Sob o véu religioso, egípcias recusam a modéstia política
Após queda de Mubarak, elas iniciam uma nova revolução: a luta para ter voz
Quando a imagem do então vice-presidente do Egito, Omar Suleiman, apareceu nos telões e o anúncio da queda do ditador Hosni Mubarak ressoou pela Praça Tahir, coração da revolução, o povo egípcio explodiu em um brado de alegria. No meio da multidão não era possível distinguir claramente, mas contas posteriores revelaram que cerca de 25% daqueles gritos de comemoração eram femininos.
As mulheres muçulmanas estavam lá. Cobriam as cabeças – ou até os rostos – mas de forma inédita rejeitaram o véu da inércia política. Eram universitárias e militantes, e também, como lembrou mais tarde o presidente americano Barack Obama, mães de família que levaram seus filhos nos ombros às manifestações para finalmente terem suas vozes ouvidas.
Uma dessas vozes era a da médica Eman Hashim, que ao ouvir a boa nova pela televisão deixou de lado o cansaço de dias seguidos tratando os feridos dos confrontos, pegou o primeiro táxi e foi para a Praça Tahir. “Eu já havia participado de manifestações pelos direitos femininos, mas pela primeira vez me envolvi com a política do país”, conta Eman. “E posso dizer que o dia 28 de janeiro – batizado pelos egípcios como o ‘Dia de Fúria’ – foi o mais feliz da minha vida. Pela primeira vez, senti que era tratada como um ser humano e não como uma mulher”.
Hardy Portman
Mulheres no front – Como Eman, milhares de outras egípcias experimentaram a mesma sensação. “Nós queríamos o fim daquele regime. Passávamos pelas ruas gritando para que as pessoas se juntassem a nós. E eu vi mulheres saindo de suas casas de pijamas, atendendo imediatamente ao nosso chamado”, lembra a médica.
A urgência era parte do anseio de uma nação. Segundo Nawara Belal, co-fundadora da entidade feminista Nazra, a porcentagem de mulheres nos protestos contra Mubarak foi muito superior a de qualquer outro movimento anterior no país. “Havia uma aceitação maior das mulheres dessa vez, porque, mesmo os mais conservadores concordaram que era importante aumentar o número de manifestantes para dar força à revolução”, avalia. “Nesse cenário, os homens egípcios não puderam abrir mão de cerca de 52% de sua “tropa potencial”.
Pós-revolução – Não foi preciso muito tempo, porém, até que o sonho feminino no Egito enfrentasse seu primeiro banho de realidade. Quando o governo provisório nomeou o comitê de especialistas que formularia as emendas à antiga Constituição, nenhuma mulher foi incluída, apesar de não faltarem egípcias capacitadas para a tarefa.
As legisladoras egípcias estão entre os grupos profissionais que mais sofrem a discriminação de gênero. Elas são proibidas de exercerem a função de juízas na maioria das cortes e não podem ser investigadoras de polícia. Estas profissionais não estão sozinhas, porém. As mulheres no Egito ainda sofrem com salários escandalosamente mais baixos e têm menos oportunidades profissionais do que os homens.
Recentemente, o Fórum Econômico Mundial divulgou um ranking global de igualdade entre gêneros em que o Egito amargava a vergonhosa posição 125 entre 134 países. As diferenças começam já nas escolas e vão se ampliando na vida profissional. Cerca de 42% das egípcias são analfabetas e, logo antes da revolução, apesar do regime de Mubarak reservar um número de cadeiras no Parlamento para mulheres, apenas oito de seus 454 membros eram do sexo feminino.
Não bastasse a exclusão em discussões constitucionais, o primeiro esboço da emenda incluía uma cláusula que trazia implícito que só homens poderiam concorrer à presidência. A cláusula determinava que o candidato não poderia ser casado com “uma não-egípcia”. A juíza egípcia Tahany El Gibaly, porém, liderou um movimento pela queda dessa medida e obteve sucesso. Antes de ser votada no dia 19 de março, a emenda recebeu a seguinte alteração: o candidato à presidência não poderia ser casado(a) com um não-egípcio.
Avanços – Uma pesquisa conduzida pelo portal Wise (Women’s islamic iniative in spirituality and equality) mostra que elas não estão prontas para dar passos para trás. Entre as que responderam ao questionário, 61% acreditam que a revolução vai trazer avanços para os direitos femininos e só 18% estão céticas com relação a isso. “Uma importante consequência da revolução foi a politização de mulheres comuns. Essas mulheres já estão se organizando, debatendo, escrevendo sobre o assunto e se unindo em grupos da sociedade civil” comenta, Yasmin Moll, antropóloga de origens egípcias da New York University.
Não é um caminho curto, como constata Eman: “As mulheres de meu país têm uma grande falta de autoestima. Sem um homem, elas se sentem incompletas, frágeis. Suas mãos tremem e suas vozes vacilam. Elas se enxergam como cidadãs de segunda categoria”. O primeiro passo foi dado a partir das manifestações que derrubaram o governo Mubarak, mas as mulheres egípcias sabem que ainda precisam liderar sua própria revolução. Uma luta que pode exigir ainda mais coragem que os combates na Praça Tahir.