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A importância da ciência de qualidade (e não de quantidade)

A última edição da revista 'Science' aborda um conhecido dilema para os pesquisadores: a valorização da quantidade de trabalhos publicados, no lugar da qualidade. Especialistas em integridade científica discutem o tema e mostram como ele pode estar por trás de fraudes e da falta de transparência de parte das pesquisas científicas modernas

Por Rita Loiola Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 9 Maio 2016, 14h45 - Publicado em 27 jun 2015, 14h46

Se não fosse uma bronca do astrônomo Edmond Halley, as leis de Newton provavelmente jamais teriam sido escritas. O cientista inglês que dá nome às mais famosas regras da física vivia recluso no escritório, fazendo cálculos, discutindo óptica e alquimia com colegas e, ocasionalmente, vendo maçãs caírem e elaborando teorias sobre a gravidade. Publicar os achados não era muito a sua área. Em 1684, Halley descobriu que Isaac Newton, aos 40 anos, não havia escrito sequer um artigo com suas brilhantes ideias sobre a movimentação dos corpos celestes e, pior, disse ter perdido as anotações com seus cálculos. O astrônomo Halley pediu a demonstração das equações e, pouco tempo depois, Newton lhe mandou um pequeno tratado, gênese da obra Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, publicada em 1687 e fundadora da mecânica clássica. Se vivesse no século XXI, porém, Newton jamais seria perdoado por passar tanto tempo sem colocar suas ideias no papel. Provavelmente seria obrigado a escrever mais de um texto por ano para receber o financiamento para pesquisas e obter reconhecimento. Seu mérito viria da produtividade, mais que da qualidade de seus estudos – só assim ganharia pontos em rankings acadêmicos e poderia, talvez, se dedicar a obras de fôlego que revolucionassem a ciência. Ou seja, teria de viver na toada moderna da academia, impregnada pelos traços de rapidez, produtividade e simplicidade que marcam a era digital.

A última edição da revista Science chama atenção para esse conhecido paradoxo da ciência: a valorização do número de publicações, que indica a produtividade acadêmica, mas, por outro lado, pode incentivar a queda de qualidade e favorecer a desonestidade. De acordo com dois comentários publicados no periódico, a avaliação quantitativa tem feito a ciência evoluir de forma “dramática e inquietante” e ajudado a promover fraudes, a falta de transparência e uma série de equívocos.

“Há, certamente, uma possibilidade de que os incentivos para a publicação constante de artigos esteja impedindo o próximo Newton, ou prêmio Nobel, de surgir. Todos os grandes pesquisadores têm muito trabalho, mas apenas um ou dois flashes de brilhantismo pelos quais são lembrados”, disse ao site de VEJA a geofísica Marcia McNutt, editora-chefe da Science e autora de um dos textos publicados na revista. “Temos que prestar atenção a poucos e bons artigos, e não a um grande número de textos medíocres, publicados facilmente na internet.”

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Ciência à prova de erros – e fraudes

Investigar, provar, reproduzir – Esse estímulo para uma vasta quantidade de publicações anuais dos pesquisadores é um fenômeno recente na área científica. Ele surgiu na metade do século XX, junto com a consolidação de grandes estruturas que sustentam a atividade acadêmica, como institutos de financiamento e grandes laboratórios, e coincidiu com a era da tecnologia da informação, que trouxe maior capacidade de armazenamento e verificação de dados. Foi nesse momento que a ciência, de uma vez por todas, deixou de depender dos recursos de alguns mecenas e da atividade voluntária de pesquisadores abnegados para se tornar um organizado e rentável mercado de inovações. Até então, a ciência tinha a tendência a ser avessa a métricas produtivas.

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Isso porque, na Antiguidade, os maiores sábios costumavam demonstrar suas ideias em exposições públicas ou aulas, dedicando pouco tempo à escrita (e a procurar faturar com suas conclusões). O grego Sócrates (469 a.C. – 399 a.C), um dos maiores filósofos da história, jamais rabiscou uma linha, e é conhecido por ter sido contra a o registro escrito. É graças às anotações dos alunos, como Platão, que conhecemos as ideias do sábio.

A observação da natureza e a discussão de ideias eram as melhores maneiras de analisar o mundo até o desenvolvimento da metodologia científica, baseada na formulação e investigação de hipóteses. Esse sistema chegou à ciência com nomes como o do francês René Descartes (1596-1650) e, curiosamente, o de Isaac Newton (1643-1727). Depois de 40 anos sem colocar no papel suas reflexões e sofrendo de certo descrédito acadêmico, Newton publicou sua obra-prima e ajudou a formular princípios que até hoje são seguidos (e dificilmente serão desacreditados por completo no futuro; apesar de Einstein ter feito acréscimos essenciais à noção que se tem das forças gravitacionais).

No fim da vida, o genial Newton se tornou presidente da Academia Real de Ciências da Inglaterra, fundada em 1660, que tem como divisa a citação latina nullius in verba, algo como “não acredite apenas na palavra”. Ou seja, a partir do século XVII não bastava apenas ter uma ideia, era preciso que ela fosse exposta e provada. Em um texto claro e preciso, de preferência. Ou seja, em um artigo científico.

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A partir daí surgiram as primeiras publicações científicas europeias, como a Philosophical Transactions, da Academia Real inglesa, e o Journal des Sçavans, na França, em 1665. Cientistas de todo o continente se esmeravam para ter suas conclusões publicadas nesses periódicos e nos que surgiram nos séculos posteriores, como a Nature e a Science. Métodos como citações, notas de rodapé e revisão por pares foram desenvolvidos para garantir que as pesquisas fossem sérias, transparentes e livres de fraudes. A publicação científica se tornou um parâmetro que faz com que cientistas ao redor do mundo acessem os dados de descobertas e inovações.

O sistema funcionou bem até que, no início dos anos 80, o número de problemas com a integridade dos estudos publicados começou a crescer. Cópias, dados fabricados e provas falsas chamaram a atenção de cientistas. Só em 2012, foram cerca de 400 artigos retratados (por dados incorretos, ou mesmo por acusações de cópia) em periódicos ao redor do mundo, número semelhante ao de 2011. Em 2013, os dados subiram para 500, de acordo com o último levantamento do site americano Retraction Watch, que publica diariamente notificações de pesquisas retratadas. Trata-se de uma pequena fração dos cerca de 2 milhões de artigos publicados anualmente – mas as fraudes são cada vez mais comuns.

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A comunidade científica percebeu que por trás dos dados havia dois fatores importantes: a tecnologia, que tornou mais fácil não só a manipulação das informações, mas também o controle e avaliação dos resultados científicos. A publicação em sistemas online faz com que cientistas em qualquer ponto do globo tenham acesso às informações e possam julgar os trabalhos, criando a mais poderosa rede de avaliação já vista na ciência. Com isso, qualquer equívoco ganha relevância. Mas, ao mesmo tempo, a rede permite que qualquer um espalhe mentiras e farsas.

Outra razão identificada para os problemas, mais sutil que a primeira, são os grandes incentivos para que os cientistas publiquem vários artigos, sendo pontuados pela quantidade em rankings acadêmicos e de produtividade e, consequentemente, recebendo recompensas financeiras. A necessidade de publicar muito para sobreviver ou ganhar notoriedade pode, em alguns casos, sobrepor-se aos sóbrios preceitos científicos de investigação.

É o caso do cenário que se vê na China, país que nos últimos anos tem publicado milhares de artigos, principalmente em pesquisas genéticas. De acordo com a plataforma online PubMed, dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) americano, chineses divulgaram nos últimos cinco anos cerca de 400 000 artigos. É mais do que a China produziu em toda a primeira década do século XX. Um deles teve uma retratação história feita pela revista Nature, em julho do ano passado. Em janeiro de 2014, um grupo de cientistas japoneses descreveu uma técnica revolucionária para transformar células animais maduras em células-tronco. Foi a primeira pesquisa a descrever uma forma simples e eficaz de produzir as células. Grupos de cientistas de todo o mundo tentaram replicar o achado, sem sucesso. Seis meses depois, a o periódico fez a retratação. A pesquisa continha dados fabricados. No caso da China, o que agrava a situação é a dificuldade de ter acesso a dados brutos das pesquisas, controlados pelo governo. Logo, pouco se sabe de quanto dos 400 000 textos da última meia década são falsos.

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“A lógica científica muda com o tempo e com o contexto. Hoje estamos em um momento em que a ciência é feita por grandes conglomerados internacionais, que fomentam a inovação. Há um sistema imenso que apoia esse serviço público e, por isso, o rigor deveria é ser ainda maior”, explica Jailson de Andrade, professor da Universidade Federal da Bahia e um dos membros da Comissão de Integridade, ramo do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Menos quantidade, mais qualidade – A quantificação dos artigos costuma ser um importante parâmetro que revela a distribuição dos maiores investimentos em ciência. Pelos números é possível saber quais países ou universidades estão com foco em cada tipo de área do conhecimento. No entanto, a medição da quantidade não pode ser o único guia. Entre cientistas (dos mais charlatões) é comum o truque de dividir um artigo importante em várias publicações, ou repetir a mesma informação em diversos meios, com poucas variantes de conclusões. O objetivo: inflar seus números e ganhar pontos (e financiamento) no universo acadêmico, mesmo que os textos não sejam relevantes.

Por isso, no início dos anos 1990, os Estados Unidos decidiram modificar as estratégias de recompensa científica. A Fundação Nacional de Ciências (NIH, na sigla em inglês), começou a pedir que pesquisadores listassem apenas suas dez publicações mais importantes, e não as dezenas ou centenas de artigos publicados. As universidade do país seguiram essa diretriz e, hoje, o NIH pede que cientistas façam apenas uma descrição de suas publicações, sem se importar com o número. A ênfase é nos resultados, não em quantos ou onde foram publicados.

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O exemplo é positivo, mas ainda não é uma realidade no universo acadêmico. Diz o psicólogo Brian Nosek, da Universidade da Virginia, nos Estados Unidos, e autor de um dos artigos publicados na Science sugerindo novos parâmetros para garantir a transparência das pesquisas: “Eu e os alunos de meu laboratório somos recompensados por publicar com a maior frequência possível e nos periódicos de mais prestígio. Em nossa carreira, devemos fazer trabalhos inovadores, positivos, com resultados muito claros. Mas a realidade é uma bagunça, porque lidamos com problemas difíceis e nos aventuramos no desconhecido. Então, para ter e manter um emprego, e vencer nesse mercado competitivo, o incentivo é que façamos nossa pesquisa parecer melhor do que é. Acredito que o grande desafio é mudar esses incentivos para que os cientistas sejam premiados por serem cuidadosos e transparentes, não excessivamente produtivos.”

Se a ciência é o motor para a compreensão do funcionamento do mundo e do ser humano, a ética e integridade das pesquisas precisa prevalecer no trabalho. Um dos grandes exemplos seguidos pelos cientistas é o do naturalista britânico Charles Darwin, que investiu a vida em uma única ideia, buscando falhas e reformulando pensamentos até morrer. Com isso, revolucionou o planeta com uma conclusão que só parece simples pelos olhos de hoje: a de que seres vivos evoluem ao se adaptar ao ambiente. “Temos que ser os críticos mais severos de nossos artigos, buscando explicações alternativas e revendo os próprios preconceitos. Há muitos artigos que não sobrevivem a esses questionamentos e nem deveriam ser publicados”, diz Marcia McNutt, editora-chefe da Science.

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