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Mensaleiros: a tática do deboche

Mensaleiro fugitivo é preso na Itália com passaporte de um morto, enquanto no Brasil seus companheiros adotam a estratégia do escárnio à Justiça, com demonstrações de deselegância, grosseria e poder econômico

Por Mario Sabino, de La Spezia (Itália), e Rodrigo Rangel
8 fev 2014, 05h00

O bancário Henrique Pizzolato sempre foi um militante exemplar para os padrões do PT. Quando o partido era oposição, ele fazia parte de um grupo cuja especialidade era cavar na surdina denúncias de malfeitos contra o governo, trabalho que exercia com competência. No poder, Pizzolato foi indicado para a diretoria de marketing do Banco do Brasil, posto estratégico para executar uma missão muito mais delicada: alimentar com dinheiro público o esquema montado pelo PT para subornar congressistas e comprar apoio político. Apesar da aparente contradição, Piz­zolato também cumpriu a tarefa com sucesso, desviando 77 milhões de reais do banco para as contas do partido e, como qualquer ladrão, reservando uma parte do dinheiro para melhorar o próprio padrão de vida – comprando apartamentos luxuo­sos, casas, carros, lotes… Em 2005, o crime foi descoberto. Assim como seus colegas de partido, ele foi condenado à prisão por corrupção, lavagem de dinheiro e peculato, mas fugiu do Brasil assim que o veredito foi confirmado. Pizzolato foi preso na semana passada na cidade de Maranello, no interior da Itália. Na linha imaginária que divide o Brasil em dois – o civilizado e o que ainda se arrasta pelos séculos passados -, pode-se dizer que o mensalão, o maior escândalo de corrupção da história do país, tem um pé em cada lado.

Antes de partir para Maranello, Pizzolato morou em Porto Venere, uma das enseadas mais belas – e caras – da Riviera italiana. Chegou com a mulher em meados de novembro do ano passado e instalou-se num residence chamado I Gabbiani. Às pessoas com quem conversava, contava que estava ali, naquele “pedaço de paraíso”, para gozar a aposentadoria depois de uma vida dedicada ao trabalho. Ao cabo de algumas semanas, perguntou ao proprietário do hotel, o senhor Giovanni, se não poderia morar no apartamento em que se hospedara. O proprietário lhe respondeu que não gostaria de ter moradores no residence, porque isso não seria tão lucrativo para ele e sairia muito caro ao “senhor Celso”. Mas que alugaria com gosto uma casa sua, localizada na mesma rua, Via Olivo, só que mais acima, igualmente com vista para o mar. Pizzolato e a sua mulher adoraram a pequena “villa” (como são denominadas na Itália as casas maiores, cercadas por jardim), em que o tom de rosa das paredes externas faz um belo contraste com as oliveiras ao redor e o azul do Mediterrâneo, ao fundo. Fecharam o negócio por 2 000 euros por mês, fora as despesas de manutenção.

Antes de fugir do Brasil, Pizzolato assumiu a identidade de seu irmão, Celso, que morreu há 35 anos. Tirou documentos novos, votou nas eleições de 2008 e escondeu o patrimônio milionário. Em Porto Venere, ele e a mulher levavam uma vida, se não luxuosa, bastante agradável graças ao dinheiro roubado do contribuinte brasileiro: jantares em restaurantes locais, aperitivos ao cair da tarde em Le Grazie, um recanto de Porto Venere, e idas à vizinha Cinque Terre. O casal ganhou a atenção dos policiais de La Spezia, capital da província da qual Porto Venere faz parte, em janeiro, depois que a seção italiana da Interpol, baseada em Roma, lhes comunicou que havia um “Celso Pizzolato” domiciliado por lá. “Esse foi o seu maior erro: registrar-se na prefeitura de Porto Venere, a fim de obter uma carteira de identidade”, afirma o capitão Armando Ago, que comanda a seção de investigação da polícia de La Spezia. Quando o sobrenome “Pizzolato” foi registrado na prefeitura de Porto Venere, o alarme soou na Interpol – e as autoridades de La Spezia foram acionadas. Ao longo de janeiro, uma dezena de policiais monitorou o cotidiano de “Celso”. Queriam, a princípio, saber se ele estava dando guarida ao fugitivo brasileiro, mas o fato é que não havia outro homem morando na casa de Via Olivo. A certeza de que “Celso” era Henrique Piz­zolato veio depois que a Polícia Federal, em Brasília, descobriu que, para obter o passaporte em nome do irmão morto, o mensaleiro havia falsificado os papéis brasileiros necessários para a obtenção do documento. “Ao ser interpelado, ele fingiu não saber italiano, falava apenas em português”, ri o capitão Ago.

O destino do mensaleiro está, agora, nas mãos da Corte de Apelo de Bolonha, onde se travará a batalha judicial em torno da sua extradição e dos crimes que cometeu como italiano. O primeiro deles é “substituição de pessoa”, uma modalidade de falsidade ideológica mais branda que pode render até um ano de prisão (o passaporte, ao contrário do que vem publicando a imprensa, não é falso em si, pois foi efetivamente emitido por representantes consulares). O segundo, mais grave, é o fornecimento de documentos falsos para a confecção do passaporte – e contabilize-se aí uma pena de mais dois anos, pelo menos. O terceiro, pesadíssimo, é reciclagem de dinheiro e fraude fiscal. Como pagava todas as suas despesas em espécie, Pizzolato precisa justificar a origem dos milhares de euros ao Ministério da Fazenda da Itália. No Brasil, sabe-se qual é. O fato: apesar de tudo isso, por ter dupla nacionalidade, ele tem grandes chances de escapar da Justiça brasileira – e ficar livre, leve e solto.

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A prisão de Pizzolato aconteceu dias depois de os mensaleiros desencadearem uma série de ações para fustigar a Justiça. O deputado João Paulo Cunha, na iminência de ter a prisão decretada, o que acabou ocorrendo na terça-feira, participou de um protesto em defesa dos criminosos promovido por petistas em frente ao Supremo Tribunal Federal. Depois, já na cadeia, anunciou que não pretendia renunciar ao mandato. Mais: queria autorização da Justiça para continuar exercendo a atividade parlamentar durante o dia – um insulto. Pressionado, ele renunciou na noite de sexta-feira. Na solenidade de abertura do Congresso, foi a vez de o vice-presidente da Câmara, o petista André Vargas, dar sua contribuição à República. Descortês, para dizer o mínimo, ele provocou o ministro Joaquim Barbosa, relator do processo do mensalão, repetindo na frente dele o gesto feito pelos mensaleiros ao serem presos no ano passado. Grosseiro, também foi flagrado escrevendo uma mensagem em que revela ao interlocutor a vontade de dar uma “cutovelada” (sic) no ministro. Os petistas mostraram mais uma vez a elevada estima e o respeito que muitos deles reservam às instituições.

DESRESPEITO: O petista André Vargas, vice-presidente da Câmara, escreveu que gostaria de dar uma “cutovelada” no ministro Joaquim Barbosa (VEJA)

Em todo o mundo, há pessoas presas por ter tomado dinheiro alheio. No Brasil, há agora encarcerados que conseguem levantar boladas a partir da cela. Mandados à prisão no fim do julgamento do mensalão, José Genoino e Delúbio Soares também foram condenados a pagar multas como parte da punição. Em um prazo incrivelmente curto, a dupla levantou o dinheiro a partir de campanhas de doação divulgadas pela internet. O PT comemorou o feito, visto como um grito vindo da sua militância. O montante e a velocidade com que se juntou tanto dinheiro chamam atenção. Genoino reuniu 761 962 reais em onze dias (média de 290,82 por doador). Delúbio amealhou 1 013 657 (média de 607,70), mais do que o dobro do necessário, em oito dias. O que sobrou será doado ao ex-ministro José Dirceu. Até o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, defendeu uma investigação, já em curso em dois estados, sobre as operações. “Qualquer um pode fazer a doação. O que a gente quer compreender é a origem do dinheiro.” O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, foi mais longe: “Será que não há um processo de lavagem de dinheiro aqui?”.

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Lideranças do PT tentaram convencer os incautos de que a arrecadação foi uma forma indireta de reprovação do julgamento do mensalão. Se for verdade, os insatisfeitos são pouquíssimos. A despeito da euforia partidária, os números divulgados mostram que o total de participantes das duas vaquinhas foi de modestas 4 288 pessoas. Trata-se ainda de uma hipótese generosa, já que é provável que entre os 2 620 apoiadores de Genoino e os 1 668 de Delúbio haja gente em comum. Portanto, a voz que se ergue contra o julgamento não passa de 0,002% da população, ou 0,003% dos eleitores. Ainda assim, surpreende que tantas pessoas se disponham a pôr a mão no bolso para pagar a multa devida por gente que, após pôr a mão no mesmo lugar, foi condenada pela Justiça.

Com reportagem de Renata Honorato e Claudia Tozetto

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