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Um governo que tortura os números

Manobras contábeis para cumprir metas, estimativas irreais e dados inflados tornaram-se factóides de governo e colocam em xeque a credibilidade do país

Por Ana Clara Costa
24 jan 2011, 06h20

“Essa equipe econômica danificou a credibilidade e a transparência das contas públicas que várias gerações de governantes trabalharam para construir”, diz o ex-ministro Maílson da Nóbrega

O governo brasileiro adotou, nos últimos anos de administração petista, uma prática perniciosa e ilegal: a divulgação sistemática de informações deturpadas, quando não absolutamente mentirosas, a respeito de realizações do poder público. São exemplos os malabarismos contábeis nas contas públicas para “bater” – sem precisar cravar o número de fato – as metas de superávit primário (economia que o governo se compromete a fazer para reduzir o endividamento público); os números distorcidos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC); e a recente divulgação de estáticas erradas da geração de vagas formais no Brasil (confira no quadro abaixo).

Ao agir desta maneira, o estado fere um direito fundamental: o princípio da transparência, que está previsto tanto na Constituição brasileira. Se um governo cumpre este dever, não o faz por um ato de bondade. Como a representatividade política deriva da própria sociedade, é obrigação dele prestar contas de seus atos. Não basta aí dar publicidade a realizações, mas também ser verdadeiro. Somente a partir de dados verídicos que a transparência passa a existir de fato – e as pessoas, só assim, conseguem exercer seu direito de vigiar o próprio estado. Ter acesso a informações críveis e fiéis à realidade também é essencial para que indivíduos e empresas consigam planejar seus atos de poupança ou investimento – ainda mais no caso brasileiro, em que o estado não é pequeno, representando cerca de 40% do PIB.

Nestes primeiros dias de novo governo, todos os olhares têm se dirigido às sinalizações de como a presidente Dilma conseguirá lidar com um dos principais males cultivados por seu antecessor: a deterioração das contas públicas. O déficit nominal do setor público, que é a diferença entre despesas e receitas, chega a 2,7% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro – uma conta no vermelho de 99 bilhões de reais, muito distante da promessa do presidente Lula de zerar esta conta. Não bastassem números deste tipo que, por si só, levantam suspeitas, intensificou-se nos últimos anos a cultura da maquiagem. O Ministério da Fazenda, pilotado por Guido Mantega, e outras pastas parecem ter adquirido grau superior na arte de torturar os números até que eles indiquem o que o governo quer dizer.

Mercado de trabalho – A referência mais recente desta prática ocorreu na semana passada, durante a divulgação do total de empregos com carteira assinada criados no país em 2010. Coletados pelo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho, o número impressionou: mais de 2,5 milhões de novos postos, já deduzidos os desligamentos ocorridos no período, que foi comemorado pelos petistas como o cumprimento de uma promessa do governo anterior. O setor vive, de fato, um momento excepcional, mas, como se tornou tradição nos últimos anos, a estatística divulgada não foi a correta – o que desqualifica o feito e gera desconfiança.

Para chegar aos 2,5 milhões de vagas preenchidas, o ministério lançou mão do adiantamento de dados que sairiam junto com a Relação Anual de Informações Sociais (Rais), que contabiliza empregos gerados no setor público. Tais números costumam ser divulgados somente em maio, mas foram especialmente antecipados para que o governo pudesse atingir sua meta de criação de empregos. Caso contrário, as vagas não ultrapassariam 2,13 milhões. “Para qualquer pesquisador que lida com estatísticas, é fundamental manter a metodologia. O que mais cultivamos é a saúde dos dados. Quando alguém chega e mutila os números, perde-se aquilo que é o nosso alimento de reflexão. E isso compromete e danifica toda a série histórica. A partir de agora, não conseguiremos mais traçar comparações”, lamenta José Pastore, especialista em relações do trabalho da Universidade de São Paulo (USP).

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Contabilidade criativa – O episódio do Caged coroou um desfile de números manipulados nos últimos anos – feitos sob medida para que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pudesse repeti-los à exaustão em seus discursos, sempre precedidos pelo bordão “nunca antes na história deste país”. Os danos à transparência e o desrespeito aos cidadãos foram óbvios. Em outras situações, as consequências podem ser ainda mais graves, a ponto de comprometer a credibilidade do país. É o caso da chamada contabilidade criativa, estratégia usada pelo ministério da Fazenda para atingir a meta de superávit primário em 2010.

Em vez de poupar recursos para atingir o superávit primário (diferença de receitas e despesas do governo, excluídos os gastos com o serviço da dívida pública) no ano passado, a equipe econômica optou por uma saída mais fácil: mudar o cálculo. Primeiramente, alterou a própria meta para 2010, de 3,8% do PIB em janeiro para 3,1% do PIB em novembro. Já que não foi suficiente, a saída foi retirar da conta as bilionárias dívidas e compromissos financeiros da Petrobras – também expurgados das estatísticas de endividamento líquido do setor público. Por fim, foi excluído o resultado da Eletrobrás, sob o argumento de liberá-la para expandir investimento. Ainda faltaram recursos. O toque final ficou por conta da incorporação da receita extra de um investimento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) na capitalização da Petrobras.

O resultado foi o aparente cumprimento da meta – mesmo que todos passassem a se perguntar: “que meta?” A manobra fez com que grande parte dos bancos e consultorias passasse a fazer cálculos próprios para encontrar o real superávit primário do país. “Essa equipe econômica danificou a credibilidade e a transparência das contas públicas que várias gerações de governantes trabalharam para construir. E o que foi feito vai, sem dúvida, causar problemas para as futuras gestões”, afirma Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda e sócio da consultoria Tendências.

O ministro Mantega fez neste ano a promessa de garantir, daqui para frente, o cumprimento da meta – desta vez, a meta “cheia”, conforme suas palavras. As expectativas são céticas. “Quem vai fazer a conta em 2011 é a mesma equipe que bagunçou a contabilidade pública no ano passado. Uma mudança de postura grande, a meu ver, será difícil de acontecer”, duvida o ex-ministro Mailson.

Onde estão os investimentos? – Os números maquiados estendem-se ainda ao Programa de Aceleração de Crescimento (PAC) e ao projeto Minha Casa, Minha Vida. No primeiro, o governo faz a mágica de contabilizar como investimento próprio todo o crédito contratado na Caixa Econômica Federal por pessoas físicas para comprar imóveis. “Se alguém pega um crédito na Caixa para reformar a própria casa, o governo contabiliza isso como investimento do PAC. É de uma injustiça absurda, pois as famílias estão pagando suas parcelas. Não é dinheiro do governo”, afirma Gil Castelo Branco, diretor da ONG Contas Abertas, que analisa números divulgados pela União, estados e municípios. Isso significa que, dos 619 bilhões de reais divulgados como investimentos do PAC entre 2007 e 2010, 216 bilhões de reais provêm dos financiamentos da Caixa. “Com isso, gera-se uma impressão de realização do governo, o que causa impacto na cadeia econômica”, diz Castelo Branco.

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Já no Minha Casa, Minha Vida, o discurso inicial feito em 2008 era de que um milhão de moradias seriam construídas dentro de dois anos. Ao perceber a inviabilidade de sua promessa, Lula retrocedeu em 2009, quando do lançamento oficial do programa. “É um desafio que, a princípio, imaginávamos que fosse possível cumprir em dois anos. Agora, não tem limite, não tem data. Portanto, ninguém me cobre que nós vamos fazer um milhão de casa em dois anos”, disse.

Era tarde demais para voltar atrás no emblemático número e perto demais das eleições. Por isso, estabeleceu-se uma nova meta: a de um milhão de “casas contratadas” até o final de 2010. Pronto. Bastava assinar a papelada na Caixa para entrar na estatística. Foi assim que, no último balanço do programa, em dezembro passado, 1,3 milhão de contratos puderam ser divulgados. Lula respirou aliviado. Mais uma meta “cumprida” – e mais um número manipulado. Em casas efetivamente construídas, um número bem menor e que não entrou na propaganda: 247.000.

O Orçamento das MPs – Por fim, o Orçamento da União para 2011 entra em um patamar distinto de manipulação. Divulga-se o quanto o governo espera ter para gastar (2 trilhões de reais em 2011), sem que haja um embasamento técnico para isso. Esta mobilidade orçamentária, infelizmente, não é novidade para nenhum governante que passou pelo Planalto nas últimas décadas. A aberração é que, com os governos do PT, criou-se a farra das medidas provisórias que instituem gastos extras nas costas da União – o que faz com que o número divulgado no início do ano tenha validade praticamente nula. “O Congresso contribui para isso aprovando uma espécie de marotagem. Ele estima o valor da receita para conseguir acomodar mais emendas ao longo do ano. Isso não é sério”, afirma Maílson da Nóbrega.

O que torna a manipulação dos dados do governo mais absurda é o fato de, mesmo pela enviesada lógica política, ela ser desnecessária. Afinal, há números reais que não são nada decepcionantes. Afinal, 2,13 milhões de novos empregos é muita coisa – um recorde por si só e que não está distante da promessa de 2,5 milhões de empregos. Um total de 220 bilhões de reais investidos em infraestrutura, transporte e saneamento pelo PAC também não é digno de desprezo. A maquiagem entra em cena simplesmente para satisfazer a propaganda (e o ego) do governo. Trata-se da cartilha de Maquiavel utilizada às avessas: mente-se e não se esconde a mentira.

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