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Tragédia na boate Kiss: 2 anos e nenhum condenado

Principal processo que tramita na Justiça ainda está em fase de instrução e deve se arrastar por mais dois anos. Cerimônias religiosas vão lembrar as 242 vítimas do incêndio na próxima terça-feira

Por Eduardo Gonçalves Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 25 jan 2015, 07h00

Duzentos e quarenta e dois tornou-se um símbolo onipresente na rotina da cidade gaúcha de Santa Maria, a 300 km de Porto Alegre. O número, que representa o total de mortos em decorrênca do incêndio que atingiu a boate Kiss na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, pode ser visto estampado em camisetas de milhares de parentes e amigos das vítimas, em cartazes colados em muros e postes, ou em balões lançados ao céu nos tantos atos feitos em memória do incidente. Também pode ser ouvido nas cerimônias religiosas que ocorrem mensalmente a cada dia 27 ou em contagens demoradas – do 1 ao 242 – em protestos contra a morosidade da Justiça em colocar um ponto final no caso. Na próxima terça-feira, o número deve tomar a paisagem do município como sinal de que, completados dois anos, a população de Santa Maria ainda não se esqueceu dos corpos de jovens intoxicados pela fumaça tóxica em frente à casa noturna.

Se depender do Judiciário, no entanto, o caso ainda está longe de chegar a uma conclusão. O principal processo, que avalia a responsabilidade dos donos da boate, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffman, e dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão, ainda está em fase de instrução. Isso significa que provas e depoimentos ainda estão sendo colhidos para comprovar a denúncia do Ministério Público, que acusa os quatro réus de homicídio qualificado (motivo torpe e meio cruel) com dolo eventual (quando se assume o risco de matar) e tentativa de homicídio de outros feridos na tragédia.

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Até agora já foram ouvidas 179 pessoas – 116 sobreviventes, 16 testemunhas de acusação e 49, de defesa. Nos próximos meses, está agendado o depoimento de mais 26 pessoas, entre elas os 24 peritos do Instituto-Geral de Perícias (IGP), que fizeram a análise técnica da planta e dos documentos da boate. Em seguida, os quatro réus serão interrogados e só depois o juiz Ulysses Fonseca Louzada, titular da 1ª Vara Criminal da Comarca de Santa Maria, emitirá uma das quatro sentenças possíveis: manter a acusação por dolo, levando os réus ao tribunal do júri; tornar o homicídio culposo (quando não há intenção de matar), fazendo com que eles sejam julgados por um juiz; encerrar o processo por falta de provas; ou isentá-los de culpa da tragédia.

A partir daí, começará a fase de julgamento se uma das duas primeiras opções forem acatadas, o que deve se arrastar por mais dois anos, segundo previsão do secretário-geral da OAB do Rio Grande do Sul, Ricardo Breier. Para os familiares das vítimas, a demora da Justiça em solucionar o caso só aumenta a dor da perda e a desconfiança em relação às autoridades. “Para nós, isso é bastante frustrante porque nesses dois anos nós imaginávamos que teríamos uma resposta [sobre o caso] e não tivemos. É uma tragédia muito grande para que nada seja feito, são 242 mortos”, afirma Adherbal Ferreira, que perdeu a sua filha, Jennifer, de 22 anos, no incêndio. Ele é presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, que prepara um grande ato em memória às vítimas no dia 27.

Na visão do juiz, no entanto, o caso corre dentro da normalidade. “Estamos tentando trazer uma tranquilidade para todas as partes e propiciando que não haja ferimento ao contraditório, propiciando a defesa pessoal, mas também pública de tudo aquilo que está sendo trazido para dentro do processo”, afirmou o Louzada. O secretário-geral da OAB-RS concordou com a afirmação do juiz e reiterou a necessidade de ambas as partes terem direito a exposição plena de seus argumentos. “Geralmente, processos penais com apenas uma vítima, tem levado, em média, de um a dois anos, na melhor das hipóteses. Imagina um caso desta complexidade, que tem muitas vítimas e réus. Essa lentidão visa o único objetivo de ter uma certeza na hora da condenação ou absolvição”, avaliou Breier.

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Além da celeridade no processo, familiares das vítimas têm direcionado suas críticas às apurações feitas pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Isso porque a promotoria excluiu da denúncia os servidores municipais que haviam sido indiciados pela Polícia Civil por terem autorizado o funcionamento da casa noturna. No total, o inquérito policial, que tem mais de 14.000 folhas, cita 22 pessoas, mas o MP só aceitou denunciar oito delas – além dos quatro, que respondem por homicídio, dois bombeiros são acusados de fraudar documentos entregues aos investigadores, e dois sócios da boate, por falso testemunho.

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“Esse é o grande problema que estamos enfrentando. Os promotores em vez de fazer o dever deles, estão fazendo o papel inverso, defendendo os agentes públicos”, reclama Flavio José da Silva, presidente do Movimento Santa Maria do Luto à Luta, para quem os servidores municipais, incluindo o prefeito Cesar Schirmer (PMDB), são os principais responsáveis por terem permitido o funcionamento de uma boate em situação irregular e sem condições de segurança. Antes da tragédia, Flavio trabalhava numa pequena empresa de construção civil com a filha universitária Adrielle, de 22 anos, morta no incêndio. Desde então, largou o emprego e se dedicou a fazer uma investigação paralela à da polícia e do MP para encontrar os culpados.

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Responsabilizar os agentes públicos também faz parte da estratégia de defesa dos réus, para quem o argumento de que a boate estava funcionando sem os alvarás necessários por negligência das autoridades. O delegado regional de Santa Maria, Marcelo Arigony, afirmou que, da parte da Polícia Civil, o caso já acabou. “Houve uma dissonância muito grande [entre o MP e a Polícia Civil]. Mas embora a denúncia tenha ficado muito aquém do que nós entendemos, não temos legitimidade e não é o nosso papel criticar outras instituições”, afirma o delegado.

De acordo com o Ministério Público, não foi verificado nenhum elemento que comprovasse que os servidores municipais agiram por benefício próprio, o que configuraria a prática de improbidade administrativa. Os promotores apontaram apenas que houve falha administrativa, e os recomendou a alterar procedimentos de emissão de alvará. “Não se pode daí extrair improbidade administrativa de servidores municipais, por mais que seja imperioso reconhecer que práticas administrativas precisem ser mudadas”, afirma o promotor Maurício Trevisan. Sobre as críticas à parcialidade da promotoria, o subprocurador Marcelo Dorneles diz: “Posso afirmar que os Promotores atuaram de forma técnica, sem deixar de buscar a responsabilização de ninguém, mas também sem apontar qualquer pessoa que não tivesse como comprovar responsabilidade”. Já o prefeito de Santa Maria sustenta desde janeiro de 2013 que a administração municipal não nenhum culpa pela tragédia.

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Na esfera criminal, além da ação que julga os quatro réus, mais dois processos tramitam na Justiça do Rio Grande do Sul: um referente à fraude processual praticada por dois bombeiros, e outro, à falsidade ideológica praticada por dois sócios da Boate Kiss. Na Justiça militar, oito bombeiros respondem por negligência e falsificação de documentos. Na esfera cível, quatro bombeiros são réus por improbidade administrativa.

Apesar do sentimento de frustração, os familiares ainda têm a expectativa de que os culpados sejam condenados e alimentam essa esperança tomando como exemplo tragédias semelhantes ocorridas no exterior, como a do incêncio na boate argentina Cromañón, que deixou 194 vítimas em 2004. Oito anos depois, quatorze pessoas foram responsabilizadas pelo incêndio e tiveram a prisão decretada pela Justiça argentina. “Para nós não foi uma tragédia, foi um assassinato em massa. E nós não vamos descansar ou parar enquanto os responsáveis não pagarem pelo que fizeram com os nossos filhos”, diz Flavio José da Silva, do Movimento Santa Maria do Luto à Luta.

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