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A unidade da água

A Convenção das Nações Unidas sobre a Utilização dos Cursos d'Água não deve tornar-se mais um acordo internacional trancado em uma gaveta. Nossa segurança ambiental, desenvolvimento econômico e estabilidade política dependem dela

Por Mikhail Gorbachev
Atualizado em 6 Maio 2016, 16h11 - Publicado em 10 jul 2014, 17h38

Em maio de 2014, o Vietnã tornou-se o 35º país signatário da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito dos Usos dos Cursos de Água Internacionais para Fins Distintos da Navegação. Como resultado, 90 dias depois da assinatura, em 17 de agosto, a Convenção entrará em vigor.

Foram necessários 50 anos para a elaboração e, finalmente, conclusão do processo de ratificação exigido, o que demonstra que algo está muito errado com o sistema moderno do multilateralismo. Independentemente de divergências de longa data, de como a gestão de recursos de água transfronteiriça deveria ser atribuída e gerenciada, essas desavenças, muitas vezes, foram alocadas e gerenciadas por pressões políticas e por duvidosos critérios técnicos, nem sempre levando em consideração os instrumentos jurídicos existentes em escala internacional. Essa espera de quase meio século pode ser explicada apenas pela falta de liderança política. Portanto, embora o mundo possa comemorar a adoção da Convenção esperada, certamente não podemos nos dar por satisfeitos.

Aproximadamente 60% de toda a água doce encontra-se dentro de bacias transfronteiriças; apenas 40% dessas bacias, no entanto, são administradas por algum tipo de acordo relativo à bacia. Em um mundo cada vez mais carente de água, os recursos hídricos compartilhados estão se tornando um instrumento de poder, promovendo a competição dentro dos países e entre eles. A luta pela água está aumentando as tensões políticas e intensificando os impactos sobre os ecossistemas.

O consumo de água está crescendo mais rápido do que a população – no século XX, cresceu o dobro. Como resultado, várias agências das Nações Unidas preveem que, em 2025, 1,8 bilhões de pessoas viverão nas regiões atingidas por escassez absoluta de água, implicando a falta de acesso a quantidades adequadas para o uso humano e ambiental. Além disso, dois terços da população mundial enfrentarão condições de estresse hídrico, ou seja, uma escassez de água doce renovável.

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Sem medidas firmes de defesa, a demanda por água vai estender-se além da capacidade de adaptação de muitas sociedades. Isso poderia resultar em migração maciça, estagnação econômica, desestabilização e violência, impondo uma nova ameaça à segurança nacional e internacional.

A Convenção das Nações Unidas sobre a Utilização dos Cursos d’Água não deve tornar-se mais um acordo internacional ignorado, trancado em uma gaveta. No contexto atual de mudança climática, crescimento populacional, aumento da poluição e recursos explorados em excesso, tudo deve ser feito para consolidar o quadro jurídico de gestão de bacias hidrográficas do mundo. Nossa segurança ambiental, desenvolvimento econômico e estabilidade política dependem diretamente disso.

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Em breve, a Convenção será aplicada a todos os rios transfronteiriços dos territórios de seus signatários, não apenas nas bacias maiores. Ela irá complementar as lacunas e deficiências dos acordos existentes e fornecer cobertura jurídica aos numerosos rios transfronteiriços que estão sob crescente pressão.

Em todo o mundo, existem 276 bacias transfronteiriças de água doce e muitos aquíferos transfronteiriços. Apoiada por financiamento adequado, vontade política e engajamento das partes interessadas, a Convenção pode ajudar a enfrentar os desafios da água. Mas será que vai conseguir?

Uma agenda ambiciosa deve ser adotada, em um tempo quando a comunidade internacional está negociando o conteúdo dos objetivos das Metas do Desenvolvimento Sustentável, sucessora dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, que expiram em 2015. Nós, na Green Cross, esperamos que as novas metas, que devem ser alcançadas até 2030, aborde a gestão dos recursos hídricos.

Além disso, a comunidade internacional terá de chegar em breve a um acordo sobre um quadro de mudança climática para substituir o Protocolo de Kyoto. A mudança climática afeta diretamente o ciclo hidrológico, o que significa que todos os esforços que são realizados para conter as emissões de gases do efeito estufa irão ajudar a estabilizar os padrões de precipitação e atenuar os eventos extremos relacionados à água que muitas regiões já estão experimentando.

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Mas a efetivação da Convenção das Nações Unidas sobre a Utilização dos Cursos d’Água gera tantas novas questões quanto existiam no período anterior à sua ratificação. O que significará a sua aplicação na prática? Como os países aplicarão seus mandatos dentro de suas fronteiras e em relação aos vizinhos? Como os países americanos e asiáticos, que têm ignorado a ratificação, vão reagir?

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Além disso, como a Convenção irá coexistir com a Convenção sobre a Proteção e Utilização de Cursos d’ Água Transfronteiriços e Lagos Internacionais, que já está em vigor na maioria dos países da Europa e da Ásia Central e que, desde fevereiro de 2013, tem como objetivo estender sua participação para o resto do mundo? A implementação da Convenção afetará acordos transfronteiriços regionais e locais existentes de água doce?

Espera-se que os países que ratificaram a Convenção das Nações Unidas sobre a Utilização dos Cursos d’Água participem de sua implementação e que avancem em seus esforços para proteger e usar suas águas transfronteiriças de forma sustentável. Quais instrumentos, inclusive financeiros, a Convenção irá fornecer a eles?

Vários instrumentos jurídicos podem ser implementados em conjunto e em sinergia: a Convenção de Ramsar sobre Zonas Úmidas, a Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação e a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), apenas para citar algumas. A promulgação da Convenção das Nações Unidas sobre a Utilização dos Cursos d’Água há muito adiada deve ser vista como uma oportunidade para que os Estados signatários incentivem aqueles que ainda não fazem parte de acordos de cooperação a trabalhar seriamente nestas questões.

Claramente, os políticos e diplomatas sozinhos não podem responder de forma eficaz aos desafios que o mundo enfrenta. O que o mundo precisa é do envolvimento de líderes da política, de empresas e da sociedade civil; a implementação efetiva da Convenção das Nações Unidas sobre a Utilização dos Cursos d’Água fica impossível sem eles.

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A participação inclusiva pelas partes interessadas (incluindo as comunidades afetadas) e o desenvolvimento da capacidade de identificar, valorizar e compartilhar os benefícios dos recursos hídricos transfronteiriços deve ser parte integrante de qualquer estratégia para atingir a colaboração multilateral eficaz.

Mikhail Gorbachev recebeu o Prêmio Nobel da Paz e foi o último presidente da União Soviética. Fundou em 1993 em Genebra a Green Cross International, uma organização não governamental independente que aborda segurança, pobreza e degradação ambiental.

© Project Syndicate, 2014

(Tradução: Roseli Honório)

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