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“Nosso governo não liga para ciência”, afirma brasileira que acaba de publicar estudo na ‘Science’

A carioca Suzana Herculano-Houzel pulou de alegria ao ver, hoje, sua descoberta sobre o desenvolvimento do cérebro de humanos e animais na revista científica mais prestigiada do planeta. Mas aponta que é difícil para brasileiros repetir seu feito, já que o Brasil não financia estudos nacionais

Por Raquel Beer Atualizado em 9 Maio 2016, 14h45 - Publicado em 2 jul 2015, 15h25

Estudo de pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) acabou com o mito que vigorava na comunidade científica de que o córtex cerebral de mamíferos, parte do cérebro responsável pela cognição, se dobra para acolher mais neurônios. Segundo o artigo, o córtex assume determinada forma, pequena ou grande, por um motivo puramente físico, em resposta às diferentes pressões que sofre ao longo do desenvolvimento.

Em conversa com o site de VEJA, a neurocientista carioca Suzana Herculano-Houzel, autora do artigo, explicou o estudo, indicou suas aplicações e discutiu a dificuldade de se fazer pesquisa no Brasil.

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Poucos trabalhos de brasileiros conseguem ser publicados em revistas renomadas como a Science. É difícil fazer pesquisa no Brasil? Os dez anos que passamos pesquisando esse assunto foram tranquilos. O curioso e, agora, irônico é que, justamente quando conseguimos publicar na Science, estamos em um momento nada tranquilo. Tanto o governo federal quanto o estadual cortaram a verba para a ciência, e eu não tenho dinheiro para continuar trabalhando no laboratório. Já temos vários financiamentos aprovados, mas há vários meses o dinheiro não é liberado. Eu tinha duas alternativas: parar tudo ou tirar dinheiro do meu bolso para que os alunos conseguissem tocar seus trabalhos. Agora me resta esperar por um reembolso, e já estão me devendo mais de 15 000 reais. Cada vez mais temos atenção dos colegas estrangeiros, da mídia internacional, a Science considera que nosso trabalho é digno de ser publicado, mas isso não parece fazer diferença para o nosso governo. Como o financiamento da pesquisa aqui é quase que 100% dependente de dinheiro do governo, ficamos nas mãos deles.

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Você pensa em sair e trabalhar fora? Eu considero cada vez mais isso, para me dedicar a ciência como meus colegas estrangeiros o fazem, sem ter que lidar com essas questões absurdas que só mostram a falta de consideração, respeito e apreço do governo com o trabalho dos cientistas brasileiros.

Vamos esquecer, por um momento, disso e falar de seu belo estudo. Por que analisar o motivo de o córtex se dobrar? O córtex cerebral é a parte do cérebro responsável pela cognição e é a que mais cresce ao longo da evolução, conforme novas espécies aparecem. Antes, nós pensávamos de forma intuitiva, sem base em dados reais. Conforme essa região aumentou, foi se dobrando para permitir que coubessem mais neurônios ali. Ou, então, se dobrou ao ganhar mais neurônios. Não sabíamos de fato a ordem dos fatores. Nesse trabalho testamos a teoria. Para entender o que quero dizer com dobrar, vale pensar no que acontece quando você joga uma toalha no cesto de roupa suja: ela não cabe inteira, então você precisa ajustá-la para que caiba. O córtex também é uma superfície, exatamente como uma toalha.

Esse parece ser um conceito um tanto básico. Não havia sido testado ainda? Já conhecíamos algumas incongruências sobre a teoria, o problema é que ninguém sabia se era realmente assim que o córtex funcionava. Se você comparar o ser humano com o elefante, por exemplo, o córtex do último é maior do que o nosso, e se essa teoria fosse verdadeira, isso significaria que ele teria mais neurônios que nós. Como os neurônios são as unidades essenciais de processamento de informação, os elefantes seriam mais capazes cognitivamente, e deveriam estar nos estudando, não o contrário.

Qual foi o método para medir o grau de dobras do córtex de cada espécie? Imagine uma folha de papel. Amasse-a com toda a força e depois solte. Essa folha tem uma área de superfície, que continua idêntica mesmo depois de você tê-la amassado. Quando a folha vira uma bolinha, porém, só uma parte dessa superfície fica exposta. Então, o grau de dobra é a razão entre a superfície total e essa parte que ficou exposta depois de você amassar a folha.

E depois bateram esses dados com o número de neurônios de cada espécie? Exato. Nos últimos dez anos, o nosso laboratório recolheu dados sobre a quantidade de neurônios de 38 espécies, incluindo humanos. Há um ano, decidimos fazer um teste para responder as perguntas: o córtex cerebral que tem mais neurônios é necessariamente mais dobrado?; e um córtex que é mais dobrado necessariamente tem mais neurônios? Nos dois casos, descobrimos, a resposta é não. Isso mudou completamente aquela ideia que experessei ao responder à sua primeira pergunta. Ao comparar um porco com um babuíno, o macaco tem dez vezes mais neurônios do que o porco, mas os dois têm córtex com o mesmo grau de dobras. O contrário também acontece: o elefante tem um córtex duas vezes mais dobrável que o do humano, mas têm menos neurônios. O que queríamos era mostrar, pela primeira vez, que a teoria que todos aceitaram por décadas, que institivamente fazia sentido, na prática não funciona.

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O que rege o grau de dobras, então? Foi isso que fomos pesquisar. O Bruno Mota, físico que trabalha com a gente, olhou para esses números e para o córtex de várias espécies, e deduziu que eles assumiam aquela estrutura porque era a mais estável. Explico: ao jogar uma bolinha de gude em um coador de café, ela rola e para no fundo do cone, certo? Ela para ali porque esta é a região mais estável. Na física, falamos que essa é a área que ela tem menos energia livre. Isso acontece naturalmente com todos os corpos, eles tendem a ficar na configuração de menor energia livre. O córtex, por exemplo, sofre uma série de pressões e forças: ele cresce, mas existe a pressão atmosférica e também a pressão de dentro do cérebro, além da própria tensão dos axônios, as fibras que prendem o córtex a outras estruturas do cérebro. A ideia é que a cada instante, ao longo do desenvolvimento, o córtex responda a essas forças e atinja aquela estrutura.

Criar uma equação matemática a partir dessa equação foi fácil? Para nossa primeira surpresa, a equação é muito simples: ela relaciona superfície total do córtex (como uma folha aberta), a espessura do córtex, e a área exposta na posição mais estável (a folha amassada). Certinha, a equação é “área total da superfície x raiz quadrada da espessura = área exposta x uma constante K”. Depois, aplicamos essa equação aos dados das espécies, e para nossa surpresa, deu certo em todos os casos, sem nenhuma exceção.

Como relacionaram essa regra do córtex ao papel? Como a fórmula se aplica a todas as espécies, sem exceção, sabemos que o grau de dobra do córtex é física pura, acontece conforme ele se adapta às forças que se abatem sobre ele. Assim, outras superfícies com o mesmo tipo de estrutura, como, por exemplo, uma folha de papel, deveriam responder da mesma maneira. Comecei a fazer bolinhas de papel de tamanho e espessura diferentes em casa e percebi que tudo também se encaixava na equação. Isso confirma que o grau de dobras do córtex realmente se estabelece por física pura. A equação funciona para superfícies que se deformam quando se aplica pressão a elas. Com tecido não funcionaria, porque o material não tem memória.

Quais aplicações essa conclusão terá? A primeira é na área de pesquisa básica, para entendermos o processo de desenvolvimento do córtex e como os neurônios se espalham, formando variantes do córtex de espessuras diferentes. São propriedades fundamentais do cérebro, que a gente ainda hoje não conhecia. Há também aplicações para quem estuda o desenvolvimento do córtex tanto normal, quanto alterado por doenças. Um exemplo é um distúrbio genético que altera a migração dos neurônios nessa região, e o resultado é um cérebro humano com um córtex de volume normal, mas com superfície lisa. Até esse trabalho, não se conhecia se existia um elo que explicasse como essa migração causaria um córtex que não se dobra.

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