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George Miller, o pai de ‘Mad Max’

Por Isabela Boscov
15 Maio 2015, 23h03

O australiano George Miller tem 70 anos de idade, fala mansa, modos gentis. Mas, atrás da câmera, é um louco e um monstro. Em 1979, Miller largou a carreira de médico especializado em emergência para inventar o gênero pós-apocalíptico e reformatar o filme de perseguição – além de lançar o até então desconhecido Mel Gibson – com o primeiro Mad Max. Depois de duas continuações, em 1981 e 1985, e de outras revoluções (com os dois Babe e os dois Happy Feet), ele agora faz tudo de novo – e mais, e melhor – com Mad Max: Estrada da Fúria, que redefine o que é ação cinematográfica de altíssima octanagem. Miller saiu da cama de madrugada, em Sydney, para contar a VEJA, por telefone, a história de sua criação icônica.

Exatamente de onde veio a ideia para o primeiro Mad Max, 36 anos atrás?

Como qualquer outra coisa, Mad Max surgiu da conjunção de fatores variados. Cresci em lugares remotos da Austrália rural, onde existe uma cultura muito forte do carro – para o bem e para o mal. Por um lado, essa cultura do carro existe porque trata-se de localidades muito isoladas, em que deslocamento e velocidade são parte vital do dia a dia. Por outro lado, quando eu entrei na adolescência já tinha perdido três amigos em acidentes fatais. Daí me formei em medicina e fui trabalhar no pronto-socorro de um grande hospital, e o choque com os efeitos do culto ao carro se completou: não há como descrever as coisas horríveis que vi. Paralelamente a isso, eu começara a me interessar por cinema e em particular pelas revoluções da linguagem do cinema. O cinema é uma linguagem comparativamente nova; tem pouco mais de 100 anos de existência. E, como tudo que é novo, cresce e se desenvolve e ganha complexidade aos poucos. Mas o filme de ação, e em especial o filme de perseguição, é o fundamento da sua gramática, a forma que consegue atravessar de maneira mais plena as diferenças de época, cultura, idioma. As comédias de Buster Keaton e de Harold Lloyd, os faroestes mudos de um rolo só, essas coisas são pura linguagem cineatográfica. E dessa combinação então nasceu Mad Max: da vontade de fazer um filme de perseguição pura e do impacto da cultura do carro.

Trailer do Mad Max original

Mas há algo mais aí: Mad Max fundou o filme pós-apocalíptico da maneira como o conhecemos hoje.

Veja só como essas coisas acontecem. Nosso orçamento era minúsculo, pouco mais de 300 000 dólares, e não tínhamos dinheiro para filmar Mad Max como uma história contemporânea, porque aí teríamos que contratar figurantes para circular pelas ruas e encher os cenários com carros, fachadas de lojas etc. A solução quebra-galho foi essa: vamos ambientar o enredo no futuro, numa Austrália devastada e quase deserta, porque aí não vamos precisar gastar com nada disso. Foi por acidente, portanto, que Mad Max inaugurou o gênero do pós-apocalipse.

Não parece que a influência de Mad Max possa ser creditada a um simples acidente, porém.

Quando a filmagem começou, já tínhamos nos dado conta do quão feliz era esse acidente e de quanto partido poderíamos tirar dele: nesse futuro árido, todo o comportamento dos personagens podia ser reduzido ao que há de mais elementar e primitivo na natureza humana. Assim que o filme foi lançado, essas definições sobre o tom essencial de Mad Max começaram a pipocar: os americanos me diziam que era um faroeste sobre rodas, os japoneses, que Max era um samurai solitário, e os escandinavos, que ele era um viking errante. Max é um arquétipo fundamental da narrativa humana.

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Mad Max 2 acrescentou outro ingrediente à combinação: a crise do petróleo, que varreu o mundo a partir de meados dos anos 70.

Os australianos são um povo relativamente pacífico – bem pacífico até, eu diria. Mas, quando a crise do petróleo começou, demorou apenas dez dias para que acontecesse o primeiro assassinato em uma fila de posto de gasolina. Se você levar esse cenário até sua conclusão extrema, é isso que você terá: um mundo como o de Mad Max ou Mad Max 2, em que as pessoas se matam umas às outras pelo recurso mais precioso e mais escasso.

Trailer original de Mad Max 2

Por que o senhor decidiu que era preciso fazer um novo Mad Max trinta anos após o terceiro filme, Mad Max – Além da Cúpula do Trovão?

Os personagens que você cria são como amigos imaginários: eles não vão embora e não se separam de você. Neste caso, em particular, esses amigos imaginários começaram a ficar um bocado insistentes. Eles formaram uma história meio que por conta própria, e percebi que eu estava fadado a fazer mais um Mad Max.

Featurette Mad Max: The Legacy

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O filme pós-apocalíptico é até hoje uma vertente sólida do cinema americano. Mas continua a ser uma especialidade do cinema australiano – que aliás, é todo ele em geral muito sombrio e muito violento. Teria algo a ver com a natureza tão extrema da Austrália, com a sensação de isolamento, a imensidão dos desertos, o calor implacável?

Estamos em um continente vasto no qual, entretanto, a população tem de se concentrar junto ao litoral, porque a maior parte do território é extremamente hostil. As pessoas costumam dizer que nunca se lutou uma guerra em solo australiano, mas a verdade é que a guerra aqui é constante, contra o próprio solo e a paisagem. Ao menos para a população de origem europeia, claro – os aborígenes australianos acharam meios de sobreviver neles por 40 000 anos.

A ironia é que o senhor não pôde filmar o novo Mad Max: Estrada da Fúria no deserto australiano porque uma enchente inesperada fez com que ele florescesse.

Pois é, vínhamos de uma seca que já durava quinze anos, com precipitação praticamente zero. E, na hora em que íamos começar a rodar, choveu como nunca durante duas semanas e o deserto de sal do interior australiano virou um jardim, com capim na altura da cintura, flores lindas por toda parte, rãs e pássaros aos montes. O estúdio concordou em adiar o início da filmagem por um ano, porque o esperado era que o deserto voltasse a ser o que era. Mas ele continua lindo, e a alternativa foi transportar toda a produção para a Namíbia.

Como se muda uma produção desse tamanho, com tantos atores, figurantes e toneladas de equipamento, para um lugar tão sem recursos quanto o deserto da Namíbia?

Foi um exercício militar de proporções épicas. Tivemos de levar os 200 veículos usados no filme em contêineres, em navios. Os maiores, as “máquinas de guerra”, que não cabiam em contêineres, viajaram no convés de cargueiros por todo o Oceano Índico até a costa ocidental da África. Caríssimo. Mas não havia outra forma de fazer o filme.

A mudança para a Namíbia não seria também ela um acidente feliz? Toda essa dificuldade e esse ambiente tão inóspito de certa forma ajudam a jogar a equipe e o elenco no clima da história, não?

Com toda certeza. Não há dúvida de que as circunstâncias de uma filmagem transpiram para a tela, por assim dizer, e que neste caso elas tornaram o ambiente da história ainda mais palpável. Meu objetivo em Estrada da Fúria foi sempre o realismo máximo: carros de verdade trombando e capotando de verdade, gente sendo jogada deles de verdade, atores dirigindo de verdade em paisagens cem por cento reais. Este não é um filme em que dublês fazem tudo e o cenário é acrescentado em computação gráfica. É ação autêntica com gente de carne e osso. O que você está vendo é o que está acontecendo. Fora um ou outro efeito digital usado quando as condições de segurança eram extremas demais para que submetêssemos alguém ao risco, é tudo absolutamente real.

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Featurette sobre os carros de Mad Max: Estrada da Fúria

Mad Max: Estrada da Fúria consiste basicamente de uma única perseguição que se desenrola continuamente durante três dias, e na qual pessoas e veículos sofrem danos consideráveis. Garantir a continuidade nessas condições pode ser um pesadelo, não?

Se é. Para evitar erros, rodamos a ação sempre que possível na ordem em que ela acontece. O que também é muito bom para o elenco: quando se filma em continuidade, os atores não se perdem na jornada psicológica do personagem que interpretam, e “entram” nele de maneira cada vez mais profunda, com mais raça.

Featurette sobre Nux

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É verdade que o senhor fez 3 500 storyboards – desenhos com cada tomada de cada cena – para planejar Estrada da Fúria?

O que acho mais fascinante em fazer um filme é usar sempre a gramática mais essencial do cinema, até transformar a história em algo que um espectador japonês, por exemplo, poderia compreender integralmente mesmo que não houvesse legendas. Por isso, assim que delineei o enredo me sentei com três artistas de storyboard para desenhar cada tomada: primeiro, há pouquíssimos diálogos em Estrada da Fúria; segundo, o roteiro ficaria incompreensível – e chatíssimo – se tentássemos descrever nele, com palavras, o que acontece quando o carro deste personagem bate daquele jeito nesta máquina de guerra e assim por diante. Ação não é uma coisa que se diz, é uma coisa que se vê.

Isso quer dizer que o senhor tinha o corte final do filme na cabeça antes mesmo de começar a rodar?

Não, porque o storyboard não é capaz de expressar a mais fundamental de todas as dimensões do cinema: o tempo. Um filme é música visual. É a maneira como a ação acelera ou ralenta que transmite toda a emoção e causa todo o impacto, é o que dá todo sentido à história.

O que o senhor levou do trabalho tão exaustivamente laborioso e meticuloso exigido pelos dois Babe e os dois Happy Feet para um filme em que as decisões têm de ser tomadas ali na hora como Mad Max: Estrada da Fúria?

Todo filme é feito muito mais com o instinto do que com a racionalização. Usar animação em atores e bichos de verdade, como em Babe – o Porquinho Atrapalhado e Babe – O Porquinho Atrapalhado na Cidade, ou animação do começo ao fim, como em Happy Feet e Happy Feet 2, simplesmente proporciona ao cineasta mais tempo para ponderar seu instinto em relação a cada cena. Em um processo caótico como o de Mad Max: Estrada da Fúria, em que decisões cruciais têm de tomadas em segundos, esse tempo desaparece, mas a matéria-prima, o instinto, continua sendo a mesma. É como analisar um jogo de futebol ou estar no campo jogando. O que a animação faz é ajudar um cineasta a conhecer e dissecar os mecanismos do seu instinto – daí, quando se está no meio do deserto filmando ação em escala operística, como em Estrada da Fúria, sabe-se melhor até que ponto confiar no instinto.

Tom Hardy e Charlize Theron são ambos atores muito fortes – mas eles são bons de volante também?

A ação foi toda cuidadosamente coreografada, e ambos são atores de uma fisicalidade muito intensa. Charlize foi bailarina durante boa parte da vida, e ela é toda precisão; Tom foi jogador de rúgbi, e é atleticamente muito capaz. Parte do trabalho com Tom e Charlize e com o restante do elenco foi identificar as habilidades físicas específicas de cada um, e então encorajá-las e desenvolvê-las, ao mesmo tempo em que garantíamos a segurança deles em todos os momentos. É aí que entram aqueles toques digitais que mencionei: quando eles estão lutando no alto de um caminhão rodando a toda velocidade, estão presos em vários pontos por correias, para que, em caso de queda, não sejam esmagados sob as rodas do veículo. A interferência digital se resume a, na pós-produção, apagar as correias da imagem. Isso dá uma liberdade imensa aos atores e aos dublês, de superar seus limites físicos sem correr riscos graves. E veja que, em 120 dias de filmagem, quase todas as horas de cada dia envolviam algum tipo de ação. Mas não tivemos nenhum osso quebrado – só uns pequenos cortes, hematomas e esfoladuras.

Filmando no deserto

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E nem todo elenco tem o benefício de ter um diretor com experiência em medicina de emergência e traumatologia…

Bom, no primeiro Mad Max, por causa da falta de grana, eu fui mesmo o médico do set – pela lei australiana, todo set tem que ter um médico de plantão. O que significa que não me sobrava nem um minuto livre no dia, porque não falhava: não havia membro do elenco e da equipe que em algum momento não fosse me procurar para uma consulta de graça, com as queixas mais variadas. Nunca mais.

Outra coisa que mudou radicalmente desde então é o equipamento: há 35 anos, só em sonho se poderia entrar no meio da ação com as câmeras como o senhor faz em Estrada da Fúria.

Agilidade é a palavra-chave: as câmeras digitais podem rodar quase continuamente, sem necessidade de pausas inconvenientes para trocar o magazine de filme, e podem ser posicionadas literalmente em qualquer ponto da ação. Ou seja, pode-se filmar a ação de dentro dela, de ângulos e perspectivas antes inimagináveis, e com uma fluidez e uma intensidade de ritmo ilimitadas. Isso muda tudo – tudo. Até do ponto de vista da segurança a diferença é enorme. Até, digamos, cinco anos atrás, na hora de filmar uma explosão um técnico tinha de pôr a câmera para rodar e sair correndo dali antes da detonação; agora a câmera pode ser iniciada remotamente e ninguém corre o risco de ser apanhado no lugar errado na hora errada. Outra coisa: faltou equipamento? Em qualquer loja de aeroporto compra-se uma câmera de alta definição por 1 500 dólares, uma ninharia perto do que custavam as câmeras profissionais.

O senhor usou também um equipamento novo chamado The Edge. Pode explicar o que é?

Trata-se de uma câmera montada na extremidade do braço de um guindaste – o qual, por sua vez, vai montado em um veículo. O motorista põe o carro no meio de todos os outros veículos que estão participando da cena, o operador do guindaste cuida do balé, por assim dizer, e o cinegrafista opera a câmera por controle remoto. As oportunidades que esse equipamento cria de contrapor os personagens e os veículos em movimento à paisagem na qual eles estão se deslocando são absolutamente inéditas.

Como funciona o equipamento

https://youtube.com/watch?v=hatTUJT0Kxg%3Fstart%3D55

Entre o momento em que o senhor decidiu voltar a Mad Max e o lançamento de Estrada da Fúria, passaram-se quatorze anos: o 11 de Setembro pulverizou seu financiamento inicial, Mel Gibson, que retomaria o papel, enfrentou problemas públicos e pessoais, a Austrália deixou de ser viável como locação – o senhor teve vontade de desistir?

Não sei quantas vezes pensei, “isto nunca vai acontecer”. Fazer um filme implica aguardar que todos os elementos se alinhem do jeito certo, e neste caso eles não paravam de se desalinhar. No meio tempo me dediquei a outros projetos, fiz outros filmes – mas Max não queria ir embora.

O senhor temeu que, sem Mel Gibson, não seria possível haver outro Mad Max?

Quando um ator como Mel surge – e é raro que um ator assim surja -, é impossível não perceber que se está diante de uma personalidade única. É claro, portanto, que esse foi um dos meus maiores temores. Mas, quando Tom Hardy entrou na sala pela primeira vez, instantaneamente reconheci nele uma força similar à de Mel: uma espécie de magnetismo animal, de mistério, perigo e, paradoxalmente, uma sensibilidade especial. Como Mel, também, ele é um ator muito preparado, e um homem capaz de gerar uma empatia enorme sem qualquer esforço aparente. Um dado curioso: Tom nasceu seis semanas depois de termos começado a rodar o primeiro Mad Max. Ele tem a mesma idade de Max!

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