O inimigo mora ao lado
Rússia intercepta três navios da Marinha ucraniana, prende tripulantes e dá partida a um embate potencialmente explosivo entre vizinhos que vivem às turras
A situação é explosiva e se encaixa no eterno confronto Leste-Oeste, em que as alianças costumam ser cristalinas: o inimigo do meu inimigo é meu amigo e ponto-final. No entanto, todo mundo pisa em ovos quando se trata de tomar partido na rixa entre Rússia e Ucrânia, dois vizinhos à beira de um ataque de nervos. A desavença mais recente diz respeito à apreensão, pelos russos, de três navios da Marinha ucraniana com 24 tripulantes. O embate nas proximidades do Estreito de Kerch, a única passagem entre o Mar Negro e o Mar de Azov, em 25 de novembro, teve bombardeio e três marinheiros feridos. A Rússia minimiza: “Foi um incidente de fronteira”, declarou o presidente Vladimir Putin, que por via das dúvidas reforçou as tropas no litoral. A Ucrânia esperneia: “Temos de estar prontos para repelir o agressor”, disparou o presidente Petro Poroshenko, que impôs a lei marcial em dez províncias, convocou reservistas e proibiu a entrada na Ucrânia de homens russos de 16 a 60 anos. “Esse é o ato mais recente de uma guerra contínua”, diz Oscar Jonsson, especialista em defesa russa do King’s College, em Londres.
Os navios iam do porto de Odessa para o de Mariupol, uma rota ucraniana vital de ligação entre as regiões leste, às margens do Mar de Azov, e oeste, banhada pelo Mar Negro (veja o mapa na pág. ao lado). A passagem pelo Estreito de Kerch é garantida por um acordo de livre circulação assinado por russos e ucranianos em 2003. Em 2014, porém, a Península da Crimeia, onde ficava a porta ucraniana do estreito, foi anexada pela Rússia, e fez-se o gargalo. Em maio, Putin inaugurou uma ponte no local (construída, aliás, pela empresa de um amigo dele ao custo de 4 bilhões de dólares), e o controle da navegação apertou, afetando a circulação de produtos agrícolas e outras mercadorias ucranianas. A Rússia insiste que a passagem pelo estreito está mais lenta por causa do mau tempo e que interceptou os navios da Ucrânia porque haviam invadido suas águas. Os marinheiros aguardam julgamento e podem pegar até seis anos de cadeia.
Para Putin, o incidente todo foi armado por Poroshenko, um presidente pró-Ocidente, altamente impopular, que está se preparando para enfrentar novas eleições, em março. Poroshenko, de fato, pode ganhar apoio em um confronto com o vizinho. Mas seu temor de um acirramento do conflito tem bases sólidas: a Rússia insufla grupos separatistas pró-Moscou ao longo da costa leste da Ucrânia, país que fez parte do bloco soviético. Devido ao ataque, o presidente Donald Trump cancelou (sem muita vontade) um encontro com Putin na recente reunião do G20 em Buenos Aires. A Otan, aliança militar ocidental, e a Europa avaliam como intervir sem pisar em calos. Na terça-feira 4, a passagem pelo estreito começava a ser liberada para navios ucranianos, mas o impasse político persistia.
Publicado em VEJA de 12 de dezembro de 2018, edição nº 2612