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Um psiquiatra entre os chimpanzés

Um novo tratamento desenvolvido pelo psicoterapeuta Martin Brüne, que inclui a prescrição de antidepressivos, mostra resultado promissores na reabilitação de macacos traumatizados pela vida em laboratórios

Por Guilherme Rosa
Atualizado em 6 Maio 2016, 16h22 - Publicado em 11 mar 2013, 14h10

O alemão Martin Brüne passou boa parte de sua vida estudando a mente humana. Professor de psiquiatria da Universidade Ruhr de Bocum, na Alemanha, ele pesquisa como as desordens psiquiátricas, como esquizofrenia e depressão, afetam o comportamento e a interação social. Nos últimos três anos, no entanto, ele ganhou novos pacientes: cinco chimpanzés, traumatizados após servirem durante anos como cobaias em pesquisas biomédicas. O psiquiatra receitou um tratamento inédito para os animais, que inclui o uso de medicamentos antidepressivos. No último dia 15, Martin Brüne participou do Encontro Anual da Associação Americana para o Avanço da Ciência, no qual apresentou uma palestra sobre a presença de distúrbios psiquiátricos em grandes primatas e relatou como eles reagiram à nova terapia. “O tratamento foi um sucesso e ajudou a entender como essas disfunções podem surgir no cérebro dos humanos e de seus parentes evolutivos mais próximos”, disse Brüne, em entrevista ao site de VEJA.

Até começar a trabalhar com os macacos, o psiquiatra só havia lidado com pacientes humanos. Isso não impediu que, em abril de 2010, ele fosse convidado para ajudar a AAP, uma fundação holandesa que cuida de primatas e pequenos mamíferos abandonados por laboratórios científicos, circos e zoológicos mambembes de toda a Europa. Na cidade de Almere, na Holanda, eles mantêm um santuário destinado a manter e recuperar cerca de 300 animais. De todos aqueles que chegam ao local, os que mais chamam a atenção dos tratadores são os chimpanzés abandonados por laboratórios farmacêuticos, após serem aposentados de suas funções como cobaias.

Separados muito cedo da mãe, infectados com doenças, isolados de qualquer contato com outros animais, eles parecem incapazes de levar uma vida normal quando chegam ao santuário. Frente a qualquer tentativa de interação social, eles se mostram extremamente agressivos ou arredios. Muitos demonstram comportamentos anormais, como automutilação, movimentos repetitivos e regurgitação. Sintomas que, segundo os pesquisadores, podem ser comparados aos vistos entre humanos que sofrem de depressão, ansiedade e síndrome do stress pós-traumático.

Os tratamentos aplicados pelos veterinários, que incluíam mudanças no ambiente e na alimentação dos animais, não surtiam nenhum efeito. Foi aí que, numa tentativa desesperada de reabilitar os macacos, Martin Brüne foi chamado e colocado, pela primeira vez, frente a frente com os animais. Após estudar seu comportamento, ele receitou um tratamento experimental para cinco chimpanzés, que indicava a administração do antidepressivo Sertralina, vendido comercialmente com o nome Zoloft e usado em pacientes – humanos – com depressão e ansiedade. “Basicamente, esse é o meu papel no tratamento: sou eu que prescrevo as drogas”, diz Brüne.

Depois de algumas semanas sob efeito do medicamento, os animais começaram a mostrar mudanças em seu comportamento, aumentando sua interação com o ambiente e até brincando uns com os outros. Os sintomas mais sérios, como a automutilação, foram praticamente eliminados. Segundo o pesquisador, o resultado do tratamento foi, surpreendentemente, mais bem sucedido do que quando aplicado em seres humanos. A maioria dos efeitos benéficos se manteve mesmo após os remédios serem cortados. “O resultado é muito promissor. Vamos começar a aplicar o tratamento em outros chimpanzés com os mesmos problemas”, diz.

Em entrevista ao site de VEJA, Martin Brüne contou um pouco mais sobre o tratamento, atacou as pesquisas biomédicas com chimpanzés e explicou como a experiência no santuário pode ajudá-lo a compreender a evolução dos distúrbios psiquiátricos.

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Martin Brüne ()

Quando você chegou ao santuário, qual era o estado dos chimpanzés? Eles pareciam ter sofrido vários traumas no passado. Os tratadores tinham muitas dificuldades para integrar esses animais ao grupo, pois ou eles eram muito agressivos com os outros ou fugiam de qualquer forma de interação social.

É possível diagnosticar o que se passava com eles? É muito difícil comparar diretamente os sinais observados nos chimpanzés com as condições registradas nos humanos. Obviamente, não é possível ouvir relatos dos macacos, então temos que contar unicamente com a observação de seu comportamento – e ele é claramente anormal. Observamos movimentos repetitivos, isolamento, regurgitação e coprofagia, o hábito de comer as próprias fezes. Esse comportamento sugere que os chimpanzés sofrem com distúrbios que são comparáveis à depressão e síndrome do stress pós-traumático em humanos.

É possível saber os motivos desse transtorno? Existem lacunas profundas quanto à história específica de cada indivíduo. Mas sabemos que todos vieram de laboratórios e, como usualmente acontece, devem ter sido separados das mães e dos outros chimpanzés muito cedo, ainda no início de seu desenvolvimento. Para animais sociais como os chimpanzés – e nós humanos -, isso é realmente prejudicial para a saúde psicológica. Além disso, eles foram usados em experimentos biomédicos: eram anestesiados frequentemente, por dardos atirados pelos pesquisadores, e infectados por vírus como os que causam AIDS e hepatite. Isso é profundamente estressante.

Como foi o tratamento aplicado nos animais? Nós separamos os animais mais problemáticos em dois grupos. Em um deles, com sete chimpanzés, aplicamos apenas a terapia comportamental – foi o grupo de controle. Esse tratamento até teve alguns efeitos, mas, após as melhoras iniciais, eles voltaram a piorar. No outro grupo, cinco animais receberam a Sertralina, um inibidor da recaptação de serotonina. Esses animais tiveram melhoras muito mais acentuadas e duradouras. Especialmente em relação aos comportamentos anormais que descrevi, como regurgitação e movimentos repetitivos. O resultado é muito promissor. Vamos começar a aplicar o tratamento nos outros chimpanzés com os mesmos problemas

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É possível que os chimpanzés também apresentem outros distúrbios psiquiátricos? Eu sou muito cético quanto a essa possibilidade. Apesar das similaridades entre os chimpanzés e humanos com relação à complexidade de nossos comportamentos, também temos muitas diferenças, principalmente com relação a nossos cérebros. Acho impossível que um chimpanzé, por exemplo, sofra com sintomas similares à esquizofrenia. Ele seria incapaz de ouvir vozes, de ter alucinações e delírios persecutórios. Outro exemplo pode ser o Alzheimer. Há algumas pesquisas mostrando que chimpanzés velhos sofrem com alguns sintomas similares aos que aparecem em humanos com essa condição, mas não há nenhum indício de declínio cognitivo entre eles.

O que o fato de os chimpanzés também sofrerem com depressão e stress pós-traumático diz sobre o funcionamento de nossa mente? Essa comparação entre humanos e primatas pode ajudar a entender complexidade de nosso comportamento e o quanto estamos vulneráveis a disfunções em circunstâncias adversas. Esse tipo de anormalidade não estaria presente no comportamento de peixes e répteis, pois eles costumam agir com base em padrões de ação inatos, fixados em seu cérebro. Os primatas, não – eles são mais flexíveis. Eles são capazes de se adaptar a condições ambientais muito diferentes. Isso, no entanto, vem com um custo: a disfunção. Minha conclusão é que, ao encontrar muitas adversidades ambientais, como aconteceu com os chimpanzés, isso pode dar origem às desordens psiquiátricas.

Os sintomas que o senhor descreveu podem aparecer em macacos selvagens? Não tenho experiência em primeira mão com populações selvagens, mas cientistas da área me disseram que esse comportamento é claramente anormal. Eu perguntei isso para diversos pesquisadores muito experientes, que têm estudado chimpanzés selvagens por décadas, e eles me disseram que nunca observaram isso. A conclusão final é boa parte desse sofrimento foi causado pelos humanos.

O senhor acha que deve ser tomada alguma atitude para acabar com esse sofrimento? É claro que sim. Na Europa e no Japão, a pesquisa biomédica com chimpanzés já foi abolida. Elas ainda são realizadas com algumas espécies de macacos, mas não com nossos parentes mais próximos – os grandes primatas. Nos Estados Unidos, eles também estão considerando tomar esse tipo de atitude. Hoje, a ciência avançou a um ponto onde esse tipo de pesquisa não é mais necessária. Existe um debate entre os pesquisadores sobre se as pesquisas com grandes primatas feitas no passado levaram realmente a alguma descoberta importante. Alguns dizem que foi tudo em vão, que esses mesmos estudos poderiam ter sido realizados em outros animais. Eu não sei onde me posicionar nessa questão, não sou um expert nesse campo. Mas, pela minha experiência com os chimpanzés, penso que deveríamos banir pelo menos as pesquisas biomédicas com os grandes primatas.

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