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Como os acordos de leniência ditarão os rumos do petrolão

Chamado de ‘Proer das empreiteiras’, acordos emperram em meio a jogo de interesses envolvendo o Palácio do Planalto, os empresários e o Ministério Público Federal

Por Ana Clara Costa
11 mar 2015, 07h53

Desde novembro de 2014, quando teve início a fase “Juízo Final” da Operação Lava Jato, que colocou atrás das grades onze executivos de empreiteiras, uma nova rotina se formou nas salas da Controladoria Geral da União (CGU), em Brasília. Advogados das principais bancas do país, representando as empresas envolvidas no petrolão, passaram a ser recebidos com frequência quase semanal por técnicos do órgão. Estavam interessados em discutir um artigo específico da Lei Anticorrupção: o 16º, que detalha o acordo de leniência – espécie de delação premiada para empresas, válida apenas na esfera administrativa, e que permite que a companhia infratora continue prestando serviços para o governo.

A leniência não é uma completa novidade no Brasil. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) já concede desde 2003 esse tipo de benefício a empresas envolvidas em cartéis. Mas o mecanismo criado pela Lei Anticorrupção é novo – e a lei ainda não foi sequer regulamentada. Tudo está em discussão. Sabe-se que a CGU é competente para celebrar os acordos no âmbito do Poder Executivo federal, mas ela deve contar com apoio ou supervisão de outros órgãos? É apenas a primeira empresa a reconhecer a participação em um esquema ilícito que se beneficia, ou as demais também podem aderir mais tarde à leniência? A empresa investigada precisa reconhecer que houve crimes ou basta apontar “falhas graves” de governança? A resposta a essas perguntas varia conforme os interesses de cada envolvido – o governo, o Ministério Público e os empresários. Preocupações econômicas legítimas misturam-se a razões políticas que, para usar o jargão da moda, nem sempre são “republicanas”. O desenho que se der à leniência deve influir de maneira significativa nos destinos do petrolão, e certamente vai moldar o futuro do combate à corrupção no Brasil.

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Ao longo dos últimos meses houve algumas tentativas de aplicar a leniência às empreiteiras envolvidas no petrolão. Nenhuma delas foi bem sucedida. Ainda no ano passado, o procurador-geral da República Rodrigo Janot tentou amarrar um acordo coletivo, que abrangeria todas as empresas citadas. Elas reconheceriam danos de cerca de um bilhão de reais aos cofres públicos e devolveriam o dinheiro. Quem esteve próximo das negociações diz que Janot fazia lobby para que o dinheiro “recuperado” fosse aplicado na modernização do sistema prisional. Mas o projeto foi abandonado depois de sofrer bombardeio por diversas frentes. Não havia consenso entre as empreiteiras. O Ministério Público Federal se opunha frontalmente à ideia. Analistas julgavam arbitrária a cifra de um bilhão de reais – e o avanço das investigações mostrou que, de fato, o montante da corrupção na Petrobras alcança, no mínimo, quatro bilhões.

Arte Leniência
Arte Leniência (VEJA)
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Em janeiro, a ideia de um grande acordo capitaneado pela CGU voltou à baila. Tendo como patrono, dessa vez, o advogado geral da União (AGU) Luís Inácio Adams, notoriamente ligado ao PT e eterno candidato do partido a uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF). Adams afirma que suas preocupações são puramente institucionais. “Meu papel é harmonizar a atuação de todos os órgãos envolvidos nesse debate”, disse recentemente a jornalistas. Mas seus colegas, servidores de carreira da advocacia geral da União, já o acusaram publicamente de operar em favor dos interesses do Planalto, para quem uma quebradeira no setor das empreiteiras se converteria em custo econômico e custo político quase impossíveis de administrar.

Na véspera do carnaval, Adams articulou para que fosse editada, a toque de caixa, uma regra que tornava o Tribunal de Contas da União (TCU) uma espécie de guardião e fiador dos acordos de leniência firmados pela CGU. A participação do TCU no processo não está prevista na legislação. É uma jabuticaba jurídica, pois transforma em agente do acordo de leniência o órgão administrativo que poderia depois contestá-lo. Mas o propósito parece ser exatamente esse – reduzir as chances de um questionamento posterior. Adams não é o único que faz gestões junto ao tribunal. Na semana passada, o recém-nomeado ministro da CGU Valdir Simão – apadrinhado pelo ministro da Casa Civil Aloizio Mercadante – passou cerca de duas horas tentando convencer um ministro do TCU de que o ressarcimento ao Estado previsto na leniência deve ser fixado em 3% do valor de cada contrato superfaturamento firmado pelas empreiteiras com a Petrobras. O TCU rechaça o cálculo por avaliar que o porcentual não remunera o desvio total das obras.

Desde o início, o maior opositor da leniência tem sido o Ministério Público Federal. Encarregado de conduzir, juntamente com a Polícia Federal, a investigação criminal contra os operadores e beneficiários do petrolão, o órgão sempre entendeu que, ainda que o acordo de leniência aconteça na esfera administrativa, ele pode atrapalhar a apuração na esfera criminal.

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Oficialmente, o MPF afirma que aceitaria um papel de observador nos acordos, trabalhando em conjunto com a CGU para impedir que as empresas se beneficiem da leniência apresentando informações que ficam aquém daquilo que os investigadores já apuraram. Mas é forte entre os procuradores a crença de que a punição dos envolvidos no esquema de corrupção deve ser prioridade máxima, mesmo que para isso seja necessário levar as empresas à falência. “Se a empresa tiver de quebrar, que quebre. Paciência. A Delta foi declarada inidônea, ou seja, foi impedida de celebrar novos contratos com o poder público, mas continua operando, ainda que muito menor do que antes”, afirma um procurador que pediu para não ter seu nome citado.

Para o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Alexandre Camanho, também é improvável que haja uma cooperação entre o MPF e qualquer órgão submetido ao Executivo na questão dos acordos. “É o MPF que está à frente da investigação e sabe se já é o momento de celebrar o acordo. A CGU caiu de paraquedas”, diz.

Vão na mesma linha as declarações do procurador do MP junto ao TCU, Júlio Marcelo de Oliveira. “A CGU é um órgão sem independência e está aparelhado. Órgãos que tenham responsabilidade de fiscalização precisam contribuir para a elucidação de ilicitudes. Se a CGU responde ao Executivo, com que isenção poderá analisar os acordos?”, diz ele.

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Os procuradores acreditam que, a partir do momento em que as empreiteiras assinarem os termos e voltarem a captar junto ao governo, duas situações podem ocorrer: a celebração do acordo desencoraja os executivos já presos a firmarem a delação premiada com o MPF; ou o processo administrativo se resolve rapidamente sem grandes danos ao caixa das companhias, o que permitirá que seus sócios – mesmo que afastados – continuem recebendo dividendos. Os empresários teriam, assim, lastro para sustentar estratégias jurídicas que levassem os processos criminais a se arrastar por anos.

A possibilidade de as empreiteiras continuarem a assinar contratos com o governo depois de fazer os ressarcimentos, pagar as multas e ajustar as regras de governança acordadas é o ponto chave da leniência. Para as empresas, é questão óbvia de sobrevivência. Para o Planalto, significa preservar o andamento de obras que estão paralisadas devido à Lava Jato. Também é de interesse da presidente Dilma manter minimamente o ritmo das licitações previstas para o ano. Pesa sobre os ombros do Executivo o cumprimento dos prazos das obras dos Jogos Olímpicos de 2016. Empreendimentos cruciais, como o Parque Olímpico da Barra, a Vila dos Atletas e a Linha 4 do metrô, estão nas mãos de empresas investigadas. Por fim, o impacto econômico de uma devastação das empresas atormenta o Planalto, já que a exposição dos bancos públicos às companhias é altíssima. Tal preocupação foi tema de relatório recente da agência de classificação de risco Moody’s sobre o Brasil.

O Planalto usa a falta de regulamentação da Lei Anticorrupção como arma, na expectativa de que as ambiguidades – por exemplo, sobre o papel do TCU na leniência – se resolvam da maneira que mais lhe convêm. O prazo para regulamentação expirou há mais de um mês e a Casa Civil, que detém o documento, não aponta nenhuma data para que ele saia da gaveta. Assessores do Planalto garantem que a presidente Dilma não vai regulamentar a nova lei antes que a crise criada pela Lava Jato seja contornada.

Na avaliação do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Carlos Ayres Britto, contudo, a falta de regulamentação não deve ser vista como um empecilho. O ministro considera que os artigos da lei são claros, à luz da Constituição. “A regulamentação não é condição para a aplicabilidade da lei”, diz Ayres Britto. Segundo ele, também é claro a quem cabe a competência para celebrar os acordos: à CGU, e não ao MPF. “A leniência não veio para substituir a lei penal. Ela é colocada no âmbito da administração pública para reforçar o combate à corrupção. Não substitui outras leis. É um acréscimo, um reforço, um aperto contra os infratores”, diz.

Outro ponto nebuloso é o número de empreiteiras aptas a pedir o acordo. A CGU tem se esquivado de levantar essa questão durante as reuniões – algo que já preocupa advogados de algumas das empresas investigadas. A lei prevê que só se beneficia do perdão a primeira pessoa jurídica “a se manifestar sobre seu interesse em cooperar para a apuração do ato ilícito”. É a mesma lógica usada no Cade. Mas o advogado de uma companhia investigada defende outra tese. “A intenção do legislador foi dizer que todo aquele que cometeu erros e quiser reconhecer a culpa, que fale rápido”, afirma.

O procurador Alexandre Camanho, da ANPR, afirma que, se fosse celebrado no âmbito do MPF, o acordo só beneficiaria mais de uma empresa se os delitos cometidos fossem distintos e abrissem caminho a novas frentes de investigação – como é o caso da Camargo Corrêa e as primeiras delações de seus executivos mencionando a usina de Belo Monte. “No caso de haver problemas em outras áreas da Petrobras, ou em outras estatais, haveria a possibilidade de ampliar a investigação e, assim, as empresas que colaborassem também poderiam pedir a leniência, mesmo que uma primeira já tivesse firmado o acordo”, diz.

As disputas de poder em torno da leniência são nocivas, na opinião do ex-ministro Ayres Britto. Ele acredita que elas terminam por tirar o foco do que realmente importa: o espírito da lei, que é o combate à corrupção. “Essa lei veio para se somar às que já existem. Vem numa ambiência brasileira nova, com a implantação de uma cultura da decência, da honestidade, da lisura. Ela chega numa nova fase da vida cultural brasileira que é a ideia de que compensa ser honesto”, afirma. Que assim seja…

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