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A arte de desenhar pessoas (manipulando seu DNA)

Na última semana, pesquisadores chineses editaram, pela primeira vez, genes de embriões humanos. A prática levanta questões éticas fundamentais. A principal: é seguro criar mutantes cujas sequências genéticas são selecionadas em laboratório e, assim, desafiar a natureza?

Por Rita Loiola Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 9 Maio 2016, 14h46 - Publicado em 2 Maio 2015, 09h11

Em um laboratório de cidade chinesa de Guangzhou foram criados os primeiros embriões humanos geneticamente modificados. Em tubos de ensaio, pesquisadores da Universidade Sun Yeat-sen manipularam o DNA das células para apagar o gene da beta talassemia, doença hereditária que origina anemias graves e pode ser fatal. É a primeira vez na história que a ciência intervém nas próximas gerações humanas de modo tão rápido e direto. Os chineses mostraram ao mundo que, em poucos anos, teremos o poder de modificar nossa espécie de maneira irreversível – para o bem ou para o mal. O que fará com que a interferência humana supere de vez o processo natural de seleção natural. Não seria mais a natureza, mas os cientistas, que definiria como viriam a ser as futuras gerações de animais, plantas e indivíduos.

O estudo com os detalhes do experimento, publicado em 18 de abril na obscura revista Protein & Cell, revelou que apenas uma mínima fração dos embriões foi bem-sucedida na manipulação. O resultado foi um “mosaico genético”, ou seja, o DNA apresentou várias alterações que não as visadas pelos cientistas. Para esses primeiros estágios das células, isso pode ser mortal. No entanto, de acordo com os especialistas, esse é um obstáculo que está prestes a ser superado. Com o avanço das pesquisas e da tecnologia, a técnica será aperfeiçoada a ponto de possibilitar a edição completa dos genes em embriões humanos.

Esse é mais um indício de que vivemos um momento crucial para o que alguns cientistas chamam de Antropoceno, a era em que as ações humanas são responsáveis pela alteração do planeta. Outra prova recente: na última semana, cientistas da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, inseriram o DNA do mamute em células vivas de um elefante, tornando muito próxima a volta do animal que foi, naturalmente, extinto. O experimento dos cientistas chineses sugere que, em um futuro próximo, além de intervir em espécies de animais e vegetais e escolher indiretamente algumas características interessantes para nossa permanência no globo, atuaremos de maneira certeira e definitiva na seleção natural humana. A questão é se antes superaremos as discussões éticas relativas à prática e se estamos preparados para suas consequências.

“É uma nova era para a biomedicina. Só que ainda não se sabe se o esforço humano em controlar seu destino genético causará benefícios ou danos”, definiu o biomédico americano George Daley, da Universidade Harvard.

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Moratória – De acordo com o pesquisador chinês Junjiu Huang, principal autor do estudo, o artigo foi rejeitado por periódicos de renome como a Science ou a Nature, principalmente por seus pontos polêmicos. Corre ainda o boato de que a recusa está ligada à dúvida que costumeiramente paira em torno de estudos vindos da China, cujos dados muitas vezes são manipulados, quando não completamente falsos. Pesou também o fato de a técnica usada ser proibida em vários países ocidentais, a exemplo dos Estados Unidos e do Brasil. Apesar de terem usado embriões de clínicas de fertilização que seriam, de qualquer maneira, descartados (são óvulos que foram fertilizados por dois espermatozoides e que, por isso, não gerariam seres humanos), o estudo levantou um amplo debate.

Desde o início do ano, circulava o rumor de que a manipulação genética de embriões humanos estaria sendo feita por cinco laboratórios na China e que um primeiro artigo sobre o tema seria publicado. Isso levou duas equipes de pesquisadores reconhecidos internacionalmente – uma delas inclui o biólogo molecular americano David Baltimore, ganhador do prêmio Nobel de Medicina em 1975 – a pedir à comunidade científica internacional uma moratória contra esses experimentos. Em comentários publicados nas revistas Science e Nature, afirmam que é preciso pausar essas pesquisas para refletir de que forma serão levadas adiante.

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Procedimento similar foi adotado em 1975, quando cientistas liderados pelo bioquímico americano e ganhador do Nobel Paul Berg se reuniram na Conferência de Asilomar, na Califórnia, para discutir o potencial e os perigos da biotecnologia que envolvia pesquisas de recombinação de DNA, então em seu princípio. Havia o temor de que a prática pudesse colocar cientistas, cobaias e o meio ambiente em risco. Nesse encontro, foram elaboradas medidas e normas de segurança que pautaram os estudos e levaram as pesquisas a dar um salto de qualidade.

CRISPR – Desta vez, grande parte da preocupação está ligada à técnica que a equipe chinesa usou para editar os embriões, a CRISPR/Cas9. Esse método, que ganhou fama em 2013 e foi usado no ano seguinte para criar os primeiros macacos transgênicos, possibilita que partes do genoma sejam recortadas, deletadas e substituídas como se fossem arquivos digitais de computadores. O sistema usa moléculas de RNA como guias que levam os cientistas até as sequências específicas do DNA que precisam ser modificadas. Por usar esse princípio, ele é o mais simples, preciso e eficiente editor de genomas já desenvolvido.

Entretanto, as pesquisas em modelos animais sugerem que usar o método nesses tipos de células levaria a mutações inesperadas em várias outros trechos do genoma – o que foi comprovado pelo estudo chinês. A CRISPR/Cas9 ainda não é tão segura ou eficiente a ponto de ser testada de forma ampla. Além disso, há a preocupação ética de que intervir em estágios iniciais do desenvolvimento do homem possa trazer consequências desconhecidas para as gerações futuras.

“A hipótese de que a edição feita no embrião para eliminar a doença seria passada para filhos, tornando alguns traços hereditários, é atraente. Mas, nesse estágio, as questões éticas relativas a isso ainda não foram examinadas, a tecnologia não é segura o suficiente, seu impacto é desconhecido e consequências negativas e permanentes no DNA de gerações futuras são bastante prováveis, e muito preocupantes”, defende o biomédico Michael Werner, um dos autores do comentário publicado na revista Nature e diretor da Aliança para Medicina Regenerativa, uma das mais importantes organizações americanas de biotecnologia.

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De acordo com Werner, os reais efeitos das modificações feitas no embrião só seriam conhecidos após o nascimento ou mesmo nas gerações que virão depois de surgirem os primeiros indivíduos modificados. “Além disso, a técnica pode ser usada para propósitos não-terapêuticos, abrindo portas para o melhoramento dos seres humanos e para a eugenia”, diz o biomédico. Em outras palavras, há chance de o caro experimento ser utilizado apenas por quem tem dinheiro para pagar por ele. O que, em médio prazo, criaria uma casta privilegiada de humanos geneticamente modificados para serem melhores que os outros.

Uso prático – Por considerar o CRISPR/Cas9 perigoso, Francis Collins, diretor do Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH, na sigla em inglês) e um dos responsáveis por publicar em 2000 o primeiro esboço do sequenciamento genético humano, anunciou na última quarta-feira que a organização não financiará nenhum estudo de edição genética. De acordo com o comunicado, esse tipo de pesquisa é vista como “uma linha que não deve ser cruzada”, principalmente por causar alterações nas gerações futuras e por ainda não haver usos médicos importantes que justifiquem a prática.

Além disso, de acordo com os cientistas, já existe um método mais seguro, utilizado atualmente pelas clínicas de fertilização para selecionar embriões que não apresentam doenças. Nessas clínicas, é possível realizar o diagnóstico genético dos embriões e optar pelo implante daqueles que não possuem mutações maléficas. É claro que, se os pais carregarem a mesma variação maléfica ou se a fertilização for feita de forma natural, a probabilidade de o filho também apresentá-la é muito alta. É nesse espaço que entraria a edição genética dos embriões.

“Para uma doença como Alzheimer, em que os filhos têm 50% de chance de herdá-la, o uso da CRISPR/Cas9 seria muito positivo”, explica a biomédica geneticista Lygia da Veiga, chefe do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias da Universidade de São Paulo (USP).

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Na medicina, nem todos os procedimentos costumam ter 100% de segurança ou eficiência. Aos poucos, com o avanço da tecnologia, se tornam menos perigosos. Isso aconteceu com a cesariana que, no início do século XVIII, matava todas as mulheres submetidas à prática e, atualmente, salva vidas de mães e bebês, e com os transplantes de coração, que ofereciam sobrevida a apenas 25% dos pacientes há trinta anos. Atualmente, 85% vive bem com o novo órgão.

“Quando a prática médica oferece ganho maior que os riscos, vale a pena. Neste momento, no entanto, a edição dos embriões ainda tem riscos que não compensam os benefícios. Mas é irresistível tentar aperfeiçoar a técnica. É da natureza humana buscar saúde e evitar doenças. Manipular o DNA embrionário leva essa postura ao extremo”, diz Lygia.

Questão moral – Por trás das questões pontuais sobre eficácia e segurança, o experimento chinês aborda questões éticas fundamentais. Além de decidir se temos o direito de intervir definitivamente na vida de nossos filhos e netos, também é preciso discutir se os critérios de saúde e doença, ou do que é bom ou ruim no presente, também serão os mesmos no futuro.

“Nossos conceitos do que é saudável ou bom mudam ao longo do tempo. Governos autoritários foram tidos como bons durante boa parte da história. Será que podemos obrigar as próximas gerações a viver segundo os critérios atuais? Temos o direito de manipular a vida dessa maneira? A modificação de embriões ultrapassa as questões científicas. Precisamos pensar o que queremos da ciência e quais os caminhos que ela deve tomar”, afirma o especialista americano em bioética Benjamin Hurlbut, da Universidade do Estado do Arizona.

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De acordo com Hurlbut, cada nova técnica de engenharia genética levanta questões semelhantes e o avanço da tecnologia vai torná-las cada vez mais desafiadoras: “Assim como existem normas internacionais de direitos humanos, devemos estabelecer diretrizes para a ciência e decidir quais são as intervenções presentes ou futuras que poderiam trazer benefícios ou não. Atualmente, não concordamos com a pesquisa e criação de armas biológicas. Acredito que devemos chegar a um resposta em relação à manipulação genética. A ciência é feita pelos homens e, portanto, deve ser moldada por nossas normas e preceitos”.

Espécie única – Na comunidade científica há o consenso de que a manipulação genética dos embriões humanos está próxima de se tornar realidade fora da academia. Espera-se a publicação de novos artigos descrevendo a criação de embriões geneticamente modificados já nos próximos meses. Apesar de ser proibido no Brasil, nos Estados Unidos e em grande parte da Europa, esse tipo de estudo é permitido em países autoritários como a China, o que torna impossível frear seu aperfeiçoamento. A edição do DNA nas primeiras fases da vida humana tem o potencial de nos livrar de doenças devastadoras, como o câncer, mas também oferece a opção de criar sub ou super-humanos, além de novas enfermidades e desvios genéticos ainda desconhecidos.

“Somos uma espécie única na natureza, com características próprias que nos trouxeram onde estamos. Quando discutimos a modificação de embriões, estamos refletindo sobre a alteração permanente da espécie”, conclui o cientista americano Edward Lanphier, especialista em engenharia genética e presidente da Sangamo BioSciences, empresa americana de biotecnologia.

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