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“Os países não poderão mais fugir da responsabilidade em relação à morte dos elefantes”

Em artigo publicado hoje na Science, biólogo americano Samuel Wasser prova como quase todos os elefantes africanos mortos na última década foram caçados em apenas duas regiões do continente

Por Raquel Beer Atualizado em 9 Maio 2016, 14h45 - Publicado em 18 jun 2015, 17h18

Quase 50 000 elefantes africanos são caçados por criminosos a cada ano, número que já seria preocupante se a população desse tipo de animal não estivesse reduzida a menos de 500 000. O motivo da caça intensa é a demanda pelo marfim de seu chifre. Na China, que representa 70% do mercado ilegal, é considerado item de luxo.

Para enfrentar essa situação, o americano Samuel Wasser, diretor do Centro de Conservação de Biologia da Universidade de Washington, analisou o DNA extraído das fezes de 1 350 animais, de 29 países, e assim criou um mapa genético da distribuição da espécie pelo continente. Depois bateu as informações com o DNA dos chifres apreendidos.

O resultado, divulgado hoje na revista americana Science, mostrou que quase todo o marfim contrabandeado tem origem em dois lugares: os elefantes de savana foram capturados principalmente na Tanzânia e em Moçambique, enquanto que os de floresta foram apreendidos no Gabão, no Congo e na República Central Africana.

Em conversa com o site de VEJA, Wasser contou mais sobre o estudo e também deu sua opinião sobre outras táticas de preservação polêmicas.

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Há anos os elefantes estão sendo caçados ilegalmente na África. Por que os parques e as reservas ambientais não conseguem controlar a situação? A caça é organizada por grandes grupos criminosos que são muito bem financiados. Os caçadores têm óculos de visão noturna, mísseis como o AK47, além de dinheiro para subornar os guardas, que geralmente têm salários péssimos, para lhes dizer onde as patrulhas acontecerão. Há uma estrutura tremenda por trás desses caçadores, e muitas vezes a punição para eles quando são pegos é insignificante, quando ocorre. A conclusão é que esse é um negócio de muito lucro e muita demanda.

Você foi o primeiro pesquisador a usar exames de DNA para combater a caça aos elefantes. Como teve a ideia? Trabalhei na África durante grande parte da minha vida estudando babuínos selvagens, justamente em um dos ecossistemas identificados como um dos principais locais de caça, no artigo que acabo de publicar. Naquele trabalho, nós usávamos as fezes dos macacos para obter informações sobre hormônios e DNA. Fiquei lá entre 1979 e 1989, período mais intenso de caça, e então decidi que queria encontrar um jeito de aplicar a técnica de extrair o DNA de fezes, um produto biológico tão acessível, para fazer a diferença para os elefantes.

Como é possível saber a origem de um elefante apenas pelo seu DNA? Primeiro tivemos que criar um mapa de referência genética de elefantes em todo o continente africano. Fizemos isso usando fezes, porque é o produto animal mais acessível na natureza. Nós pedimos para colegas, patrulheiros e para qualquer um que quisesse ajudar para ir até essas áreas protegidas e coletar amostras. Uma amostra deveria estar a pelo menos um quilômetro de distância da outra, porque queríamos que cada uma representasse um grupo familiar único. Assim criamos uma distribuição genética uniforme de elefantes ao longo do continente. Passamos a informação do DNA dessas amostras por um software que, pelo uso de 16 marcadores genéticos, conseguiu criar um mapa que mostrasse as populações de elefante que ocupam cada parte do continente. Quanto mais distante uma população estava da outra, mais diferentes eram entre si. Com isso em mãos, desenvolvemos formas de extrair os 16 marcadores do marfim, e assim conseguimos ligar um chifre apreendido ao seu lugar de origem.

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Os países cederam os chifres apreendidos facilmente para análise? Não, essa parte foi bem complicada. Os chifres são evidências de crimes e muitos desses países não querem entregá-lo antes de terminar a devida investigação. No começo foi mais difícil, porque ninguém me conhecia, nem tinha ouvido falar do meu trabalho. Depois de algum tempo, quando alguns artigos já haviam sido publicados, as pessoas começaram a ouvir sobre eles nas conferências e perceberam que essa ferramenta era útil. Nesses eventos pude perceber como o mercado ilegal de marfim é polarizado, o que também atrasou o meu progresso, de certa forma.

Polarizado? Não há consenso sobre se a melhor forma de se salvar elefantes é vender o marfim apreendido ou restringir todo o mercado e se focar na aplicação da lei e em inibir a demanda. Essa discussão criou um obstáculo enorme. Foi só em 2013 que vimos uma mudança acontecer, porque todos perceberam que o comércio ilegal de marfim estava tão fora do controle que perderíamos os elefantes se não nos uníssemos. As pessoas notaram que não importa se você é a favor ou contra o mercado, precisávamos parar a matança, ou estávamos perdido. Isso, unido a uma maior apreciação do nosso trabalho, levou à resolução 1683, que obriga todos os países que apreenderam cargas de marfim com mais de meia tonelada a entregar esse material para análise de origem em até 90 dias. Isso mudou tudo, agora estamos recebendo muito mais informações, apesar de ainda haver certa resistência.

Por que essa polarização atrasou a sua pesquisa? Ninguém era contra minha metodologia, ninguém duvidava da importância do trabalho. Mas eu estava conseguindo enviar uma mensagem forte com a minha pesquisa, e me posicionei do lado contra o mercado, e isso criou dificuldades. Na conferência de 2010, tivemos uma grande vitória ao impedir as petições da Tanzânia e Zâmbia de venderem marfim, mas muitas pessoas ficaram incomodadas, e como o nosso trabalho foi essencial para essa conquista, eu também sofri resistência de algumas pessoas depois. Então percebi que aquela não era a minha luta. O meu trabalho é impedir a matança dos elefantes, não importa de que lado do debate você está.

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Além de fazerem parte de uma carga de mais de meia tonelada, quais são os pré-requisitos para analisar os chifres? Que o material apreendido tenha um valor de pelo menos 1 milhão de dólares. É claro que não analisamos todos os chifres que aprendemos. Desenvolvemos métodos para, primeiro, eliminar pares cujo material genético foi analisado, já que cada elefante tem dois chifres e analisar ambos seria desperdício de tempo e dinheiro. Depois, agrupamos as amostras com base em características externas, que sugerem que o marfim veio de lugares diferentes. Por exemplo, há chifres que têm marcas de queimadura, porque os caçadores o aquecem para conseguir tirar o tecido remanescente, evitando que a carga tenha um cheiro ruim e atraia insetos. Separamos as amostras com a marca de queimado, que são evidência de um grupo de contrabando cuidadoso. Então selecionamos amostras proporcionais de cada máfia e acabamos com 200 unidades. Por fim, cortamos um pedaço de 3 centímetros de diâmetro e meio centímetro de largura, da base do chifre, onde o DNA é mais rico, e é com esse trecho que fazemos a análise.

Por que estabeleceram essas exigências de peso e valor? Queríamos nos focar no crime organizado transnacional, que causa mais danos à população de elefantes. Então o fato de termos descoberto que virtualmente 100% do marfim exportado na última década veio de dois lugares sugere que esses são os dois lugares onde o crime organizado age agressivamente.

O que espera que aconteça depois de apresentar esse artigo? Que essas áreas sejam mais bem protegidas? Essas ações criminosas não podem acontecer sem que haja corrupção em alto nível no país. A evidência é inegável e significa que as nações não conseguirão mais fugir de sua responsabilidade no mercado ilegal. Espero que as agências da comunidade internacional que doam dinheiro para programas sociais ou econômicos desses países comecem a se preocupar também com essa questão. Isso forçaria os corruptos a mudar o comportamento porque, se não fizerem isso, criaria-se um grande tumulto nos países e, no fim das contas, esses caras precisam ser eleitos. Se pudermos impedir a caça nesses dois pontos (áreas que compreendem a Tanzânia e Moçambique, e o Gabão, o Congo e a República Central Africana), diminuiremos a proporção de mortes de elefantes na África.

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A metodologia que estão usando para proteger os elefantes também pode ser aplicada à conservação de outros animais, como o rinoceronte, que também é caçado na África por seu chifre? O trabalho pode ser aplicado em muitas outras espécies, mas não rinocerontes. Isso porque esses animais foram dizimados em quase toda a África, só sobraram na África do Sul. Por isso, quase todos têm a sua origem no país, apesar de alguns terem sido deslocados para tentar repopular a região. É um problema de conservação completamente diferente, que não é comum a nenhuma outra espécie. O que aconteceu com os rinocerontes é uma tragédia.

Pode dar alguns exemplos de espécies que também podem se beneficiar dos exames de DNA? Já aplicamos a metodologia para proteger tigres, leopardos, e nos preparamos para começar um projeto com pangolins, um dos animais mais caçados do mundo hoje. É um mamífero pequeno que vive na África e no sudeste asiático, do tamanho de um cachorro de médio porte, e o seu cabelo é cobiçado para itens da moda. Já houve apreensões de material ilegal de até 10 toneladas desse diminuto animal.

Alguns parques no Quênia começaram a usar drones para vigiar e proteger espécies. É uma boa estratégia? É uma ferramenta poderosa que poderia funcionar, se utilizada com inteligência. Porém, há riscos. O primeiro é que a tecnologia é ótima quando funciona, mas em um lugar como a África, geralmente quanto mais simples, melhor, porque as coisas quebram, e se o investimento não for continuo, elas simplesmente vão começar a juntar poeira. Um segundo problema é que os drones não podem estar muito distantes dos patrulheiros da reserva, porque eles precisam chegar em tempo se a máquina detectar atividade suspeita.

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A ONG Rhinos Without Borders quer transferir até o fim do ano cem rinocerontes da África do Sul para a Botsuana, onde, em teoria, estariam mais protegidos. Esse é um bom método a longo prazo, ou só outra medida paliativa? Se os rinocerontes estão sendo usados para repopular a África, e não como máquina para vender chifres, acho que é um projeto extremamente importante. Mas é fundamental que haja estudos por trás dessa transferência, porque se já existirem rinocerontes lá, que ao longo da sua história evolutiva se modificaram geneticamente para se adaptar ao habitat, pode-se criar mais problemas do que resolver. Não é correto fazer isso sem base porque os novos animais podem, por exemplo, trazer doenças que a população local não estava preparada para combater. Vale refletir se transferir os animais fará mesmo grande diferença, ou se seria melhor trabalhar para protegê-los em seu habitat original, e deixar que se proliferem sozinhos.

No ano passado, o Americano Corey Knowlton pagou 350 000 dólares para ter direito de caçar um rinoceronte negro na Namíbia. Há quem defenda essa estratégia, dizendo que seria uma forma de regular a caça e também fonte de renda para parques e reservas. Qual é a sua opinião? É a coisa mais hipócrita que já ouvi. Se as pessoas realmente se importam com o animal, deviam parar de promover a caça e começar a protege-lo. Mesmo o caçador: ele sabe que há poucos animais daquele, e ele vai lá e mata um dos últimos? O que fará depois? Quão estúpida ué isso? Doe seu dinheiro para proteger o animal, não atire nele. Fiquei tão consternado quando ouvi isso, eu não consigo acreditar que as pessoas podem ser tão ignorantes. Isso responde à pergunta?

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