Novo Chico Buarque dá saudade do velho
Compositor de grande contribuição para a música brasileira, Chico Buarque retorna sem viço em disco que carrega o seu nome
O disco Chico (Biscoito Fino, 29,90 reais), 44º do cantor e compositor Chico Buarque, chega às lojas neste fim de semana, mas já eriça o público há um mês, desde que vazou na internet a faixa Querido Diário, primeira entregue a quem adquiriu o álbum na fase de pré-venda. Se o disco é bom ou ruim, não falta quem o diga antes mesmo de ouvir, tamanha a sombra que o mito do artista projeta sobre a sua música.
Há os que têm Chico Buarque em alta conta por sua posição ideológica. E há quem o censure justamente por isso, vendo na mistura entre arte e política que caracteriza sua pessoa pública uma forma de nutrir o citado mito. Há os que o colocam no rol de gênios de uma época de ouro da música brasileira – blindado, portanto, pelo passado. E há aqueles (e aquelas, especialmente) para quem seus olhos azuis e charme de conquistador discreto superam as canções. É preciso afastar todos esses elementos para ter uma ideia nítida do que representa o novo disco – o primeiro após cinco anos – dentro da música atual e, sobretudo, dentro de uma obra importante da MPB.
Ouça abaixo trechos das canções do disco
O próprio Chico Buarque procura traçar relações entre o disco que sai agora e o sólido cancioneiro que construiu. “Querido Diário é um novo Cotidiano“, disse em um dos vídeos produzidos para a pré-venda de seu álbum em www.chicobastidores.com.br. A verdade, porém, é que a ligação é imperfeita. A faixa do já famigerado verso “Amar uma mulher sem orifício” é uma peça pálida perto do samba que marcou uma geração e entrou, sem dúvida, para a galeria dos melhores já produzidos. Galeria em que Chico Buarque figura pelo que fez especialmente entre as décadas de 1960 e começo dos anos 1980.
Revelado em um festival de 1966 com a música A Banda, exemplo tímido do que teria a oferecer, o compositor carioca nunca definiu gênero algum. Moldou-se desde cedo – e com inegável maestria – à tradição da música nacional, elegendo como mestres Noel Rosa, Ismael Silva e o quase contemporâneo João Gilberto.
Por temperamento e formação – ele sempre disse fugir de grupos e rótulos -, Chico se esquivou do diálogo com movimentos musicais mais novos. Compondo sambas, sambas-canções, valsas e marchas, criou narrativas sobre o cotidiano e personagens marginalizados, retratados também em suas peças de teatro: a mulher da noite, o malandro, o operário. Dos dez primeiros anos de sua carreira, é possível extrair canções de grande valor, como A Rita (1966), Noite dos Mascarados (1967), Quem Te Viu, Quem Te Vê (1967), Retrato em Branco e Preto (1968), Roda Viva (1968), Apesar de Você (1970), Cotidiano (1971) e O Que Será? (1976) – confira as faixas na lista abaixo.
A consagração definitiva, e também o nascimento do ícone, veio com o recrudescimento do regime militar, a partir de 1968. A canção de protesto, do qual Chico é expoente inconteste (vide Apesar de Você), o tornou, para o bem e para o mal, um medalhão. Chico Buarque arrebanhou a juventude militante com letras cifradas, envoltas em melodias “antigas”, e conquistou definitivamente a crítica.
Os últimos anos – A renovação criativa não deve ser uma imposição para todo artista. Mas, sem ela, um artista perde seu gume – como de fato aconteceu paulatinamente com Chico Buarque a partir dos anos 1980. Era um período rico em transformações. Enquanto o fim do regime militar abria o leque do pensamento político e matava a música de protesto, a ascensão do rock do Rio e de Brasília propunha novas formas de se posicionar no mundo e tirava do centro do palco jovem a já quase matrona MPB. A juventude mudava de perfil. Caetano Veloso, sintonizado com os acontecimentos, buscava novas formas de falar de política, como em Podres Poderes, de 1984. E onde estava Chico Buarque?
Na segmentação política que se seguiu à ditadura, foi ficando claro que Chico não era apenas um cantor que protestava contra os militares. Era um cantor partidário, disposto a por o prestígio adquirido em rádios e festivais a serviço de um partido, o PT. Artistas e intelectuais que se põem a serviço de um projeto de poder abrem mão de algo que deveria ser sagrado para qualquer artista e intelectual, a sua independência. Para alguns, no entanto, Chico se tornou ainda mais encantador ao fazer isso.
O último espasmo criativo do compositor se deu em 1993, no disco Paratodos. Canções como aquela que dá nome ao disco, além de Sobre Todas as Coisas e Futuros Amantes, se impõem sobre as que viriam depois, nos discos As Cidades, de 1998, e Carioca, de 2006.
Carioca, aliás, coincide com o lançamento de Cê, o disco em que Caetano Veloso, seu contemporâneo, dialoga com a nova geração de forma vigorosa, pela releitura de sambas com timbre de rock’n roll. Enquanto o colega baiano se arriscava, Chico se mantinha encastelado na tradição que não se renova. Dois anos antes, em uma entrevista, ele reconheceu: “O que eu posso é refazer da melhor maneira possível o que já fiz. Não tenho como romper com isso”. Ciente, ao que parece, do aspecto deslocado que foi tomando a sua obra e que já não tem a estatura de antes.
Composto ao longo de cinco meses e gravado em um, Chico, o disco que sai agora, tem dez canções de curta duração que são, juntas, um simulacro chinês do Chico Buarque de antes. As músicas renunciam ao rádio e muitas vezes recaem no rococó e no maneirismo – que são formas viciadas de lidar com a tradição.
Os bastidores da gravação, divulgados a conta-gotas no site Chico Bastidores, se revelaram numa estratégia comercial como outra qualquer, ao contrário do blog Obra em Progresso, criado por Caetano Veloso para a gravação do disco Zii e Zie. Pela página, Caetano construiu uma obra em tempo real, a partir dos comentários postados por internautas a respeito das criações que apresentava. Chico, o mito, apenas apresentou músicas prontas, não colheu sugestões. E vendeu, é claro: foram 6.000 cópias na pré-venda, resultado que animou a gravadora Biscoito Fino a dobrar o número total de cópias do novo álbum.
Ao todo, 45.000 cópias de Chico estarão nas lojas este fim de semana. É quando o público vai se deparar com versos ruins (“amar uma mulher sem orifício”), pretensiosos (“trouxe um porrete a mó de me quebrar / mas eu não quebro porque sou macio”) e bobos (“meu cabelo é cinza/ o dela é cor de abóbora”, feito para a namorada, Thais Gulin). Os arranjos soporíferos, a cargo de Luiz Claudio Ramos, em nada melhoram o leque de ritmos que vai da marchinha de coreto (Rubato) ao baião (Tipo um Baião), passando pelo samba (Sinhá, parceria com João Bosco) e a valsa (Se Eu Soubesse). Em resumo, um trabalho sem jovialidade, retrato de um ocaso criativo que infelizmente parece irreversível.