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A fé em cartaz: Hollywood redescobre o filão bíblico

Constante na história do cinema, mas esquecido nos últimos anos, o livro sagrado cristão retorna à bolsa de apostas dos estúdios e pode ser o grande fenômeno de bilheteria em 2014

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 14 dez 2013, 17h59

Desde o surgimento do cinema, no fim do século XIX, a Bíblia é pauta recorrente de estúdios e roteiristas. Hollywood já tratou do tema em diversos momentos, dos quais se destaca, pelo volume e pela qualidade das produções, aquele entre os anos 1950 e 1960. Agora, o filão bíblico retoma o seu lugar na tela, com cinco filmes planejados para estrear em 2014. Entre as figuras já confirmadas no tapete vermelho no próximo ano, estão os profetas Noé e Moisés, Maria e seu filho, Jesus.

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Ao se apropriar da Bíblia, o cinema sempre esteve atento não apenas à mensagem religiosa, mas ao lado épico das narrativas, e seu potencial como espetáculo. O desafio de reconstruir um passado mítico – um tempo de milagres – tem apelo evidente para um meio como o cinema, e apelo redobrado numa era em que os efeitos especiais são pedra angular de boa parte das produçôe. Com um orçamento estimado em 130 milhões de dólares e o apelo de “cinema catástrofe”, Noé, por exemplo, deve atrair interessados não só na moral da história, mas no espetáculo visual proporcionado pelo longa. “O nicho é antigo e tem potencial, principalmente agora que há mais e melhores efeitos visuais”, diz André Gatti, professor de história do cinema na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap).

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Noé e sua arca serão os primeiros a desembarcar, com o perdão do trocadilho, nas salas escuras brasileiras. Prevista para estrear em abril por aqui, a superprodução Noé é assinada pelo diretor Darren Aronofsky, o mesmo de Cisne Negro (2010) e Réquiem para um Sonho (2000), e traz no elenco os vencedores do Oscar Russell Crowe (Gladiador), no papel do protagonista, e Anthony Hopkins (O Silêncio dos Inocentes), e as estrelas adolescentes Emma Watson (da série Harry Potter) e Logan Lerman (da saga Percy Jackson).

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Entre as demais produções previstas para o ano que vem, estão Exodus, que vai narrar a história de Moisés com Christian Bale (Batman – O Cavaleiro das Trevas) no papel do líder e profeta hebreu e Ridley Scott (Gladiador, Cruzada e Prometheus) na direção; Mary, do cineasta Alister Grierson, sobre a mãe de Jesus; Son Of God, sobre a vida de Jesus, baseado na minissérie de sucesso mundial A Bíblia, vista por mais de 13 milhões apenas em seu episódio de estreia nos Estados Unidos; e Deixados para Trás, remake da trilogia evangélica de mesmo nome iniciada em 2000 e concluída em 2005. Baseada no livro Apocalipse, a produção, que terá Nicolas Cage (O Senhor das Armas) à frente, vai mostrar a vida dos que ficaram no plano terreno após o arrebatamento – a ação em que Deus leva para o céu os que são considerados justos e, portanto, dignos de salvação no Juízo Final.

Para além de Noé e Moisés

  1. Presente nas mais diversas culturas, inclusive entre os índios brasileiros, a história de um grande dilúvio capaz de alterar a face do mundo não é exclusividade de Noé e sua arca. Contada no boca a boca desde que foi criada, provavelmente por volta de 1.400 antes de Cristo, a saga do patriarca apresenta grandes semelhanças com outros dois mitos babilônicos, um sumério e outro acádio, que contam como a ira divina se abate sobre a humanidade na forma de uma grande e destruidora chuva.

    “No mito sumério, o herói escolhido pelos deuses para sobreviver se chama Ziusudra. No acadiano, Utnapishtim”, conta Lidice Ribeiro, antropóloga e professora de ciência da religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “A diferença de Noé é que ele tenta pôr mais gente na arca. Nas outras histórias, não há interesse de salvar outros. E a duração do dilúvio é diferente: na Bíblia, são 40 dias e 40 noites, nos mitos babilônicos, 7 dias e 7 noites.” Além disso, as histórias se distinguem no desfecho. Noé recebe a missão de repovoar a Terra, enquanto os outros heróis ganham vida fértil em locais similares ao paraíso.

    É esse perfil generoso e responsável, de fundo moral, que fez de Noé um personagem adequado à Bíblia, onde entrou pelas mãos dos judeus que primeiro formataram o Velho Testamento, transcrevendo em aramaico 39 histórias consideradas sagradas da região. “A Terra tem uma nova chance por causa de um homem fiel a Deus. Nos outros mitos, essa fidelidade não aparece”, diz Lidice.

    No longa Noé, do diretor Darren Aronofsky, é possível esperar certa influência dos mitos babilônicos. O cineasta produziu uma graphic novel chamada Noah: For the Cruelty of Men (Noé: Pela Crueldade dos Homens, em tradução direta), lançada em francês em 2012. O texto da HQ traz um Noé tomado por certa angústia e, sintoma dos tempos atuais, mensagens sobre os problemas ambientais. Aronofsky descreve ali o personagem como um homem “obscuro e complicado”, que carrega em si a “culpa da sobrevivência”.

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    Outra importante figura no Velho Testamento que terá sua história revista nos cinemas em 2014, no filme Exodus, é Moisés, personagem central também de Os Dez Mandamentos, estrelado pelo ator Charlton Heston e um dos mais importantes longas religiosos da história. Assim como Noé entrou na Bíblia para defender os valores que carregava, Moisés também teve a sua missão ao entrar no livro sagrado. A história do mais importante patriarca para os judeus foi usada, de acordo com Tércio Siqueira, professor da Universidade Metodista de São Paulo, para estimular os hebreus no período que se seguiu ao maior desastre sofrido por esse povo, no início do século VI a. C., o cativeiro na Babilônia, quando os judeus foram levados como escravos, em massa, por ordem do imperador Nabucodonosor II.

    “A história de Moisés deve ser comparada com a narrativa sobre José (Gênesis 37 – 50). A razão dessa leitura paralela é que a história de José ensina que o povo bíblico precisa aprender a conviver com os estrangeiros; enquanto a história de Moisés ensina que os israelitas precisam libertar-se dos poderes opressores para desenvolver uma nova proposta de sociedade”, diz Siqueira.

“São produções confortáveis para todos – para o estúdio, que faz uma aposta certa, e para o público, que, se já conhece o final da história, pode admirar sua nova roupagem. E os filmes agora devem vir em iMax, 3D e, provavelmente, 4D, com cheiros, temperaturas variadas e movimentos das cadeiras”, diz Gatti. “Por não ter censura, a família vai reunida ao cinema, principalmente no caso do Brasil, que tem uma formação cristã. Esses elementos tornam o longa ainda mais rentável.”

Cristãos mais fervorosos, contudo, devem diminuir as expectativas sobre essa nova safra bíblica no cinema. Blogs e sites religiosos americanos já alertam seus seguidores de que boa parte dos longas não seguirá o livro sagrado ao pé da letra e deve, na verdade, representar novas leituras e estudos sobre seus personagens, considerados por alguns até como heresias.

“A grande diferença entre as produções bíblicas anteriores, principalmente as dos anos 1950 e 1960, e as que virão, será a falta da ‘reverência'”, diz Luiz Vadico, professor da Universidade Anhembi Morumbi e pesquisador das relações entre Cinema e Religião na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Havia uma preocupação entre cineastas e religiosos da época de se criar e estabelecer uma imagem das sagas bíblicas que fosse respeitosa e distante do ‘mundano’. No trailer de Son of God, Jesus Cristo é mostrado como uma espécie de super-herói com grandes poderes. Não se aproxima do Cristo histórico, mas dos X-Men.”

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Filmes x estudos – Nos Estados Unidos, Son of God será o primeiro a estrear, em fevereiro. Ainda sem data para chegar ao Brasil, o longa é derivado da minissérie A Bíblia, e vai narrar toda a vida de Jesus Cristo. “Jesus não era representado no cinema há 10 anos, desde o filme A Paixão de Cristo, de Mel Gibson, em 2004″, diz Roma Downey, atriz que vive Maria na série e no longa-metragem, em entrevista ao site de VEJA. “Será um filme épico, com milagres, lindas paisagens, uma bela trilha sonora e um elenco multicultural. O orçamento ultrapassou pouco mais de 20 milhões de dólares”, conta Roma, que também é produtora da série e do longa.

Ela sugere que o sucesso da série, exibida pelo canal americano History Channel e acompanhada por mais de 100 milhões de espectadores nas cinco noites em que foi ao ar nos EUA, foi um dos motivos que despertou a indústria do cinema para o tema. Além do filme, o programa rendeu frutos como um livro baseado em seu roteiro, um box com quatro DVDs cheios de extras, que será lançado dia 20 de dezembro no Brasil, e uma segunda temporada, também prevista para 2014. “Por enquanto, a continuação televisiva se chama A.D. Ela vai seguir a vida dos discípulos de Jesus após sua morte”, conta a atriz.

Por aqui, A Bíblia é exibida pela TV Record, que alcançou com ela a vice-liderança no Ibope da faixa das 21h30, às quartas-feiras. A emissora encontrou o caminho para a boa audiência ao produzir programas pautados na Bíblia: A História de Ester (2010), Sansão e Dalila (2011), Rei Davi (2012) e José do Egito (2013). Para o primeiro trimestre de 2014, o canal prepara o seriado Milagres de Jesus e estuda uma possível adaptação da história de Moisés.

Reforçando a ideia de Bíblia para todos, Roma diz que a proposta do filme não é fazer publicidade religiosa, e sim mostrar um personagem histórico e sua ação política. A visão é próxima da apresentada pelo autor Reza Aslan, pesquisador islâmico e autor do recém-lançado Zelota: a Vida e a Época de Jesus de Nazaré (tradução Marlene Suano, Zahar, 308 páginas, 36,90 reais). Aslan defende que Jesus não pretendia trazer a paz ao mundo, mas sim lutar pela igualdade e contra o domínio do império romano. “Escolhemos o ator português Diogo Morgado para o papel principal, pois queríamos um ator que pudesse passar ao mesmo tempo a ideia de um leão e de um cordeiro, que são as duas características principais da personalidade de Jesus”, diz Roma, sobre o belo ator de olhos claros e sorriso econômico.

O ponto de vista do pesquisador Aslan sobre Jesus está longe de ser novo. Diversos outros autores, como o teólogo americano Ched Myers e o norueguês Halvor Moxnes, já lançaram obras e estudos na mesma linha. O foco em pesquisas sobre a personalidade de Jesus, sua aparência e possíveis laços afetivos pode estar ligado ao fato de que, por muito tempo, os motes dos estudos tinham o intuito de provar ou não a sua existência. Após descobertas arqueológicas como a urna funerária de pedra com a inscrição em aramaico “Tiago, filho de José, irmão de Jesus”, última grande evidência encontrada, em 2002, e a múltipla confirmação de sua passagem pela Galileia por testemunhos de contemporâneos ou nomes de gerações imediatamente posteriores, restam poucos estudiosos que duvidam da sua existência.

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https://youtube.com/watch?v=I1U0ZJ3xkdM

Histórico e retomada – Desde que o mundo é mundo, a religião é usada pelo homem para dar sentido à vida. Por isso, não é de se estranhar que filmes de cunho místico atraiam tanta gente. Também não é de se estranhar que os primeiros longas de temática bíblica, os chamados “filmes de Cristo”, sobre a vida ou a morte de Jesus, tenham surgido em 1896, praticamente junto com a invenção dos irmãos Lumière. Essa onda inaugural da Bíblia na sala escura seguiu até o final dos anos 1920, quando despontou o diretor Cecil B. DeMille, que fez, então, a primeira versão do seu clássico Os Dez Mandamentos (1923). Ao longo da carreira, o diretor se aventurou por outras histórias que flertavam com as teorias e os valores cristãos, ora questionando-os, ora seguindo as escrituras ao pé da letra.

A sua mais aclamada incursão na área se deu no período mais prolífico do filão, entre os anos 1950 e 1960, com o remake de Os Dez Mandamentos (1956). Com melhores recursos de tecnologia e um orçamento gordo de 13 milhões de dólares – fortuna para época, mesmo em Hollywood -, o cineasta conquistou, então, sete indicações ao Oscar, inclusive a de melhor filme, e levou para casa o prêmio de efeitos especiais. Entre os truques usados no filme, o mais comentado é, sem dúvida, o da abertura do Mar Vermelho. Para isso, DeMille filmou dois grandes tanques jorrando água e depois utilizou as imagens de trás para frente.

Desse período, destacam-se outras grandes produções como Sansão e Dalila (1949), também de DeMille, indicado a cinco Oscars e vencedor de dois, de melhor direção de arte e figurino; Ben-Hur (1959), o longa de William Wyler que faturou 11 estatuetas no Oscar e que não é propriamente bíblico, mas se passa na época de Jesus e, em certos momentos, cruza com a história do nazareno; e A Maior História de Todos os Tempos (1965), sobre Cristo, dirigido por George Stevens e David Lean e indicado a cinco Oscars.

Esses filmes surgiram no contexto do pós-guerra, em que valores religiosos eram bem vistos. Recuperar a fé não era, no entanto, a razão do investimento em tais longas. Neutros, eles ajudavam a proteger cineastas da perseguição política promovida pelo macarthismo. “Filmes de temática religiosa tendiam a comprometer menos os estúdios no período da ‘caça às bruxas’, que buscava encontrar comunistas e seus simpatizantes em meio à indústria cinematográfica”, conta o professor Vadico. “Era um risco muito menor investir em produções que deixassem claro que eles estavam do lado da fé, contraponto ao ateísmo comunista.”

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Depois de um tempo apagado, o gênero religioso fez algumas tímidas tentativas de retorno nos anos 1970, mas com um caráter mais irreverente, como se vê em Jesus Cristo Superstar (1973), de Norman Jewison. Na década de 1980, a produção bíblica volta a ter força (e seriedade), com longas como Rei Davi (1985), de Bruce Beresford, com Richard Gere no papel-título, e A Última Tentação de Cristo (1988), de Martin Scorsese, que foi indicado ao Oscar de melhor direção pelo filme.

A produção mais significativa a vir na sequência foi A Paixão de Cristo, lançada por Mel Gibson em 2004. Com 30 milhões de dólares no orçamento, o cineasta abusou das cenas de violência e apelo emocional. Como resultado, conseguiu três indicações ao Oscar e mais de 611 milhões de dólares em bilheteria, sendo 15 milhões de dólares apenas no Brasil, a quinta melhor arrecadação do filme no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, Itália, Reino Unido e México.

“Um dos principais feitos do filme do Mel Gibson foi a fidelidade histórica que ele prometeu, valorizada pelo público que não gosta das alterações em histórias originais da Bíblia”, conta Gatti. “O filme era falado em aramaico e entrou com legenda nos Estados Unidos, recurso considerado fora do comum e estressante para os americanos.”

Ao que tudo indica, tal fidelidade não será vista nas produções que virão nos próximos anos, porém, os novos filmes herdam de Gibson o caráter épico aliado à força da indústria do espetáculo, ambos elementos bem utilizados pelo diretor. Essa mistura, somada às novas possibilidades dos efeitos especiais, deve dar ao filão religioso um novo boom, comparável ao atual fenômeno de filmes com super-heróis e tão lucrativo quanto.

“Há uma necessidade crescente no mundo todo, especialmente no ocidental, de arquétipos, de heróis – vestidos, no entanto, como seres humanos normais. Pessoas que possam revolucionar o mundo”, diz a antropóloga Lidice Ribeiro, professora de ciência da religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Existe uma busca por grandes exemplos. A Bíblia traz personagens mais fortes do que Thor ou Homem de Ferro, pois são homens de carne e osso que fazem façanhas inacreditáveis, tanto para os que acreditam que as histórias são reais quanto os que buscam apenas entretenimento.”

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