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O teórico que assombra ditaduras

Por suas pesquisas sobre resistência pacífica, Sharp foi cotado para o Prêmio Nobel da Paz de 2012. Mas também recebe críticas de diversos governos por “incitar revoltas” em seus países

Por Cecília Araújo
19 nov 2012, 06h18

Tido como o guru inspirador de protestos pacíficos que derrubaram uma série de regimes autoritários, o teórico americano Gene Sharp acredita que o poder dos ditadores é alimentado pela obediência dos governados. Para ele, se as fontes dessa obediência forem prejudicadas, ditaduras podem ser derrubadas. “Todo ditador tem seu calcanhar de Aquiles”, ressalta. Suas teorias influenciaram movimentos na Sérvia, Ucrânia e Geórgia. Recentemente, suas ideias sacudiram países do Oriente Médio e Norte da África, na chamada Primavera Árabe – o que o levou a ser um dos mais cotados para o Prêmio Nobel deste ano. Doutor em teoria política pela Universidade de Oxford, criou em 1983 o Albert Einstein Institution, dedicado à promoção de resistência pacífica a regimes ditatoriais. Aos 84 anos, esse senhor tímido e de voz falha ainda se emociona ao falar de seu trabalho a VEJA – e diz como seus textos podem ser aproveitados na América Latina e até no Brasil.

Em 1993, o senhor publicou o livro Da Ditadura à Democracia, que explica, passo a passo, como derrubar uma ditadura sem usar a violência. Uma de suas teses é que a resistência é a forma mais eficiente de se derrubar uma ditadura. Por quê? Os ditadores nunca vão decidir voluntariamente deixar o poder. Então, negociar com eles é perda de tempo. Ainda mais porque o conteúdo de um acordo seria determinado pela capacidade de poder de cada lado. Isso apenas distrairia os manifestantes de fazer coisas que de fato precisam ser feitas. Se o objetivo é derrubar uma ditadura, é preciso mudar as estruturas do sistema, até que o tirano não possa mais controlar a sociedade que quer dominar. Haverá um ponto em que ele vai deixar a liderança, não por vontade própria, mas porque não é mais possível continuar no poder. Todo ditador tem seu calcanhar de Aquiles.

Há exemplos de sucesso? Tento basear meu trabalho no que as pessoas realmente fizeram no passado, e elas têm obtido conquistas extraordinárias. Um exemplo muito inspirador foi o movimento de resistência norueguesa contra o regime pró-nazista de Vidkun Quisling, durante a II Guerra Mundial. Na época, as pessoas adotaram a desobediência civil e outras formas de resistência não violenta, inclusive em seu sistema educacional. Os próprios professores ensinavam seus alunos a resistir e distribuíam jornais ilegais nas salas de aula, mantendo os soldados alemães à distância. Também ocorreu algo relevante em 1979, no Irã, quando todo o controle do país foi tirado das mãos do xá (Mohamed Reza Pahlevi), e ele precisou fugir do país. Essa vitória foi muito significativa, pois a ditadura era muito severa. Porém, as conquistas não foram bem usadas pelos aiatolás (liderados por Ruhollah Khomeini), que quiseram continuar no poder por conta própria.

Por que ditaduras existem? Geralmente, as ditaduras têm início a partir de um golpe de estado, mas também há casos de presidentes que foram eleitos e decidem ficar no cargo por tempo ilimitado. Isso acontece em muitos países, especialmente na África. Os presidentes promovem um golpe contra a Constituição do país e conquistam o apoio militar. Quando isso acontece, a população fica desamparada, perdida e enfraquecida. E isso acaba colaborando para a instauração do regime autoritário. O que tento mostrar a essas pessoas é que, se elas não sentem que têm qualquer poder agora, há um potencial que pode ser desenvolvido para mudar essa situação. Elas ficam felizes ao ouvir isso, mas ao voltar à sua realidade, veem o quão difícil essa tarefa pode ser. O segredo é não ter medo e não usar a violência, porque essas são as ferramentas usadas pelos ditadores. As ferramentas da liberdade são outras: a manifestação pacífica, a provocação e a não cooperação.

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Qual a importância de um planejamento minucioso para que a revolução não violenta dê certo? Muitos acham que podem agir apenas seguindo seus sentimentos e emoções, mas não acho que isso possa trazer resultados positivos. É preciso saber exatamente o que se está fazendo, e isso significa conhecer a situação do seu país a fundo: entender como o regime realiza suas operações e controla a sociedade, qual é a fonte de seu poder e quais são suas fraquezas. Claro que não é fácil conseguir essas informações. Mas elas são necessárias para se derrubar um regime de forma eficiente. Nem todo mundo entende isso. Então, escrevo para ajudar as pessoas a entender o que precisam saber.

O livro 'Da Ditadura à Democracia' (1993), de Gene Sharp
O livro ‘Da Ditadura à Democracia’ (1993), de Gene Sharp (VEJA)

No livro Da Ditadura à Democracia, o senhor diz que é importante para os manifestantes ter os militares do país ao seu lado, com as armas baixas, pois isso torna o regime mais fraco. Deve ser difícil convencer soldados a seguir o seu método. Nem tanto. Alguns anos atrás, eu estava sempre conversando com grupos pacifistas sobre o meu trabalho, e eles sempre tinham uma série de críticas e questões sobre as minhas ideias. Pareciam mais interessados na verdade de suas crenças e em seus próprios testemunhos. Até que, ao falar a um público formado por militares, eles me levaram mais a sério e entenderam tudo muito rapidamente. Os militares se interessam por aquilo que demanda habilidade e estratégia para agir de forma eficiente e atingir um objetivo. Eles entendem como uma ação pequena e limitada pode se transformar em uma luta massiva.

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Quando a ajuda estrangeira é bem-vinda? A ajuda externa pode servir desde que seja no sentido de prover informação. Mas dizer a pessoas de outro país o que elas devem fazer é muito perigoso. Os estrangeiros nunca saberiam o que é preciso ser feito ali. Pelo contrário, poderiam atrapalhar tudo. Eu mesmo nunca participei de movimentos em outros países, pois acredito que as pessoas devam atuar apenas onde vivem, e não se envolver diretamente em questões internas de outras nações. Já fiz parte de protestos aqui nos Estados Unidos e na Inglaterra, mas não contra ditadores. E os meus livros e guias são muito genéricos. Eles não ensinam o que fazer em cada país, mas indicam como a luta pela democracia pode ser conduzida. A ideia é incentivar as pessoas a praticarem essas habilidades em sua realidade, de acordo com as circunstâncias, e se tornarem confiantes o suficiente para agir.

Alguns manifestantes da chamada Primavera Árabe se inspiraram em seu trabalho. O senhor sabe dizer quantos movimentos pacíficos seguiram os passos de seus guias ao longo das últimas décadas? Não tenho ideia. Às vezes escuto ou leio que um grupo ou outro se inspira em meu trabalho. Alguns manifestantes me procuram por e-mail ou telefone para contar, e é muito bom saber que estão se movimentando pelo mundo afora. Tunísia e Egito, por exemplo, conquistaram grandes avanços, com a queda de Hosni Mubarak e Zine El Abidine Ben Ali, mas ainda há muito a ser feito para reconstruir o país. No Egito, os militares ainda têm bastante poder e são capazes de iniciar uma luta contra a democracia e impedir que a população mude o sistema.

Na Líbia, o fim sangrento dado a Muamar Kadafi pode ter atrapalhaado a transição para a democracia? É verdade que Kadafi nunca iria promover a democracia no país, ele estava decidido a manter seu controle sobre a população líbia. Para derrubá-lo era preciso muita luta, a ser arquitetada de forma minuciosa, até que o regime ficasse enfraquecido. Mas o que ocorreu foi que o general líbio chegou a desertar e se unir à oposição, mas trouxe suas tropas e armas com ele. E esse foi o início de um grande desastre. Se tivessem deixado as armas de lado, com Kadafi também desarmado, teria sido uma ascensão pacífica e mais eficaz ao poder. Da forma que foi feita, o caminho à democracia será mais difícil. Ao contrário do que muitas pessoas possam pensar, a transição democrática depois de uma luta pacífica pode ocorrer muito mais rapidamente do que no caso de um confronto armado.

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No caso da Síria, o fato de o conflito ter evoluído para uma guerra civil explica por que está demorando tanto para terminar? Na Síria, a questão étnica é muito importante. Alguns setores da população acreditam que, se não lutarem contra os grupos majoritários podem ser aniquilados. Isso faz com que o regime resista mais, sem se render. O uso da força, que muitos pensariam ser o jeito mais rápido de tirar o ditador do poder, acabou se provando mais uma vez ser um fracasso. O fato de a luta ter se transformado em uma guerra civil faz com que as conquistas estejam, depois de tantos meses, ainda distantes. A situação se tornou muito complexa, e não é fácil pensar em saídas possíveis.

Qual a importância de haver uma liderança nos movimentos pacíficos? Uma liderança é importante dependendo do quanto a população conhece sobre a situação de seu país. Se as pessoas têm conhecimento de tudo o que é necessário para lutar de forma hábil e eficiente, não seria tão necessária uma liderança. Em outros casos, quando a sociedade não consegue dar conta disso sozinha, a figura do líder se mostra importante. Foi o que ocorreu na Índia, por exemplo. Gandhi foi capaz de dizer como aplicar estratégias para superar a situação vigente. Já na Noruega, durante a ocupação nazista, as pessoas nem sempre sabiam quem estava dando as instruções. Havia um grupo que lhes indicava o que fazer, e isso foi essencial para que as pessoas conseguissem resistir juntas.

O senhor acha que alguns grupos podem usar o seu método pacifico para chegar ao poder, mas depois decidir estabelecer uma nova ditadura baseada em seus próprios ideais? Claro que isso pode acontecer. É preciso ter muito cuidado com os próprios revolucionários após a queda de um regime. Na Rússia, em 1917, uma revolução derrubou a monarquia absolutista e, após alguns meses de confusão, os bolcheviques decidiram incorporar uma nova ditadura para construir uma sociedade comunista à sua maneira. E, desde a Grécia antiga, já se sabe que as novas ditaduras podem ser ainda piores do que as anteriores.

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Membros do movimento Irmandade Muçulmana se unem aos demais manifestantes em várias cidades do Egito
Membros do movimento Irmandade Muçulmana se unem aos demais manifestantes em várias cidades do Egito (VEJA)

A Irmandade Muçulmana publicou Da Ditadura à Democracia em seu site. O senhor acha que seus membros estão comprometidos com a não violência? Acho que foi um bom sinal. Um grupo que pretende instaurar uma ditadura no futuro não publicaria na internet, em árabe, todos os passos para se derrubar um regime ditatorial. Eles guardariam aquelas informações, já que poderiam ser usadas contra eles próprios. Mas, geralmente, movimentos grandes como a Irmandade Muçulmana são um pouco confusos em suas perspectivas e pontos de vista, por serem muito heterogêneos. De toda forma, fico feliz em ver grupos que já pegaram em armas perceberem aos poucos que pode ser muito mais eficiente agir de forma pacífica e democrática.

Hugo Chávez chegou a acusá-lo de incitar revoltas na Venezuela, e Mahmoud Ahmadinejad encomendou um filme-propaganda para a TV estatal em que um dos personagens malvados é o senhor. Qual foi sua reação? Ri muito. Por um lado, eu os cumprimentaria por ter feito pelo menos uma parte de seu dever de casa: se deram conta de que esse trabalho existe e reconheceram que ele é perigoso para todas as ditaduras do mundo. Eles provavelmente não se sentiram culpados, mas no fundo sabem que seus sistemas são extremamente opressivos. Por outro lado, fiquei muito triste que suas informações sejam tão limitadas. Fui acusado até de trabalhar para a CIA (inteligência americana), o que não faz o menor sentido.

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O que o senhor diria para a população da Venezuela e do Irã? Se essas pessoas acham que seus governos não são democráticos e podem se tornar ainda mais opressivos no futuro, eu diria que eles podem mudar isso sem ter que passar por uma guerra civil, que há outras formas não violentas para derrubá-los.

O senhor acha que a internet e as redes sociais estão mudando a forma como as pessoas protestam? Entendo que a comunicação seja muito mais fácil e possível hoje, com a internet. Particularmente, não sei como usá-las, deixo para os mais talentosos que as utilizem da melhor maneira possível. Mas há algo a ser destacado: as pessoas não podem achar que a comunicação on-line está apenas do seu lado. Ela também pode ser usada pelo regime para monitorar a população e atrapalhar o planejamento de manifestações.

Recentemente, Da Ditadura à Democracia foi traduzido informalmente para o português. De que suas lições podem servir no Brasil? Os brasileiros devem tirar suas próprias conclusões sobre como podem ampliar suas liberdades a partir do texto. Sei que vocês não vivem em uma ditadura, mas podem prevenir-se de formas de censura, por exemplo, ou rejeitar um salário muito baixo. Os meus livros não falam apenas de ações contra ditadores, e podem ajudar as pessoas a defender seus direitos em seus países e ajudar a fazer justiça. Da Ditadura para a Democracia foi escrito originalmente para acabar com a ditadura em Mianmar, mas o texto começou a se espalhar naturalmente para Indonésia, Bangcoc e Tailândia. Aos poucos, foi sendo publicado em outros países e já foi traduzido para mais de 30 línguas, inclusive farsi e chinês. A obra está em domínio público, então, pessoas de qualquer lugar do mundo estão livres para disseminá-la. Fico muito feliz que esse conhecimento se espalhe.

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