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O que segura Maduro

Enquanto o oposicionista Guaidó avança empurrado pela aprovação internacional, o ditador perde popularidade e força. Só tem apoio dos militares. Até quando?

Por Fernando Molica, de Caracas
Atualizado em 1 fev 2019, 07h00 - Publicado em 1 fev 2019, 07h00

Admiradora da república bolivariana de Hugo Chávez, que presidiu a Venezuela de 1999 até sua morte, de câncer, em 2013, Mireya Solo, de 56 anos, desencantou-­se de seus ídolos. Moradora de Alta Vista, uma das 160 favelas de Caracas, ela participou no domingo 27 de uma homenagem a um jovem de 19 anos morto a tiros pela polícia dias antes, durante uma manifestação — o rosto dele foi pintado em um muro com a frase “Unidade e rebelião pela saída do ditador”. Mireya está cansada das dificuldades, da fome, da falta de emprego — e de Nicolás Maduro, o sucessor de Chávez. “Daqui vou para as ruas tentar trocar isso por um pão, um pacote de massa”, disse a VEJA, sacando da bolsa dois pares de sandálias usadas.

Caracas é hoje um poço de ressentimento contra o ditador que mergulhou a Venezuela em um pesadelo de miséria, corrupção e violência. Tornou-se, portanto, terreno mais que propício para a ascensão de Juan Guaidó, deputado de 35 anos que foi escolhido presidente da Assembleia Nacional, proclamou-se presidente interino, amealhou imediato respaldo internacional e mobiliza multidões contra o regime.

Embalado na maré de reações positivas, Guaidó, um político pouco conhecido, foi crescendo e aparecendo. No início da tarde da quarta-feira 30, milhares atenderam a seu chamado e ocuparam ruas e praças do país em grupos pequenos e pulverizados, na medida para mostrar que o povo permanece mobilizado. O próprio Guaidó liderou uma passeata no câmpus da Universidade Central da Venezuela, vestido com um jaleco autografado por professores e estudantes de medicina. Na marcha, Guaidó disse a VEJA que “Maduro cairá quando tivermos força suficiente” e reiterou o convite para que aliados de Maduro mudem de lado: “Estamos com as portas abertas para todos. Não se trata mais de esquerda e direita. É hora de extrapolar esses conceitos”.

CORRIDA - Maduro tenta manter a tropa fiel: luta pela sobrevivência em meio ao recrudescimento do boicote americano (Marcelo Garcia/Venezuelan Presidency/AFP)

Deputado em primeiro mandato, magro e alto, o engenheiro Juan Gerardo Guaidó Márquez lembra um pouco o ex-presidente americano Barack Obama nos gestos e no jeito de se vestir e de falar. Tem cara de bom moço, no que é ajudado pela presença constante da mulher, Fabiana Rosales, jornalista de 26 anos e longa cabeleira negra com quem tem uma filha de quase 2 anos, Miranda. Levemente grisalho, com entradas proeminentes e uma ou outra espinha perto dos lábios, Guaidó instalou-se no cargo mais elevado do país por presidir a Assembleia Nacional, que declarou Maduro “usurpador” e não legitimou seu segundo mandato (obtido em eleições denunciadas por manipulação), iniciado em 10 de janeiro. O chavismo esvaziou o Legislativo, dominado pela oposição, ao convocar em 2017 uma Assem­bleia Constituinte sob medida, mas a casa segue aberta — os dois órgãos reúnem-­se, em horários separados, em plenários diferentes no mesmo prédio.

ESPERANÇA - Maria Pereda, empresária: “Uma luz no fim do túnel” (Alejandro Cegarra/VEJA)

Guaidó tem mostrado habilidade para amealhar apoios em um país radicalizado e com a oposição desunida. Sua estratégia é aparecer muito, mostrar-se acessível, pregar a conciliação e agir como se fosse, de fato, presidente. Foi aplaudido de pé ao comparecer, acompanhado de Fabiana e da mãe, Norka Márquez, a uma missa em memória dos cerca de quarenta mortos na atual onda de protestos. Na igreja de São José de Chacao, comungou e, na hora da saudação comunitária, fez questão de ir a outros bancos cumprimentar fiéis. Dois dias depois, circulava com desenvoltura pelo plenário da Assembleia, fazendo selfies com colegas deputados. Em seus pronunciamentos, evita abordar questões ideológicas. Seus apelos são por democracia, fim da corrupção e eleições livres — que a Constituição manda que o presidente interino convoque trinta dias após assumir o poder.

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Duas dezenas de países, encabeçados pelos Estados Unidos e entre os quais há vizinhos latino-americanos em peso, reconheceram a legitimidade de seu mandato interino. O gesto, simbólico em um primeiro momento, ganhou peso quando Washington anunciou o congelamento dos pagamentos em dólar à PDVSA, a petrolífera venezuelana — o que representa 7 bilhões de dólares imediatamente “e 11 bilhões ao longo dos próximos doze meses”, segundo cálculos de John Bolton, o bigodudo assessor de Donald Trump para assuntos externos. A medida é um golpe para as finanças de Maduro, que tirava da exportação de óleo para os Estados Unidos a maior parte de seus recursos em dinheiro vivo. A intenção, que depende de trâmites legais, é dar a Guaidó acesso a esse dinheiro, bem como a outras contas venezuelanas bloqueadas e a 20 milhões de dólares em ajuda humanitária. Resta ver como os fundos entrarão na Venezuela de Maduro.

ESCAMBO - Mireya Solo: sandálias usadas em troca de “um pão, um pacote de massa” (Alejandro Cegarra/VEJA)

No caminho inverso, a Rússia, a mais forte apoiadora de Maduro, ofereceu-­se para mediar uma aproximação entre os dois presidentes venezuelanos. O próprio ditador, em entrevista à agência oficial de notícias russa, acenou com o diálogo — nos seus termos. “Seria bom realizar eleições parlamentares antecipadas”, disse. As eleições presidenciais, no entanto, “já aconteceram”. No mapa de influência das grandes potências, Moscou mantém relações comerciais e militares com a Venezuela, além de financiar uma parcela de suas dívidas (o grosso desse auxílio vem da China). Em dezembro, dois aviões militares russos com capacidade para transportar armas nucleares pousaram na Venezuela — o que certamente estimulou Trump a encostar Maduro na parede.

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Pesquisa inédita feita pelo instituto Delphos mostra que apenas 25% dos venezuelanos apoiam o governo. A oposição, que se concentrava nas classes média e alta, hoje se espalha pela população pobre, camada na qual o chavismo construiu suas bases com programas sociais. Acuado, Maduro se empenha em reforçar os laços com a cúpu­la militar, esteio de sua permanência no Palácio Miraflores, sede do governo protegida por barricadas e soldados armados de metralhadora. As Forças Armadas têm cerca de 1 200 oficiais-generais, quase quatro vezes mais do que no Brasil — e eles comandam as principais atividades econômicas.

DUELO - O vendedor Gabriel e a professora Carmen: ele é pró e ela, anti-Maduro (Alejandro Cegarra/VEJA)

No afã de agradar aos militares, o chavismo criou para eles trincheiras empresariais responsáveis por negócios milionários. O ministro da Defesa, general Vladimir Padrino López, também chefe do Órgão Superior para o Abastecimento Soberano, convocou dezoito oficiais de alta patente para cuidar de produtos essenciais — um general controla o abastecimento de açúcar, outro o de papel higiênico, outro ainda o de café moído, tudo publicado no Diário Oficial. Essa tropa de elite teve sua receita reduzida quando o governo tabelou os preços de trinta produtos essenciais, como arroz, óleo e carne. Misteriosamente, os itens tabelados sumiram das prateleiras dos supermercados. Misteriosamente, reapareceram nos depósitos de atravessadores, chamados de bachaqueros, a quem recorrem aqueles que dispõem de algum dinheiro para fazer compras. O apelido vem de formigas — bachacos — que carregam peso de um lado para outro.

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Presidida por Manuel Quevedo, general da Guarda Nacional Bolivariana, a estatal PDVSA produz atualmente 1,4 milhão de barris de petróleo por dia, um terço do que comercializava nos bons tempos. Antes das medidas anunciadas pelo governo Trump, Guaidó já se dizia empenhado em assumir o controle dos bens venezuelanos em outros países, principalmente os da PDVSA, assolada, segundo ele, “por corrupção e má gestão” — a Assem­bleia estima perdas de 30 bilhões de dólares nos últimos anos, 10 bilhões a mais que a quantia que a Lava-­Jato calcula ter sumido na Petrobras.

CADÊ A DEMOCRACIA? – No domingo 27, o protesto (acima); no dia seguinte, o vazio: o governo fez a limpa (Alejandro Cegarra/VEJA)

A oposição aposta na chance de minar aos poucos a sustentação militar a Maduro com seguidas demonstrações de seu poder de fogo dentro e fora do país. Segundo os analistas, a tendência dos generais é pôr tudo na balança e pender para o lado com mais vantagens. “Os militares acompanham até o dia em que deixam de acompanhar”, ironiza o cientista político Luís Salamanca, professor da Universidade Central da Venezuela. Por via das dúvidas, Maduro iniciou um tour por quartéis. Na Base Aérea El Libertador, no Estado de Aragua, falou em lealdade e conclamou os militares a resistir ao que classifica de “golpe do imperialismo”.

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A arma mais potente — e dolorosa — contra Maduro neste momento é a desesperadora situação econômica e social do país: inflação anual de inimagináveis 1 600 000%, queda de 60% do PIB, 80% da população vivendo abaixo da linha da pobreza, desemprego em 28%. Uma visita ao Shopping Tolón, em Caracas, confirma o fracasso econômico. Na tarde de sábado 26, poucas pessoas circulavam pelos seis andares de lojas vazias. Acompanhado da namorada, o engenheiro de som Ángel Mujica, de 23 anos, resumiu: “O governo igualou a todos na miséria”. O Caracas Palace Hotel, em área nobre, é outro retrato da decadência: apenas uma pessoa — o repórter de VEJA — se hospedava no prédio de 190 quartos. Em outubro, a Federação Farmacêutica Venezuelana anunciou que 85% dos remédios estavam em falta. Diante das prateleiras vazias da farmácia em que trabalha, Cezar Cisneros, de 60 anos, desabafa: “Nunca passei por uma situação como esta”. O uso de cartões de crédito e débito é generalizado não por sua praticidade, mas porque não há cédulas — o governo não dá conta de produzi-las devido à inflação e ainda falta papel-moeda.

Ao contrário de Maduro, Hugo Chávez continua a ser referência para os venezuelanos pobres. Seu túmulo, em um quartel no bairro popular 23 de Janeiro, tradicional reduto da esquerda, é ponto de peregrinação. Mas mesmo lá não é difícil encontrar quem critique o governo atual, como a aposentada Bernarda Pedrosa, que se diz pró-chavismo, porém admite que a vida piorou para a maioria. Em outro bairro periférico, Gabriel Orijuella, chavista radical que vende pirulitos na rua, puxou um intenso bate-boca com a professora Carmen Landaetta quando ela desfiava críticas ao regime em entrevista a VEJA. “Eles (a oposição) não gostam dos pobres”, vociferou.

Apesar das pressões nacionais e internacionais, Maduro resiste. Na madrugada de quarta 30, ele divulgou um vídeo no Facebook em que acusa os Estados Unidos de tentar criar um novo Vietnã na América Latina. “Você terá sangue nas mãos, presidente Trump”, bradou na cerimônia em que recepcionou o corpo diplomático venezuelano que deixou os Estados Unidos, com quem rompeu relações. E não disse nenhuma palavra sobre o adido militar em Washington e o corpo consular em Miami, que debandaram para o lado da oposição.

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Guaidó já foi detido e solto pela polícia secreta. Na quinta-feira 31, interrompeu um discurso ao lado da mulher para denunciar que as temidas Forças de Ação Especial (Faes) da polícia haviam estado na portaria de seu apartamento, onde a mãe de Fabiana cuidava da filha do casal. O Tribunal Supremo de Justiça, indicado a dedo pelo regime, bloqueou os bens de Guaidó e o proibiu de sair do país, por ter “prejudicado a paz da república”. Indagado sobre a medida ao chegar à Assembleia, o presidente interino minimizou: “Nada de novo sob o sol”. E completou: “Não faço pouco das ameaças, mas vamos continuar com nosso trabalho”. Esse tipo de atitude renova as esperanças de pessoas como a empresária Maria Pereda, de 56 anos, que nunca aceitou o chavismo, mas andava desiludida com a resistência. Sobre Guaidó, diz: “É uma luz no fim do túnel, um messias que apareceu na hora certa”.

As desavenças internas da oposição, que até agora impediram uma ação conjunta sólida contra Maduro, parecem estar sendo colocadas — temporariamente que seja — na lateral do campo. “Apoio o presidente interino porque vejo nele o caminho para levar a Venezuela à democracia”, disse a VEJA a deputada cassada María Corina Machado, de 51 anos, dirigente do partido de direita Venha Venezuela, adversário histórico do Vontade Popular, de Guaidó. Uma nova manifestação está convocada para sábado 2. O muro da periferia não tem mais a homenagem ao jovem assassinado — grupos pró-gover­no aproveitaram a madrugada para pintá-lo de branco. A julgar pelo nível da insatisfação geral, vai faltar tinta para apagar as pichações contra Maduro.

Publicado em VEJA de 6 de fevereiro de 2019, edição nº 2620

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