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Vinhas da ira: uvas americanas estão no centro de uma guerra na França

De um lado estão os produtores que querem poder vendê-las - de outro, os puristas que as repudiam

Por Julia Braun Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 12h46 - Publicado em 18 set 2021, 08h00
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  • Em meados do século XIX, quando o botânico Augustin de Candolle embarcou para a América, entusiasmado com a ideia de garimpar no solo do Novo Mundo espécies exóticas de videiras, um hobby que à época se disseminava entre cientistas e aristocratas, mal imaginava o vespeiro em que estava se metendo. Pois até os dias de hoje esse capítulo da vinicultura francesa, orgulhosa instituição nacional, ainda reverbera pelos belos campos de onde emergem alguns dos melhores rótulos do planeta. Dos Estados Unidos, Candolle trouxe seis tipos de uva que viriam a espalhar entre seus pares europeus uma praga que dizimou plantações por todo o continente. Resistentes que eram, as espécies americanas seguiram firmes, imunes à chamada epidemia de filoxera, mas a má impressão e o alto prejuízo que causaram nunca se apagaram. Em 1934, o comércio das castas ianques invasoras foi finalmente proibido pelo governo francês, decisão abraçada mais tarde pela União Europeia — e que agora está no centro de uma batalha embalada por paixão e fúria.

    De um lado do ringue, está a turma que seguiu cultivando as tais uvas para consumo próprio ou venda em pequena escala, sem chamar a atenção das autoridades. Hoje unidos em torno de uma organização batizada de Fruits Oubliés (Frutas Esquecidas), eles travam uma guerra judicial com o Ministério da Agricultura para derrubar o veto de décadas atrás, desta vez ancorados em um argumento que revitaliza seu eterno pleito: nos tempos atuais, o clima a cada hora traz uma surpresa nova e, safra após safra, as geadas vêm assolando os vinhedos. É aí que entram as uvas americanas, comprovadamente mais fortes diante das intempéries — como o foram no episódio da filoxera, em que se revelaram inabaláveis. Sua elevada resistência faz com que prescindam de pesticidas e agrotóxicos, um segundo fator que insufla a bandeira do movimento. “No mundo moderno, não há mais espaço para essa antiga proibição”, defende Hervé Garnier, que administra um vinhedo em Beaumont, no sul do país.

    Os puristas de plantão discordam de Hervé com a mesma veemência com que se manifestam quando alguém faz desandar uma receita de crème brulée ou põe margarina no purê. Eles comparam o vinho produzido à base das uvas americanas à “urina de raposa” e ainda sustentam, sem base científica, que fazem mal à saúde. Uma ala acha que, mesmo se um dia o governo der o sinal verde às espécies dos Estados Unidos, elas nunca terão vez e ainda podem ferir a boa imagem do produto local. “Dificilmente esses rótulos serão bem vistos em regiões onde a vinicultura é secular na França”, aposta Pierre Mérel, da Universidade da Califórnia.

    FRUTO PROIBIDO - Campanha: cartaz sugere “arrancar” as uvas americanas -
    FRUTO PROIBIDO - Campanha: cartaz sugere “arrancar” as uvas americanas – (Association Mémoire de la vigne/.)

    As uvas da discórdia pertencem à espécie Vitis labrusca e atendem por nomes bem menos conhecidos que pinot noir ou merlot: isabel (vastamente produzida no Brasil), noah, othello, clinton, herbemont e jacquez, esta um híbrido de uma casta francesa. Os vinhos que derivam delas são aqueles chamados “de mesa”, que alcançam teores alcoólicos mais baixos na fermentação e, ao contrário de rótulos prestigiados, não envelhecem bem e puxam para um adocicado característico dos sucos. Fato é que existe amplo mercado para eles. “Os vinhos de mesa atendem uma parcela maior da população pela relação custo-benefício que oferecem, mas quem procura aromas evoluídos e sabores complexos não os achará nessas variantes”, explica o enólogo Rogerio Dardeau, da Associação Brasileira de Sommeliers.

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    A resistência às uvas americanas contém um componente econômico evidente — a França quer manter mãos bem firmes sobre um mercado que girou 25 bilhões de dólares só em 2020. Mas está em jogo também o brio típico do francês, que não aceita ver suas tradições aviltadas por nada que soe invasivo à sua milenar cultura. Pesquisas mostram que, entre todas as nações europeias, a França é a que mais rejeita hábitos americanos como o fast-food — para o qual, não custa lembrar, torce o nariz, mas não só absorveu, como copiou. Já nos fervilhantes anos de 1920, quando Paris era uma festa, intelectuais propagavam a ideia de que a sociedade americana não preservava bens valiosos, como as ciências e as artes. Movido pelo mesmo afã de proteção da espécie, o governo Emmanuel Macron lançou uma polêmica cruzada para identificar influências estrangeiras nas universidades e, sendo elas pouco afeitas ao modo francês, bani-las. “Os franceses ainda se ressentem da perda de influência depois da I Guerra e demarcam seu território”, afirma o historiador Philippe Roger. É nessa arena que se desenrola a queda de braço em torno das uvas, uma novela que atravessa os séculos e diz muito sobre a França.

    Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2021, edição nº 2756

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