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Segunda morte

O solene mausoléu de Franco não combinava com a Espanha democrática

Por Roberto Pompeu de Toledo
Atualizado em 1 nov 2019, 11h18 - Publicado em 1 nov 2019, 06h00

Francisco Franco, “caudillo de España por la gracia de Dios”, como era celebrado nas moedas de seu tempo, foi um ditador que, como Stalin, teve a felicidade de morrer no poder, e de causas naturais. A sorte poupou-o de humilhação semelhante à de Mussolini, capturado pela Resistência italiana quando tentava fugir para a Suíça, executado e pendurado pelos pés. Mesmo depois de morto, porém, Franco tinha o peso da história em seu encalço e no último dia 24, 44 anos após ser enterrado na extravagante basílica-mausoléu-monastério erguida no chamado Vale dos Caídos, nos arredores de Madri, teve o corpo despejado do local. Repetiu a sorte de Stalin, que em 1961, oito anos depois do falecimento, teve o corpo removido do monumento em que fazia companhia a Lenin, na Praça Vermelha.

Quem já fez turismo em Madri conhece o Vale dos Caídos ou esbarrou com alguma proposta para incluí-lo no roteiro. Situado na Serra de Guadarrama, ao norte da capital espanhola, e coroado com uma impressionante cruz de 150 metros de altura, o complexo começou a ser construído em 1940, logo após o término da Guerra Civil espanhola (1936-1939), com o objetivo de perpetuar a memória do conflito, desafiando dessa forma, nas palavras do decreto de sua criação, “o tempo e o esquecimento”. Franco supervisionou pes­soal­men­te a construção, destinada a acolher os corpos de combatentes dos dois lados. Em tese o memorial, inaugurado em 1959, lembraria os horrores da guerra e honraria suas vítimas de um ponto de vista politicamente neutro.

Só em tese. Os trabalhadores empregados nas obras foram presos que, em recompensa, tiveram suas penas reduzidas. Muitos eram presos políticos, quer dizer: antigos combatentes republicanos, que se opunham aos franquistas. Os corpos destinados às novas sepulturas foram em boa parte das vezes arrebanhados de valas comuns, alguns até hoje não identificados, e outros à revelia das famílias. Enfim, quando Franco morreu e foi enterrado no local mais central da basílica, mesmo sem ter sido vítima do conflito, coroou-se a percepção de celebração da vitória do caudilho e de seus ideais, naquele ambiente que por si só, com a grandiosidade da arquitetura fascista, já levava a essa conclusão.

Franco foi contemporâneo de Hitler e de Mussolini, aliados que o ajudaram a ganhar a Guerra Civil. E se ao alemão tivesse sido erguido um memorial junto ao Portão de Brandemburgo, em Berlim, e ao italiano um na vizinhança dos foros imperiais, em Roma? O absurdo é tal que não equivale ao do Vale dos Caídos, mas ajuda a entender por que um lugar de culto a Franco soa tão deslocado na Espanha democrática de hoje. Em 2011, o governo socialista de José Luis Zapatero fez passar uma Lei de Memória Histórica que previa a remoção do corpo do ditador para outro lugar. O governo conservador de Mariano Rajoy, que lhe sucedeu, não cumpriu a determinação, enfim concretizada por outro socialista, Pedro Sánchez.

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A exumação do corpo e seu reenterramento no cemitério de Mingorrubio, no bairro de El Pardo, no mesmo túmulo em que se encontra a mulher de Franco, deram-se de modo exemplarmente sóbrio e respeitoso. Vinte e dois descendentes de Franco, entre netos e bisnetos, foram convidados a assistir às cerimônias. A imprensa e o público tiveram o acesso impedido tanto à basílica no Vale dos Caídos quanto ao cemitério de Mingorrubio. Incorrigíveis, os descendentes de Franco escolheram para celebrar a missa nesse último cemitério o padre Ramón Tejero, trazido de uma paróquia da Andaluzia. Ele vem a ser filho do tenente-coronel Antonio Tejero Molina, comandante da grotesca tentativa de golpe iniciada com uma invasão das Cortes (Parlamento) em 1981.

Em contraste, o governo era representado pela ministra da Justiça, Dolores Delgado, elegantemente calada enquanto observava, de longe, o féretro sair da basílica. O governo atual ostenta uma maioria de mulheres, bem de acordo com a Espanha moderna, integrada à Europa e berço do cinema de Almodóvar e da literatura de Javier Cercas e Enrique Vila-­Matas. Nestes tempos tempestuosos na América Latina, em que em alguns países, inclusive o Brasil, se contestam as instituições democráticas, é salutar lembrar como os ditadores, mesmo quando abençoados por uma morte natural e no exercício do poder, ainda têm de enfrentar um dificultoso pós-morte. Os líderes democráticos também estão ao sabor das revisões históricas, mas não da segunda morte embutida na exumação de seu corpo ou da derrubada de suas estátuas.

Publicado em VEJA de 6 de novembro de 2019, edição nº 2659

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