Para ministro do STF, embriaguez não agrava crime no trânsito
Baseado estritamente nos livros, Luiz Fux decide que motorista embriagado não deve responder por homicídio doloso
Para o jurista e professor Luiz Flávio Gomes, o fato de o país conviver com tantos acidentes fatais faz com que os brasileiros queiram punir quem mata ao volante
Em outubro de 2007, Paulo César Timponi, 49 anos, ex-professor de Educação Física, dirigia seu Volkswagen Golf a 130 quilômetros por hora na ponte JK, em Brasília, quando chocou-se contra um Toyota Corola que transportava três mulheres. Antônia Vasconcelos, Altair Barreto e Cíntia Cysneiros atravessaram o para-brisa e morreram na hora. Timponi estava embriagado.
Em 9 de julho, Marcelo Malvio de Lima, 36, engenheiro, dirigia seu Porsche a 150 quilômetros por hora na Rua Tabapuã, em São Paulo, quando chocou-se contra o Hyundai Tucson de Carolina Santos, 28. Ela morreu. Ele estava alcoolizado, disseram testemunhas.
No último sábado, 17 de setembro, Marcos Alexandre Martins, 33, auxiliar de bibliotecário, dirigia seu Golf a 100 quilômetros por hora na Marginal Pinheiros, também na capital paulista, quando atropelou e matou Miriam Baltresca, 58, e sua filha Bruna, 28, que estavam na calçada. O motorista também estava bêbado, informou um policial.
Timponi, Lima e Martins tiveram a intenção de matar? No entendimento de Luiz Fux, ministro do Supremo Tribunal Federal, não. Em 6 de setembro, Fux julgou um habeas corpus impetrado pela defesa de um motorista que, depois de provocar a morte de uma pessoa ao dirigir embriagado, foi enquadrado por homicídio doloso ─ quando há intenção de matar. A defesa queria que o crime fosse considerado culposo (quando não há tal intenção). Fux avaliou que motoristas bêbados só devem responder por crime doloso quando ingerem bebida alcóolica para “encorajar-se para cometer um delito qualquer”. Como não era o caso, a defesa saiu vitoriosa. A decisão, embora não sirva para embasar outros julgamentos, abre um precedente.
“A decisão do ministro Fux é tecnicamente perfeita”, afirma o professor e jurista Luiz Flávio Gomes. “A discussão é totalmente técnica”. Segundo Gomes, quem bebe e acelera não assume o risco de matar. “Pela lei, só a bebedeira e a velocidade do veículo não caracterizam dolo eventual. É preciso haver mais detalhes”. Um dos detalhes, informa o jurista, acontece quando o motorista dirige perigosamente, em zigue e zague, ou ultrapassando semáforos vermelhos, por exemplo. Outro detalhe é quando o réu diz com todas as letras que quis dirigir e “se alguém morrer, morreu”. Sobre a morte de Miriam e Bruna Baltresca, Gomes afirma: “Martins cometeu uma tremenda imprudência, que deve ser punida, mas sem dolo eventual”.
Segundo o jurista e criminalista Damásio de Jesus, autor do livro Crimes de trânsito, embora a teoria do direito Actio Libera In Causa determine que “só a embriaguez não configura dolo eventual”, os motoristas que matam no trânsito costumam ter atitudes que evidenciam a intenção de matar. “O dolo é o famoso ‘dane-se’ do direito penal”, diz. “Esse ‘dane-se’ ocorre o tempo todo no trânsito. Os motoristas que bebem e dirigem em alta velocidade, cometem barbaridades ao volante. Isso basta para configurar o dolo”.
Damásio discorda da posição de Luiz Fux. “É absurda a hipótese levantada pelo ministro Fux, de que só é crime doloso se o sujeito bebe para tomar coragem para cometer o crime”, afirma. Sobre o atropelamento provocado por Marcos Martins, Damásio é categórico: “Martins deve ser processado por homicídio doloso. Cada caso é um caso, mas há situações que temos que levar para o terreno do dolo”.
População saturada – No primeiro semestre deste ano, 378 boletins de ocorrência de acidentes de trânsito com morte foram registrados só em São Paulo, segundo a Secretaria de Segurança Pública do estado. Em 2010, foram 269. Do ano passado para cá, houve um aumento de 40,5% nos acidentes fatais. “O Brasil vive praticamente uma guerra no trânsito, são 35.000 mortos por ano”, ressalta Damásio. “É um momento muito infeliz para o STF dizer que um motorista bêbado que provoca uma morte não tem a intenção de matar”.
Para o jurista Luiz Flávio Gomes, o fato de o país conviver com tantos acidentes fatais faz com que os brasileiros queiram punir exemplarmente quem mata ao volante. “O Brasil não suporta mais acidentes de trânsito, por isso a população faz tanta pressão para que seja imputado dolo nesse tipo de crime”, observa. “Os delegados são pressionados pela população e pela mídia para que enquadrem os motoristas bêbados com firmeza”.
A vontade da população, contudo, vai contra a lei, acredita Gomes. “Os delegados tentam imputar dolo em todos os crimes de trânsito e acabam forçando a barra”, afirma. Para Gomes, um crime de trânsito é sempre culposo. Uma solução, segundo o jurista, seria triplicar ou quadruplicar a pena. Hoje, homicídios culposos, têm pena de 1 a 3 anos de prisão, e, dolosos, de 6 anos a 20 anos.
Mãe e filha – Para a família de Miriam e Bruna Baltresca, não há dúvidas de que Marcos Martins teve a intenção de matar. “É um absurdo que a pessoa tenha consciência para beber, mas não seja punida por isso”, diz Manoel Fernandes, tio de Bruna. “O cara que bebe está ciente da responsabilidade que tem”.
Segundo Fernandes, a família está muito abalada, mas pretende começar uma campanha para que a morte das duas mulheres não tenham sido em vão. “Nós somos uma família pequena, mas muito unida. Nossa intenção é aproveitar esse momento de tristeza para conscientizar o máximo de pessoas possível”.