, unhas, depilação e figurino especial, com prótese de seios e culote lateral, conta que a personagem teve rejeição zero. “Os autores da novela, Izabel de Oliveira e Filipe Miguez, fizeram da Dorothy uma mulher interessante, inteligente, atraente. E o público a via com carinho, uma pessoa divertida que tratava o filho, Brian (Lázaro Ramos), como eterna criança.”

Preconceito – Dorothy, no entanto, parece ser exceção. De 1º de janeiro de 2008 a 31 de dezembro de 2014, 1.731 transgênero foram assassinados, segundo a pesquisa Trans Murder Monitoring, da Transgender Europe, organização que luta pelos direitos trans na Europa. Outro levantamento, divulgado em 2011 pela National Transgender Discrimination Survey, associação criada para catalogar informações sobre a discriminação de transgênero, afirma que 41% de um total 6.450 entrevistados já haviam tentado cometer suicídio.

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Em maio de 2015, Kyler Prescott, um adolescente transgênero americano de 14 anos, tirou a própria vida. Em entrevista à rede ABC, sua mãe, Katherine Prescott, afirmou que acreditava que o suicídio havia sido motivado, em parte, pela falta de entendimento da sociedade. No primeiro episódio de I Am Cait, Caitlyn Jenner visita a casa de Kyler e conversa com a mãe, o pai e os amigos do garoto e afirma que desde a sua transição se sente um pouco responsável por esclarecer o público, antes de revelar que ela mesma já pensou em suicídio, muitos anos antes, quando estava sozinha em casa com uma arma de fogo. Monica Pimentel, da Discovery Brasil, acredita que a grande quantidade de produções sobre o tema pode ajudar as pessoas trans a serem mais bem compreendidas. “Programas de qualidade contribuem para evitar o preconceito”, diz.

Para a psicanalista Letícia Lanz, o debate tende a ser mais acalorado e eficaz nos Estados Unidos. “No Brasil, a discussão continua debaixo do tapete, cheia de contradições. Temos ótimas atrizes transgênero, como Laysa Machado e Maite Schneider. Mas cadê séries sobre elas?” Por aqui, a palavra transgênero tem circulado nos últimos anos graças à ex-BBB Ariadna, à modelo Lea T., filha do ex-jogador Toninho Cerezo, à cartunista Laerte e a Thammy Miranda, filho da cantora e dançarina Gretchen, que assumiu o gênero masculino. “O problema é que, depois que eu fiz a cirurgia de retirada dos seios, passei a me resumir a isso”, diz. “Nos Estados Unidos, o debate está mais avançado, mas a gente chega lá. Sou da opinião de que as pessoas não precisam aceitar, mas respeitar.”

O movimento trans está comumente atrelado a organizações que lutam por direitos de gays, lésbicas e bissexuais, mas há uma diferença e tanto na percepção entre pessoas transgênero e homossexuais. Para começar, a definição de trans não está relacionada à orientação sexual de alguém – uma mulher trans pode se relacionar com outra mulher, por exemplo, como é mostrado na série Sense8, da Netflix, com a personagem Nomi Marks. O movimento trans também tem sua própria bandeira, que não leva as cores do arco-íris, mas apenas três, em cinco listras horizontais: em ordem, azul, rosa, branco, rosa e azul de novo. “O que nos une é a discriminação e o sofrimento”, diz Toni Reis, presidente-fundador da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT).

​Uma das principais lutas do movimento atualmente é pela retirada da condição trans da lista de transtornos ou disforias do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), divulgado pela Associação Americana de Psiquiatria, e da Classificação Internacional de Doenças (CID), da Organização Mundial da Saúde. “A transexualidade é uma das múltiplas formas de entendimento de si mesmo. O gênero é algo artificial construído ao longo da modernidade”, afirma Daniela Murta, psicóloga e doutora em saúde coletiva pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). A Associação Americana de Psiquiatria diz manter a transexualidade no DSM para garantir que pessoas que desejam fazer a chamada redesignação de sexo recebam o diagnóstico médico para pleitear a cobertura por seu plano de saúde.

“Essa desculpa encobre a defesa de uma indústria incrivelmente rentável. Mas a cirurgia não é a única saída para a transexualidade. O que cada pessoa faz com o próprio corpo é problema dela e ninguém precisa ser reconhecido como transexual por um especialista”, critica Letícia Lanz. Caitlyn Jenner, que investiu milhares de dólares para suavizar os traços do rosto e colocar seios, é prova do que diz a psicanalista. Seu reconhecimento partiu primeiro dela mesma. Como bem disse ela a si mesma, ao estrear no Twitter, bem-vinda ao mundo, Caitlyn.

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