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A ausência do know-how nos argumentos de Piketty

O ex-economista-chefe do Banco Interamericano de Desenvolvimento mostra que além do capital e do trabalho, que são a base de 'O Capital no Século XXI', há um terceiro elemento que foi desconsiderado pelo autor em seu trabalho

Por Ricardo Hausmann*
15 jun 2014, 08h42

Os contextos teóricos são ótimos porque nos permitem compreender, em termos muito mais simples, aspectos fundamentais de um mundo complexo, assim como fazem os mapas. Mas, tal como os mapas, eles são úteis apenas até certo ponto. Os mapas de estradas, por exemplo, não dizem quais são as condições de tráfego ou fornecem atualizações sobre obras durante o percurso.

Uma forma útil de entender a economia mundial é através do elegante contexto apresentado por Thomas Piketty em seu célebre livro O Capital no Século XXI. Piketty divide o mundo em dois elementos fundamentais: capital e força de trabalho. Ambos utilizados na produção e na divisão dos lucros.

A principal distinção entre os dois é que o capital é algo que se pode comprar, possuir, vender e, em teoria, acumular sem limite, como fizeram os super-ricos. O trabalho é o uso de uma capacidade individual que pode ser remunerada, mas não pode ser propriedade de terceiros, porque a escravidão acabou.

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O capital tem duas características interessantes. Em primeiro lugar, o seu valor é determinado com base no que ele irá gerar de receitas futuras. Se um pedaço de terra produz o dobro da produção em termos de colheitas ou de renda em relação ao outro, é natural que esse terreno valha o dobro. Caso contrário, o proprietário de uma parcela iria vendê-la para comprar a outra. Esse princípio de não-arbitragem implica que, em equilíbrio, todo o capital gera um mesmo retorno ajustado ao risco, o que Piketty historicamente estima em 4-5% ao ano.

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A outra característica interessante do capital é que ele é acumulado por meio de poupança. Uma pessoa ou país que poupa 100 unidades de renda deve ser capaz de ter uma renda anual, em perpetuidade, de algumas 4-5% unidades. A partir daqui, é fácil ver que se o capital fosse totalmente reinvestido e a economia crescesse a um ritmo menor que os 4-5%, o capital e sua parte do rendimento se tornaria maior em relação à economia.

Piketty argumenta que, na medida em que os países ricos do mundo registram crescimento a um ritmo menor que os 4-5%, eles tendem a apresentar mais desigualdade. Isso pode ser visto nos dados, ainda que nos Estados Unidos o aumento da desigualdade não é por esta lógica, mas pela ascensão do que Piketty chama “super-gestores,” que ganham salários extremamente altos (embora ele não nos diga o por quê).

Por isso, vamos aplicar essa teoria ao mundo para ver se ela se encaixa. Durante três décadas, entre 1983 e 2013, os Estados Unidos pediram emprestado ao resto do mundo, em termos líquidos, mais deu 13,3 trilhões de dólares ou cerca de 80 % do Produto Interno Bruto (PIB) em um ano. Em 1982, antes que esse período fosse iniciado, houve um resultado financeiro líquido com resto do mundo de 36 bilhões de dólares, um produto do capital que já havia investido no exterior anteriormente.

Se assumirmos que o retorno sobre o capital foi de 4%, isso seria equivalente a possuir 900 bilhões de dólares em capital estrangeiro. Assim, se fizermos os cálculos, os EUA, hoje, devem ao resto do mundo aproximadamente 12,4 trilhões de dólares. A 4%, isso deve representar um pagamento anual de 480 bilhões de dólares. Correto?

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Errado – e de longe. Os EUA não pagam nada em termos líquidos para o resto do mundo por sua dívida. Em vez disso, o país recebeu cerca de 230 bilhões de dólares em 2013. Supondo um rendimento de 4%, isso seria equivalente a possuir 5,7 trilhões de dólares em capital estrangeiro. Na realidade, a diferença entre o que os EUA “devem” pagar se o cálculo de Piketty for correto ascende a cerca de 710 bilhões de dólares em receitas anuais, ou 17,7 trilhões de dólares em capital – o equivalentea ao seu PIB anual.

Os Estados Unidos não são a única exceção neste erro de cálculo, e as diferenças são sistemáticas e reveladores, tal como Federico Sturzenegger e eu demostramos.

No extremo oposto estão países como o Chile e a China. Embora o Chile tenha emprestado pouco em termos líquidos nos últimos 30 anos, reembolsará para o resto do mundo como se ele tivesse tomado emprestado 100% do seu PIB. Na última década, a China emprestou para o resto do mundo, em termos líquidos, cerca de 30% do seu PIB anual, mas não recebe praticamente nada por isso. Do ponto de vista da riqueza, é como se essas poupanças não existissem.

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Então, o que está acontecendo? A resposta simples é que as coisas não são feitas apenas com capital e trabalho, como argumenta Piketty. Elas também são feitas com know-how.

Para ver o efeito desta omissão, considere que a necessidade líquida de financiamento dos EUA, de 13 trilhões de dólares, diminui consideravelmente o grau de endividamento bruto, que estava mais próximo dos 25 trilhões de dólares. Os Estados Unidos usaram 13 trilhões de dólares para cobrir seu déficit e o resto para investir no exterior.

Esses montantes são misturados com know-how, como investimento direto estrangeiro, e o retorno de ambos estão mais perto dos 9%, em comparação com os 4% ou menos pagos aos credores. Na verdade, 9% de 12 trilhões de dólares é mais do que 4% sobre 25 trilhões de dólares, explicando assim o aparente quebra-cabeça.

O Chile e a China colocam as suas economias no exterior sem misturá-las com o know-how – eles compram ações e títulos – e consequentemente recebem apenas os 4-5% ou menos. Por outro lado, os investimentos estrangeiros no Chile e na China são acompanhados de um valioso know-how, é por isso que o capital bruto que flui em rendimento é maior do que as poupanças em bruto no exterior. Este diferencial de retorno não pode ficar fora da arbitragem, onde o know-how é necessário para obter os retornos mais elevados.

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A conclusão é que criar e implantar o know-how é uma importante fonte de criação de riqueza. Afinal de contas, os gigantes Apple, Google e Facebook valem conjuntamente mais de 1 trilhão de dólares, embora o capital investido originalmente nessas entidades represente apenas uma minúscula fração desse valor.

Quem fica com a diferença está pronto para ganhar. O know-how é baseado em equipes coerentes, e não apenas em indivíduos. Cada membro da equipe é crucial, mas fora da equipe, o indivíduo representará um valor muito mais baixo. Embora os acionistas possam querer ficar com a diferença como os lucros, eles não podem fazê-lo sem a presença da equipe.

É aqui onde entram os super-gestores: tentando embolsar uma parte do valor criado pela equipe. Por trás do crescimento da riqueza e da desigualdade não se encontra só o capital, mas também o know-how.

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*Ricardo Hausmann, ex-ministro do planejamento da Venezuela e ex-economista-chefe do Banco Interamericano de desenvolvimento (BID), é professor de economia na Universidade de Harvard, onde também é diretor do Centro para o Desenvolvimento Internacional.(Tradução: Roseli Honório)

© Project Syndicate 2014

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