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Séries fantásticas reinventam a arte de vender o absurdo

‘Sleepy Hollow’ reinventa a história do Cavaleiro sem Cabeça. É mais uma daquelas bobagens que causam dependência

Por Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 8 fev 2014, 05h00

Os ingleses não foram os únicos inimigos enfrentados pelo general George Washington (1732-1799) na Guerra da Independência dos Estados Unidos. Um dos “pais fundadores” da pátria, o futuro primeiro presidente americano lutava na verdade contra um mal muito maior: as forças demoníacas comandadas por uma entidade chifruda de origem primitiva conhecida como Moloch. Mais que o destino de uma nação, o que estava em jogo ali era o futuro da humanidade. Em seu favor, Moloch contava com um emissário terrível: a Morte, um dos quatro cavaleiros do Apocalipse, cerrava fileiras com os opositores da independência, disfarçada de mercenário a serviço da Coroa inglesa. Só que seus planos foram frustrados por um golpe de espada. O oficial Ichabod Crane (Tom Mison) sofre um ferimento fatal ao duelar com o cavaleiro – mas, antes de cair morto, ceifa a cabeça de seu oponente sobrenatural. Quase dois séculos e meio depois, eis que Crane ressuscita nos dias atuais para de novo combater sua nêmese – a qual, como já se saberá a esta altura da série Sleepy Hollow, é o Cavaleiro sem Cabeça, personagem celebrizado em um conto de Washington Irving no século XIX e tema de um filme dirigido por Tim Burton em 1999. Ichabod Crane engalfinha-se, ainda, com outras figuras tenebrosas enviadas por Moloch ao lugarejo pacato onde se dará a batalha derradeira entre o Bem e o Mal. Nessa cruzada, seu guia é uma Bíblia que contém instruções deixadas pelo general George Washington em pessoa. Se o leitor chegou até aqui meio zonzo com as licenças perpetradas pelos roteiristas da série que estreou no Brasil na semana passada, na Fox, respire fundo, porque há muito mais: da maçonaria às bruxas de Salem, qualquer coisa parece caber neste caldeirão. O diabo é que uma receita que tinha tudo para desandar até que se revela saborosa. Sleepy Hollow é daquelas bobagens que causam dependência. Seu sucesso atesta como um gênero que andava apagado na televisão – a fantasia – se reformulou para restabelecer a sintonia com a audiência.

Os sinais de que o ambiente se tornou propício para a proliferação de uma nova cepa de séries fantásticas estão no ar há algum tempo. A chamada “nebulosa místico-esotérica” – saco de gatos em que se misturam desde o interesse por cultos de magia negra até certa ficção de viés ocultista sobre a religião e a história – teve seu potencial fermentado por fenômenos como a saga Harry Potter, os best-sellers de Dan Brown e a franquia Crepúsculo. Na própria TV americana, aliás, séries como Medium e Supernatural já se haviam beneficiado desse apetite. Mas o que se vê agora é o surgimento de uma teledramaturgia que busca condensar tantas coisas difusas em um só produto e, assim, extrair o máximo proveito de seu poder de atração sobre o público. O espectador gosta de contos de fadas? Em Once Upon a Time (Era uma Vez), ele pode se esbaldar: cacos das histórias de Branca de Neve, Cinderela e Pinóquio se mesclam a uma trama contemporânea sobre amor e amizade – combinação que equivale a jogar o sapo n’água para quem deseja atingir a juventude do sexo feminino. Seu derivado Once Upon a Time in Wonderland – assim como o original, exibido no Brasil pelo Sony – comete uma heresia de fazer o autor do clássico Alice no País das Maravilhas, Lewis Carroll (1832-1898), revirar-se na tumba: a menina Alice virou uma adolescente namoradeira e se envolve com um gênio da lâmpada.

Se o espectador procura terror gótico, estará igualmente bem servido (ou, dependendo do ponto de vista, bem lascado). Grimm, do Universal Channel, também se vale de um enredo moderno calcado em contos de fadas. Mas puxa a coisa para o lado sombrio (e nem tão conhecido) das histórias dos irmãos Jacob (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859). Lost Girl, que acaba de migrar do canal Sony Spin para o AXN em razão de seu sucesso entre os adolescentes brasileiros, consegue o feito de ser uma série amena protagonizada por um demônio. A heroína Bo (Anna Silk) é um súcubo, entidade maléfica que suga a energia dos seres humanos durante o ato sexual. Renunciando à maldade, ela se alia às suas potenciais vítimas – e sem fazer discriminação de gênero: Bo é bissexual. A televisão oferece fantasia também para quem busca algo mais hardcore. American Horror Story, do FX, narra uma história diferente a cada leva de doze a treze episódios – e sua audiência aumentou em dois terços ao investir num tema caro ao pessoal da Nova Era: a bruxaria. Em sua terceira temporada, intitulada Coven (Conciliábulo), os endiabrados roteiristas Ryan Murphy e Brad Falchuk puseram em circulação uma estirpe de feiticeiras de Nova Orleans que remonta aos tempos coloniais. Com suas bruxas ávidas por sexo e poder, Coven é uma via insólita, mas surpreendentemente bem-sucedida, para falar sobre emancipação feminina e racismo.

O apelo à magia é o elemento unificador mais óbvio de atrações com temas e tons tão distintos. Mas, da presença incendiária do mal à enxurrada de referências literárias, as novas séries fantásticas comungam de outros ingredientes (veja o quadro abaixo). A propósito: a alquimia resultante daí tem um viés meio espírita. Em Once Upon a Time, Branca de Neve e a bruxa má saem do plano temporal indefinido dos contos de fadas rumo a uma cidadezinha americana atual. Ali, elas encarnarão personagens diferentes, mas continuarão acorrentadas a seu carma. Coisa parecida se aplica a Sleepy Hollow: ao ressuscitar, Ichabod Crane descobre que no passado já era ligado a figuras do presente como sua parceira Abbie Mills (Nicole Beharie). Nessa salada do historiador doido, também há espaço para ordens de bruxaria que lutam em lados opostos na Guerra da Independência americana. A mulher do herói é uma feiticeira “do bem” condenada a vagar num umbral semelhante ao descrito nos livros do médium brasileiro Chico Xavier.

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Não basta, porém, jogar tudo num caldeirão para produzir uma fantasia de sucesso. Uma regra fundamental do gênero reza o seguinte: por mais absurda que se revele a história, sua harmonia depende de determinados códigos internos que não podem ser pervertidos, sob pena de incorrer no descrédito da plateia. Tome-se, para citar outra precursora importante dessa seara, Lost. Na série de J.J. Abrams, o momento surreal em que um urso-polar surge numa ilha tropical deserta foi um exemplo do risco embutido em toda trama fantástica: o que garante, afinal, que o espectador vai aceitar uma premissa tão sem pé nem cabeça? Lost se safou do risco de botar um urso na praia, mas em temporadas seguintes cruzou perigosamente a fronteira do tolerável. No caso de Sleepy Hollow, a peça de resistência é a autoironia: os roteiristas não têm medo de rir e apontar o ridículo de seu próprio nonsense. Ichabod Crane anda tranquilo pelos Estados Unidos de hoje metido em seu jaquetão esfarrapado de combatente do século XVIII. Tudo bem: com a cabeça nas nuvens, o distraído espectador nem liga.

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