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‘A Regra do Jogo’ x ‘Os Dez Mandamentos’: uma guerra de audiência e valores

A insistência da Globo na fórmula do realismo urbano favoreceu a Record, cuja trama bíblica atraiu espectadores que sentem falta de valores mais tradicionais na sua dieta de ficção televisiva

Por Maria Carolina Maia e Meire Kusumoto
22 nov 2015, 15h52

Moisés (Guilherme Winter) ergue o seu cajado para o céu e fala com ninguém menos do que Deus, em uma cena de Os Dez Mandamentos, da Record. No mesmo momento, em outro canal, o anti-herói atrapalhado Romero Rômulo (Alexandre Nero) bate a mão fechada sobre o peito para cumprimentar um colega da Facção, o grupo criminoso que mata, rouba e trafica drogas em A Regra do Jogo, a novela das nove da Globo. Na internet, as sequências recebem comentários marcados por palavras como “decente”, “ensinamentos”, “baixaria” e “lixo”, escritos por espectadores inflamados. Pela primeira vez, novelas da Globo e da Record são terreno não apenas para disputa pela audiência – com uma série inédita de vitórias para a Record – mas para um confronto de valores.

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“Sim, pode-se dizer que é uma guerra de valores”, diz João Carlos Massarolo, pesquisador de narrativa seriada associado à Universidade Federal de São Carlos (UFScar). Para ele, a decisão da Globo de trabalhar nos últimos anos na linha das séries americanas, marcadas por personagens dúbios e anti-heróis, acabou afastando a emissora de um público mais tradicional, afeito a novelas voltadas para toda a família, com personagens de caráter bem delineado e tramas mais românticas. A Regra do Jogo, com seu ritmo extremamente acelerado e capítulos encabeçados por títulos, como se fossem episódios, é o exemplo mais bem acabado dessa influência das séries. “A Globo tem dado espaço a um trabalho de certa forma autoral, mas esse trabalho só agrada a uma parte do público, aquela que está familiarizada com a figura do anti-herói. Trata-se de de um nicho”, diz.

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Nesse contexto, a troca de A Sagrada Família, título provisório da novela que Maria Adelaide Amaral e Vincent Villari escrevem para a faixa das nove, por Velho Chico, folhetim de Benedito Ruy Barbosa ambientado no sertão nordestino, na linha de sucessão de A Regra do Jogo, parece uma estratégia para resgatar o público que mudou de canal, cansado dos cinquenta tons de cinza das tramas urbanas e realistas da Globo. “É mais fácil a Globo retroceder um pouco e recuperar o público de massa que se desgarrou com uma novela mais rural, voltada para a família brasileira, sem tantas questões políticas e sexuais, do que a Record manter o bom desempenho”, aposta Massarolo, para quem a temática bíblica eleita pela emissora não tem fôlego para emplacar outro sucesso como Os Dez Mandamentos, que, depois de muito esticada, chega ao fim nesta segunda-feira. E é essa a aposta da Record: em junho, entra no ar Terra Prometida, continuação da saga de Moisés protagonizada por Josué (Sidney Sampaio).

“A novela da Maria Adelaide Amaral poderia representar um risco maior para a Globo. Já a tradição narrativa do Benedito é um caminho mais seguro, as novelas dele falam mais facilmente a uma diversidade de público”, diz Maria Carmen Jacob de Souza, professora de teledramaturgia da Universidade Federal da Bahia (UFBA). “Além disso, o espectador de novela quer um pouco de refresco. Novela não é um produto a que se fique atento o tempo todo. Não é só tensão, tem de ter apelo sentimental.”

A escalação de Benedito Ruy Barbosa, que em Velho Chico terá a filha e o neto, Edmara e Bruno, debruçados sobre o texto, guarda em si uma ironia. A única vez em que a Globo viu sua principal novela, a sua maior fonte de audiência e de faturamento publicitário, apanhar no Ibope foi para um folhetim do autor, Pantanal, que ele chegou a oferecer para o canal e terminou exibindo na Manchete, em 1990. Agora, o mesmo Benedito, que andava relegado à faixa das seis da Globo, é convocado para salvar a lavoura.

Monocultura –Pantanal foi uma loucura. Nunca se havia feito uma novela tão rústica. As pessoas querem ver esse tipo de coisa”, diz Claudia Mariza Braga, professora do Departamento de Letras, Artes e Cultura da UFSJ (Universidade Federal de São João del-Rei). Claudia também acredita que a Globo tenha errado por insistir em novelas “muito parecidas seguidamente”. Basta um rápido retrospecto para se verificar que as últimas tramas da emissora se passaram no Rio de Janeiro, com bastante realismo e com um pezinho (quando não os dois) na periferia. Exceto por Amor à Vida (2013), ambientada em São Paulo e calcada na questão da sexualidade do personagem Félix (Mateus Solano), todas as outras se encaixam nesse perfil: Avenida Brasil (2012), Salve Jorge (2012), Em Família (2013), Império (2014), Babilônia (2015) e, agora, A Regra do Jogo, retorno do autor de Avenida Brasil.

Foi aí que a Record encontrou uma brecha para atacar. “As pessoas sentem falta do contraponto à violência na TV. A Globo fez uma opção pelo realismo, com personagens amorais. Já se você tipifica bem o vilão, tem um gancho maior com o público”, diz Claudia. “A Globo perdeu o equilíbrio, a habilidade de mesclar realismo e romantismo. Os valores tradicionais estão na base da nossa sociedade, e o crescimento evangélico só reforça isso.”

Foi também a partir dessa especialização empreendida pela Globo que o SBT encontrou espaço para consolidar a sua dramaturgia de nicho. As versões de novelas hispânicas assinadas pela mulher de Silvio Santos, Íris Abravanel, miram o público infantil e vêm conseguindo bons índices de audiência para a emissora. Chiquititas teve 10,9 pontos de média no Ibope da Grande São Paulo. Carrossel e Cúmplices de um Resgate, a mais nova das três, 10,7 e 11,8 pontos, respectivamente. “A novela infantil pega pais e filhos pela inocência”, diz Claudia.

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Reparo no ar – Enquanto Velho Chico não vem, a Globo faz ajustes em A Regra do Jogo em pleno voo. A novela de João Emanuel Carneiro, que é centrada na operação da Facção, um grupo criminoso que ameaçaria a segurança do Rio de Janeiro, investe agora em adoçar sua trama com a formação de novos casais.

A linda e loira Carolina Dieckmann entrou para fazer par com Dante (Marco Pigossi), o policial azarado que namorava a prima maluquinha Belisa (Bruna Linzmeyer), com quem não tinha nada a ver. Ao mesmo tempo, Juliano (Cauã Reymond), agora convertido em herói em sua luta quase solitária contra a Facção, e Romero Rômulo (Nero), a caminho de se regenerar, disputam a mocinha Tóia (Vanessa Giácomo), atualmente dividida entre ambos.

E, para socorrer as sofridas Nora (Renata Sorrah) e Domingas (Maeve Jinkings), que apanha do marido, a Globo escalou dois bofes de presença: Oscar Magrini e Carmo Dalla Vecchia. Este, aliás, está se especializando em salvamentos. Quando Drica Moraes adoeceu e Império perdeu sua grande antagonista, ele foi chamado por Aguinaldo Silva para movimentar a trama no papel de Maurílio, fazendo frente ao Comendador José Alfredo, papel de Alexandre Nero. O remendo, ali, deu certo.

Agora é ver se João Emanuel e sua turma de colaboradores encontram o ponto certo no coquetel de violência e amor que se tornou A Regra do Jogo. Ou se a Globo vai ter de esperar até a próxima trama para recuperar o público que debandou para as areias do Sinai.

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