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“Se dizer a verdade é conspirar, eu também conspiro”, diz prefeita interina de Caracas

Helen Fernández está no cargo desde que Antonio Ledezma se tornou um dos presos políticos do regime chavista e conta como é administrar a cidade apesar da sabotagem dos seguidores de Nicolás Maduro

Por Nathalia Watkins 27 jun 2015, 09h58

Com 3 milhões de habitantes, Caracas tem uma série de problemas. A cada semana, cerca de 400 de seus moradores são assassinados. Há brigas diárias nas filas para comprar comida causadas pela política econômica desastrosa do presidente Nicolás Maduro. Motoqueiros chavistas patrulham as ruas e amedrontam os opositores. Em fevereiro, o prefeito Antonio Ledezma foi levado à força de seu escritório pelo Serviço de Inteligência, acusado de conspirar contra Maduro. Por motivos de saúde, foi colocado em prisão domiciliar. Ledezma é um dos 70 presos políticos hoje existentes no país. A economista Helen Fernández, de 64 anos, havia sido escolhida pelo prefeito como sua vice e ocupa seu cargo interinamente. Os dois se conhecem das manifestações contra o governo de Hugo Chávez. “Nunca concordei com o populismo. Sou consciente do valor da meritocracia, esta, sim, um fator de geração de oportunidades”, disse a VEJA, por telefone. Aos que ainda não resistem aos fatos, ela explica porque a Venezuela é uma ditadura.

Depois de muito adiar, o governo venezuelano marcou eleições legislativas para o dia 6 de dezembro. A oposição está otimista? É uma conquista saber que temos uma data e que podemos planejar melhor a campanha, pois temos certeza de que triunfaremos. A maioria dos venezuelanos nos apoia e está saturada da crise profunda no país. O primeiro passo para sair dela é mudar o parlamento, hoje controlado pelo governo. Agora, falta o governo libertar os presos políticos para que se tenha uma real retomada da via democrática.

Apesar das eleições, por que a oposição diz que a Venezuela vive sob uma ditadura? Pode-se provar isso de muitas maneiras. A administração de Caracas é um bom exemplo. A Prefeitura Metropolitana de Caracas foi criada por meio da Assembleia Constituinte em 2000, durante o governo do presidente Hugo Chávez. Ledezma foi eleito em 2008 e reeleito em 2012, e sempre fomos hostilizados. Em 2009, grupos ligados a Chávez nos desalojaram das instalações da prefeitura. Em seguida, em uma ação coordenada, o governo retirou das nossas mãos a maior parte das funções da prefeitura, como saúde, administração dos hospitais, polícia, asilos e serviços sociais. Também retirou 99,5% do orçamento, que foi transferido para uma prefeitura alternativa, comandada por um interventor, Ernesto Villegas. Deixaram-nos com apenas 0,5% do orçamento. Os membros dessa nova prefeitura são escolhidos a dedo segundo a ideologia partidária. Lá, só trabalham chavistas. Dessa maneira, eles ignoraram completamente o resultado da eleição popular, que foi vencida por Ledezma. Essa administração paralela não está dentro da lei. É uma clara violação do direito do voto dos venezuelanos.

Com o objetivo de visitar Leopoldo Lopez, um dos presos políticos, um grupo de senadores brasileiros esteve em Caracas na quinta-feira, dia 18. Eles foram barrados na estrada por manifestantes chavistas. Foi uma sabotagem planejada pelo governo? Lamentamos muito o que aconteceu com os senadores brasileiros, mas devo dizer que não é algo estranho para nós. Esses militantes são usados pelo governo para amedrontar a oposição. Eles aparecem em nossos eventos para nos agredir. É gente paga pelo governo para nos desestabilizar e até nos acusar de crimes sem qualquer fundamento. Algumas vezes eles chegam com pedras e paus, em outras com bombas de gás lacrimogêneo e armas.

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A senhora esperava que os políticos brasileiros tivessem tratamento diferente? A falta de respeito com os senadores brasileiros é inaceitável. Existem tratados internacionais que precisam ser obedecidos. Os senadores têm todo o direito de transitar em nosso país. A polícia não parece ter feito muito esforço para protegê-los. Não foram colocadas escoltas. Não posso dizer que o que aconteceu nos agrada, mas é bom que os brasileiros tenham visto o que ocorre em nosso país. Se o governo se atreve a fazer o que fizeram a autoridades brasileiras, imaginem o que sofrem aqueles de nós que ousamos levantar a voz para exigir os direitos constitucionais? Isso mostra que esse país é um regime absolutamente ditatorial onde não se respeita sequer a cláusula democrática de tratados internacionais, como o Mercosul. Eu acredito que Dilma Rousseff deveria se pronunciar com mais vigor sobre o assunto, pois houve uma ruptura de tratados internacionais e foi um episódio antidiplomático. Quero que fique claro que nós, venezuelanos, estamos absolutamente envergonhados com o tratamento que foi dado aos senadores. A Venezuela sempre foi um país aberto, que gosta de receber visitantes, ainda mais da categoria dos que estiveram aqui.

Os túneis que davam acesso à prisão que seria visitada pelos parlamentares brasileiros estavam fechados. A desculpa é que estavam sendo limpos. Foi uma concidência? Nada é casual. Não é por acaso que tenham fechado as vias no dia em que os senadores nos visitaram. Isso foi uma estratégia do governo, está claro. A chamada “estrada velha”, que poderia servir de caminho alternativo, foi interrompida por manifestantes simpáticos ao governo. A estrada pan-americana que leva até o presídio de Ramo Verde também foi fechada. Houve uma estratégia armada para que eles não pudessem entrar na cidade de Caracas. Estamos muito agradecidos aos senadores que vieram ao nosso país. É importante que vejam não só a situação dos presos políticos, mas também das filas, do sequestro dos poderes, da ingovernabilidade e da institucionalidade.

A senhora vê ligação entre os homens que, em 2009, expulsaram Ledezma e seus funcionários da sede da prefeitura e os que agrediram os senadores? Sim, é a mesma gente que obedece à política de amedrontar as pessoas e que são radicais demais para que se possa dialogar com eles. O governo arma os membros dessas milícias, o que comprova sua má intenção. Caracas é dividida em cinco munícipios. Apenas um, Libertador, é administrado por chavistas. Nós administramos a área que engloba esses cinco municípios. Apesar disso, até hoje os chavistas não permitem que realizemos qualquer atividade em Libertador. Quando chegamos no limite entre municípios, o governo nacional coloca a polícia e esses ativistas para impedir nossa passagem. Para evitar a violência, muitas vezes nós nos retiramos. Em outros anos, sofremos ataques muito fortes.

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O que há de ilegal da prisão do prefeito Ledezma? Tudo. O prefeito, que obteve mais votos na capital do que o próprio Nicolás Maduro para a presidência (foram 800 000 votos), foi levado de seu escritório sem ordem de prisão, sem julgamento e ficamos por dez horas sem saber de seu paradeiro. Ledezma é um homem pacífico e não resistiu quando foi levado por homens armados. As pessoas que passavam, ao ver o que estava acontecendo, formaram uma pequena multidão, que foi dispersada a tiros. A audiência que deverá decidir sobre seu julgamento foi adiada. As provas contra ele não têm qualquer credibilidade. São vídeos nos quais o prefeito é acusado de conspirar contra o governo, facilmente editáveis. Eles cortam, colam e pronto. O único golpe que temos aqui é o golpe contra a segurança, contra o direito de acesso a comida. Levaram Ledezma por defender a democracia e ter coragem de dizer as coisas que se passam nesse país. Se dizer a verdade é conspirar, todos nós estamos conspirando, inclusive eu.

A senhora não tem medo de ser presa? Todos nós que estamos nesse processo sabemos que é uma loteria. Há cerca de seis anos, a promotoria militar invadiu a minha casa para fazer uma busca. Veja bem: militares! Eu sou civil. Eles me acusavam de ter armas escondidas e de planejar o assassinato de Hugo Chávez. Obviamente não encontraram nada. Ficaram horas na minha casa, e levaram até meu computador. O episódio não deu em nada, só queriam me colocar medo. Ainda bem que Chávez morreu em 2013 de causas naturais, caso contrário procurariam uma maneira de me incriminar. Eu me dei conta que estou sujeita a qualquer coisa, na posição que ocupo. Nós precisamos recuperar nosso direito à liberdade e a democracia. Faço isso para as próximas gerações, para meus netos.

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Como é governar uma capital com o governo nacional fazendo de tudo para atrapalhar? Como mencionei anteriormente, Caracas é composta por cinco municípios: Chacao, Libertador, Baruta, Hatillo e Sucre. Todos têm governantes eleitos. Dos cinco, quatro são liderados por opositores ao governo de Nicolás Maduro. O maior e, por isso o que mais arrecada, é Libertador, que está nas mãos do governo. É difícil planejar e executar qualquer projeto sem uma parte da cidade. Uma das funções que nos restaram como prefeitura foi a questão do urbanismo e do meio ambiente. O problema da coleta de lixo em Caracas, e também na Venezuela como um todo, é grave. Nós temos caminhões para recolher o lixo próprio, mas não podem entrar em Libertador. Se somos vistos recolhendo lixo lá, podemos ter o caminhão retido. O mesmo pode acontecer com os ônibus de transporte municipal. Parece surreal, mas você ouviu isso mesmo: os ônibus que saem de regiões administradas pela oposição não podem entrar na área controlada pelo chavismo. O ideal, para organizar a cidade, seria pensar o espaço urbano como um todo, incluindo Libertador. Nós chamamos os funcionários de lá para reuniões e pedimos que cooperem, mas sempre somos ignorados.

Como a prefeitura consegue se financiar, se o repasse de verba foi reduzido a apenas 0,5% do usual? Nós arrecadamos impostos, mas também com isso há problemas. As prefeituras municipais deveriam nos repassar 10% da tributação. Libertador, contudo, não cumpre a lei. Por isso, esse município hoje nos deve 1 bilhão de bolívares, o equivalente a 158 milhões de dólares. No ano passado, eles não nos pagou uma única vez sequer. A verba é retida por motivos políticos. Tivemos a sorte de ter dinheiro guardado de um fundo de repasses dos royalties do petróleo para prefeituras. Com esse dinheiro, pudemos realizar projetos e criar soluções para a cidade de Caracas. Outra maneira que encontramos de nos financiar foi fazer parceria com empresas privadas, mas com a situação do país do jeito que está só quem tem dinheiro é o governo federal.

Com a cidade dividida desse jeito, como funciona o sistema de transporte municipal? Uma pessoa com deficiência física terá todas as dificuldades para chegar ao trabalho, o que pode ser agravado se ela viver em zonas populares. Nós fizemos uma lei para gerar acessibilidade em quatro municípios. Só que ela não é cumprida no quinto município da cidade. Para contornar o problema, colocamos nas ruas 100 ônibus pertencentes aos próprios motoristas, que têm até elevador para pessoas com necessidades especiais. Nós conseguimos um crédito a juro baixo para os motoristas, financiados com verba da prefeitura, e o motorista se tornou dono do negócio. Eles foram treinados por nós, mas a frota não é nossa. Dessa maneira, quando os chavistas tentaram confiscar os ônibus, se deram conta que não podiam porque não eram nossos. Cada motorista se capacitou, virou um empreendedor e passou a prestar um serviço de qualidade. Sempre precisamos pensar de forma inovadora. O governo de Maduro tentou também impedir que importássemos os ônibus. Mas compramos sem dizer a real finalidade, como se fossem ônibus de turismo. Se registrássemos a compra como sendo para transporte público, vetariam o projeto, com o intuito descarado de provocar o caos na cidade e nos prejudicar nas próximas eleições. Quando os ônibus chegaram, colocamos a frota na rua em um único dia, de surpresa. Os grupos de repressão ligados os governo de Nicolás Maduro ficaram sem ação.

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