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O reality show do processo de impeachment de Trump

A investigação entra na fase de audiências públicas, com transmissão pela TV. Os primeiros depoimentos, acompanhados por milhões, já causaram estragos

Por Julia Braun Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 jul 2020, 19h35 - Publicado em 22 nov 2019, 06h00

Tratado inicialmente com cautela na Câmara dos Deputados, à base de depoimentos a portas fechadas no 3º subsolo do Capitólio, o processo de impeachment de Donald Trump passou por um upgrade: ganhou rito formal, cenário imponente — um salão do casarão do outro lado da rua que serviu de plenário quando o prédio do Congresso estava sendo reformado — e câmeras, muitas câmeras. Quase 14 milhões de lares americanos estavam com a televisão ligada na quarta-feira 13 para assistir à estreia das audiências públicas do processo. Os primeiros a depor foram justamente os funcionários que já haviam, na salinha do subsolo, contado o que sabiam — com ampla divulgação pós-depoimento — acerca da suspeita que lastreia o caso: de que o presidente americano usou indevidamente seu poder para pressionar o presidente da Ucrânia, Vladimir Zelensky, a reabrir uma investigação que poderia incriminar Hunter Biden em negociatas feitas por uma empresa ucraniana em que ele trabalhou. Hunter é filho de Joe Biden, o senador democrata que pode vir a disputar com Trump a Presidência em 2020. Longe de parecerem história requentada, os depoimentos ao vivo e em cores trouxeram novos detalhes e alimentaram o interesse do público.

O testemunho mais impactante até agora partiu do embaixador americano na União Europeia, Gordon Sondland, que não é diplomata de carreira, e sim um milionário que doou fortunas à campanha de Trump e acabou premiado com o cargo. Talvez por isso mesmo, Sondland ficou incumbido de amaciar o caminho para que o governo da Ucrânia (país que nem sequer faz parte da UE, sua área de atuação) fizesse o que Trump queria. Na audiência, Sondland não deixou pedra sobre pedra. “Cumprimos as ordens do presidente”, afirmou sobre o trabalho para garantir a cooperação dos ucranianos. “Todo mundo estava ciente”, entregou, citando nominalmente dois Mikes do alto escalão: Pompeo, secretário de Estado, e Pence, vice-presidente.

Pence, inclusive, foi depositário da preocupação do embaixador com o detalhe mais potencialmente explosivo do esforço em prol da cooperação ucraniana. Trump tinha na mão 391 milhões de dólares em ajuda econômico-militar à Ucrânia, país em conflito com a Rússia, que mantém tropas armadas em prontidão na fronteira. Nas conversas entre funcionários americanos e ucranianos, a liberação dos recursos teria sido condicionada à investigação do filho do inimigo. Houve, então, troca-troca (ou quid pro quo, a expressão latina mais falada hoje nos Estados Unidos)? “A resposta é sim”, afirmou Sondland. A Casa Branca argumenta que os dólares foram liberados sem nenhuma contrapartida. Só que isso aconteceu em setembro, quando o escândalo estava prestes a estourar. Diante da clareza dos testemunhos, a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, a mais cautelosa dos democratas, usou pela primeira vez o termo “suborno”, um dos crimes que podem levar um presidente ao impeachment.

A expectativa dos democratas, que controlam a Câmara dos Deputados, é que as audiências abertas despertem indignação no público a ponto de balançar a fidelidade dos republicanos no Senado, a Casa que terá a palavra final no impedimento e onde eles são maioria. “Se as provas contra Trump se tornarem cada vez mais evidentes, os congressistas republicanos poderão avaliar que votar contra a remoção do presidente vai fazê-los perder votos nas próximas eleições”, avalia Nicholas Allard, professor da Brooklyn Law School e ex-assessor do comitê judiciário do Senado. Ao darem rosto e voz às testemunhas, os democratas também contam chamar mais a atenção da população e, quem sabe, virar votos conservadores na eleição de 2020. “Uma tática em uso é adotar a linguagem mais simples possível, sem expressões jurídicas rebuscadas, para que o público entenda o que se passa e continue acompanhando”, aponta Martin H. Redish, professor de direito e política da Universidade Northwestern, em Illinois.

Apesar do esforço da Casa Branca para que os funcionários convocados faltassem aos depoimentos, vários, como Sondland, desafiaram as ordens. Bill Taylor, embaixador em exercício na Ucrânia, foi outro que confirmou, diante das câmeras, que Trump reteve o envio da ajuda militar prometida à Ucrânia como forma de coagir o país a investigar os Biden. De tudo o que viu e ouviu, disse, depreendeu que o presidente “se importava mais” com seus interesses pessoais do que com a as questões ucranianas. Marie Yovanovitch, ex-embaixadora dos Estados Unidos na Ucrânia, fritada e afastada do cargo por discordar das pressões da Casa Branca, foi alvo do frenético Twitter presidencial no exato momento em que prestava seu depoimento, na sexta-feira 15. “Todos os lugares por onde Marie Yovanovitch passou ficaram piores”, postou Trump. O deputado Adam Schiff, que presidia a sessão, informou-a do que estava ocorrendo e perguntou como se sentia. “Muito ameaçada”, respondeu. Trump usou a tática do tuíte depreciativo em tempo real contra outros dois convocados, todos funcionários do governo, levantando denúncias de que estaria coagindo testemunhas.

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ONDA DE REPÚDIO – Americanos assistem à renúncia de Nixon: desfecho de audiências públicas incriminadoras (Bettmann Archive/Getty Images)

Teatrais e dramáticas, as audiências públicas também são um instrumento eficiente na coleta de informações. No processo de impeachment que levou à renúncia de Richard Nixon, em 1974, o depoimento de Alexander Butterfield, assessor da Casa Branca, mudou os rumos da investigação e do caso. Funcionário de segundo escalão do governo, Butterfield revelou ao vivo que um sistema de áudio instalado no Salão Oval gravava todas as conversas do presidente. As fitas foram requisitadas e declaradas provas conclusivas de que Nixon havia incorrido no crime de obstrução de Justiça. “Antes das audiências, não parecia haver chance de ele deixar o cargo. Com o público assistindo aos depoimentos, a onda de repúdio cresceu a tal ponto que teve de renunciar”, diz Allard. Segundo o instituto de pesquisa Gallup, quase 150 milhões de americanos assistiram às sessões do processo de destituição de Nixon pela televisão. Passados 45 anos, o show do impeachment volta à programação da TV.

Publicado em VEJA de 27 de novembro de 2019, edição nº 2662

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