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Aleluia, rock ‘n’ roll

Eles têm atitude e visual roqueiros. Cantam sobre Deus e até tocam em igreja, mas não fazem hinos. Conheça o indie gospel brasileiro

Por Sérgio Martins e Raquel Carneiro
13 nov 2015, 21h55

Numa igreja na Zona Leste de São Paulo, no fim de outubro, cerca de 1500 pessoas esperam pelo Loop Session + Friends. Projeto encabeçado por Mauro Henrique, cantor do grupo evangélico Oficina G3, pelo também cantor Leonardo Gonçalves e por Guilherme de Sá, vocalista da banda católica Rosa de Saron, o trio cultiva uma sonoridade muito diversa da que existe na música gospel tradicional, que é mais afeita a cantos de louvor para levar a multidão fiel ao êxtase. As composições tranquilas do Loop Session + Friends conjugam um violão com timbre de folk americano a programações eletrônicas de teclado. O público responde no mesmo tom: canta as letras baixinho, para não atrapalhar a concentração dos músicos, mas se exalta quando Gonçalves, uma espécie de galã do universo adventista, sobe ao palco-púlpito. Depois da primeira hora de show, o trio para de tocar, senta-se num sofá e entabula um bate-papo com os presentes. Fala-se pouco de religião e muito de música, inclusive sobre detalhes técnicos como afinação de instrumentos (alguns dos presentes parecem ser músicos aspirantes). Comportamento similar pôde ser observado, no início de novembro, nas apresentações do duo Arrais. Adventistas, os irmãos Tiago e André passaram por seis capitais brasileiras (e com teatros lotados) levando sua mistura de música folk e conversa. A plateia do rock de Jesus, porém, nem sempre é tão comportada. Em apresentações como a do quarteto brasiliense Salzband ou do grupo paulistano Oficina G3, ela pode dançar ou sacudir a cabeça como se estivesse num show de heavy metal. Rodolfo Abrantes (ex-integrante do grupo Raimundos) e suas orações meio faladas, meio cantadas estimulam a presença de uma turma extática, que recebe as palavras de mãos abertas e olhos fechados. O rock é parte do grande balaio de gatos batizado como música gospel. Outrora combatido por sua suposta associação ao oculto, ele tem sido aceito nas igrejas, embora não se equipare à popularidade da música de louvor rasgado de cantoras como Aline Barros, Cassiane e Damares.

A ampliação de cardápio no showbiz da fé reflete a diversificação do universo evangélico – hoje estimado em 45 milhões de brasileiros, segundo dados do IBGE. De acordo com o levantamento de outro instituto de pesquisa, o Data Popular, evangélicos e protestantes correspondem a mais de um terço dos jovens de 16 a 24 anos. “Houve um crescimento enorme da população evangélica, o que significa que a maioria desses fiéis não tem tradição de igreja. Isso se reflete na música. Muitos carregam consigo os gostos que tinham antes da conversão”, diz Leonardo Gonçalves. E esse gosto pregresso inclui, claro, o rock.

A ambição do indie gospel, porém, não é só pregar aos convertidos. Ela se estende ao mercado mais geral, que, no vocabulário evangélico, é chamado de “secular”. “Estamos salvando o rock nacional, tanto na qualidade da música quanto na quantidade do público”, alardeia Guilherme de Sá, da católica Rosa de Saron, uma das bandas de ponta do rock gospel, que na última semana lançou um CD/DVD acústico e tem lotado shows ao ar livre e em casas de espetáculos fora do ambiente religioso. De fato, essa vertente tem aprimorado seus métodos de produção. Os Arrais gravaram em Nashville, com um produtor de música cristã, mas acostumado ao universo country e folk; o mais recente disco do Oficina G3, Histórias e Bicicletas, foi mixado em Londres por engenheiros que já cuidaram de produções do Radiohead e do Arctic Monkeys; e a sonoridade da Salzband evoca Strokes, Franz Ferdinand e outros roqueiros da moda. Mais uma mudança: em vez de falarem explicitamente de Deus e religião, os letristas usam alusões e metáforas, muitas vezes mais elaboradas do que o eterno discurso de autoajuda de grande parte do rock brasileiro secular, de Nando Reis a Pitty. “O que atrai o público, seja ele cristão ou não, é o fato de querermos retratar em nossas letras algo legítimo”, diz Tiago Arrais.

O indie gospel não é exclusividade das igrejas brasileiras. A Hillsong, igreja e selo musical australiano, tem servido de referência a músicos brasileiros – e não apenas da vertente gospel. “O último disco de Luan Santana tem uma sonoridade que lembra as produções da Hillsong”, revela Maurício Soares, diretor do braço gospel da Sony Music. “Isso porque Dudu Borges, que produz Luan, pertenceu a uma banda gospel e conhece bem o mercado.” Michael Gungor, produtor e compositor americano, também é objeto de admiração dos indies de Deus. Comparado a artistas do mundo folk dos Estados Unidos, ele revela certo desconforto com o rótulo “música religiosa”. “Eu não divido música em categorias. Música é música. Tentamos fazer algo honesto, que abraça o coração humano”, diz ele a VEJA. O rock religioso não tem tanta força na Europa, mas o Rend Collective, banda da Irlanda do Norte que tem sido comparada a figurões do indie como o conjunto canadense Arcade Fire, não se incomoda em ver sua música classificada como religiosa. “Não temos vergonha de ser cristãos”, diz Gareth Gilkeson, líder e baterista do grupo, que também atua como pastor.

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No Brasil, a escalada dos roqueiros de Deus foi lenta. O caminho foi aberto, à força de solos de guitarra e de citações da Bíblia, por bandas como Rebanhão, no início dos anos 1980. Os itens obrigatórios do visual pós-punk nem sempre foram bem aceitos nos meios carolas. “Quando eu ainda usava brinco, um pastor pediu para eu tirá-lo antes de me apresentar na igreja”, lembra Juninho Afram, do Oficina G3. Mauro Henrique recorda que foi praticamente enxotado de uma igreja quando o pastor descobriu que sua banda iria tocar rock’n’roll em vez de hinos sacros. O roqueiro cristão também sofreu com a falta de bons locais para fazer show. As igrejas de outrora mal tinham espaço para acomodar uma bateria perto do altar, e a acústica nunca foi das melhores (aliás, essa ainda é uma dificuldade para as bandas atuais).

Existe ainda uma confusão em relação ao termo “gospel” no mercado musical. Nos Estados Unidos, o termo diz respeito sobretudo à música de louvor negra. Uma banda de heavy metal como o P.O.D. já cai na genérica categoria “christian music” – mas sem deixar de ser heavy metal: o P.O.D., por sinal, faz sucesso também entre não convertidos. No Brasil, porém, “gospel” tornou-se uma imensa e bagunçada salada, que inclui do sertanejo “de louvor” ao rock. Nesse imenso universo, o indie gospel tem um lugar indeciso. Está longe do mainstream evangélico, representado por cantores da vertente pentecostal. “Predomina uma mistura de música nordestina com sertanejo que só existe no Brasil”, diz Soares. E, se há má vontade dos ouvintes da chamada música secular em relação ao universo gospel, o contrário também é verdadeiro. Leonardo Gonçalves foi criticado por alguns fiéis por ter incluído músicas de artistas não religiosos, como a banda inglesa Mumford & Sons, numa lista de canções preferidas. “E vou continuar fazendo isso. Sou contrário a qualquer tipo de fundamentalismo.”

Os roqueiros de Deus têm pouca penetração nos meios “profanos” de divulgação musical – rádios não religiosas costumam passar ao largo de suas músicas. Essa é uma realidade internacional. Os músicos cristãos cultivam o público pelas redes sociais. “A internet é a ferramenta que usamos para a comunicação. É onde os fãs compartilham nossas músicas”, diz Michael Gungor, do duo Gungor – e 90% das vendas do grupo são digitais. O Rend Collective viu sua plateia crescer graças aos serviços de streaming como Spotify e Apple Music. Seus vídeos no YouTube foram vistos mais de 27 milhões de vezes.

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No visual, o indie cristão quase não se distingue do rock não religioso. Como se atesta nas fotos desta reportagem, eles não são de ostentar cruzes nem símbolos religiosos. Exibem tatuagens, cabelões de hippie e barbas de hipster. Mas, não importa que igreja frequentem, todos afirmam o propósito de viver de acordo com a fé que suas letras professam. Rock’n’roll, mas sem drogas, e só sexo conjugal. Juninho Afram, o excelente guitarrista do Oficina G3, define isso com uma expressão curiosa: “A gente quer passar no ISO 9000 divino”.

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