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O diabo vive nesta selva

Ingrid Betancourt, a mais célebre refém das Farc, faz um relato dramático, assustador e revoltante dos seis anos e meio em que viveu num cativeiro da guerrilha na selva colombiana

Por Da Redação
18 set 2010, 14h05

André Petry, de Nova York

Desde que deixou o cativeiro das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), onde passou seis anos e meio, Ingrid Betancourt não conseguiu contar à sua família tudo o que passou – a brutalidade, os detalhes humilhantes, a sordidez da violência. “É difícil dar voz a certas coisas”, diz ela, com seus gestos leves e seu olhar que carrega uma mistura de meiguice e cansaço. Em fevereiro do ano passado, Ingrid começou então a escrever sobre o cativeiro na selva colombiana. Em alguns dias, escreveu furiosamente, das 8 da manhã às 4 da tarde, num jorro ininterrupto. Em outros, paralisada por uma memória dolorosa demais, não conseguia avançar. Só retomava o trabalho no dia seguinte. Depois de doze meses, escrevendo entre Nova York e Paris, onde moram seus filhos, o livro estava pronto. Ingrid distribuiu os originais entre os familiares. Sua mãe, Yolanda, telefonava todas as noites, contava o que tinha lido, chorava ao telefone, tinha pesadelos. Seu filho, Lorenzo, 22 anos, não se sentiu preparado para ler o livro. Resolveu não abri-lo. Sua filha, Mélanie, 25, atravessou cada página e, arrasada, como que pedindo desculpas, disse à mãe que nunca imaginou que o cativeiro tivesse sido tão cruel.

Não Há Silêncio que Não Termine – Meus Anos de Cativeiro na Selva Colombiana (tradução de Antonio Carlos Viana, Dorothée de Bruchard, José Rubens Siqueira e Rosa Freire d’Aguiar; Companhia das Letras; 553 páginas; 45 reais), que chega às livrarias nesta semana com tiragem de 20 000 exemplares, é o relato de uma celebridade política. Está sendo lançado simultaneamente em sete idiomas. Além do português e do original em francês, sai também em inglês, espanhol, italiano, alemão e holandês. Kathleen Kennedy, uma das produtoras mais bem-sucedidas de Hollywood, já negocia os direitos para levar o livro às telas de cinema. Capturada pelas Farc em fevereiro de 2002, Ingrid Betancourt estava em campanha para a Presidência da Colômbia, tinha sido a senadora mais votada do país na eleição anterior e fizera sucesso com uma autobiografia precoce, Coração Enfurecido. O sequestro de Ingrid, de nacionalidade colombiana e francesa, chamou a atenção da França e sua libertação virou uma causa mundial. Dominique de Villepin, amigo de Ingrid e então chanceler francês, trabalhou por sua libertação. A União Europeia incluiu as Farc na lista das organizações terroristas. O papa João Paulo II fez apelos por sua vida. Renaud, popular cantor francês, compôs Dans la Jungle (Na selva), cujo refrão diz: “Nous t’attendons Ingrid/ Et nous pensons à toi / Et nous ne serons libres / Que lorsque tu le seras”. (Numa tradução livre, preservando a rima do original, seria algo como: “Te esperamos, Ingrid / E pensamos em ti / E não seremos livres / Até que estejas aqui”.)

Ingrid Betancourt foi libertada numa operação cinematográfica do Exército colombiano em julho de 2008, depois de ficar 2 321 dias nas mãos das Farc. Seu relato começa com uma das várias tentativas de fuga do cativeiro e termina com a libertação. Entre uma coisa e outra, a autora não fala de política ou ideologia, nem se ocupa em denunciar as Farc ou em mostrar como o grupo guerrilheiro acabou se degenerando numa organização criminosa associada ao narcotráfico. Seu relato é intimista, reflexivo, emocionado, às vezes colegial quando esbarra em lugares-comuns e descobertas quase juvenis, mas o saldo final é devastador – a Colômbia é o Camboja da América do Sul. No cativeiro das Farc, os reféns são tratados com farinha, feijoca (a semente de uma flor perene típica das terras altas da América Central e do Sul), água e açúcar. Ora podem caminhar pelos acampamentos, ora ficam acorrentados pelo pescoço em algum tronco de árvore. Dormem em cubículos. São vigiados constantemente. Levam coronhadas nas costas. São jogados na lama, proibidos de falar uns com os outros. Têm de pedir licença para tudo, até para defecar. Doentes, muitos não recebem atendimento nem remédio. É pior que uma prisão.

A obsessão de Ingrid era fugir. Para tanto, ela precisava aprender a sobreviver sozinha na selva. Antes de uma das fugas, adestrou-se bebendo água barrenta de um rio para provar a si mesma que sobreviveria aos parasitas quando fugisse. Calculava tudo, o momento exato de saltar no meio da floresta – na hora das tempestades, da troca de guarda, ou por volta das 18h15, no lusco-fusco. Colecionou restos de isopor que vinham em caixas de remédio para fabricar boias e não ter de nadar nos rios o tempo todo. Seria preciso ficar no meio do rio, e não nas margens, onde se é presa fácil dos jacarés. Para abrir caminhos na mata, roubava facões que os guerrilheiros esqueciam. Fazia bonecos para deixar debaixo das cobertas na cama e enganar os guardas quando viessem fiscalizar. O lugar para dormir na selva tem de ser bem escolhido. Numa ocasião, a chuva inundou o local onde Ingrid dormia e, presa às ramagens, ela por pouco não morreu afogada. Numa das fugas, caminhando exausta na mata, viu a noite cair e, paralisada de medo, sentiu o focinho de uma onça-pintada farejando-lhe as pernas. Recapturada, Ingrid sofria todo tipo de punição. Ficava acorrentada pelo pescoço, passava meses proibida de falar com qualquer outro refém.

Aprendeu a língua das Farc. Os guerrilheiros chamam as latrinas cavadas na terra de chontos e o toque de alvorada é um grito imitando guinchos de macacos – la churuquiada. O abrigo sob o qual os mantimentos são estocados recebe o nome de economato, namorada ou namorado é “sócio” ou “sócia”, como se a relação afetiva fosse um empreendimento comercial – o que não deixa de fazer sentido no universo da guerrilha. São comuns as chamadas rangueras, nome pejorativo dado às guerrilheiras que trocam sexo por favores dos chefetes. E são numerosas as meninas que aderem à guerrilha para fugir da prostituição. O retrato que emerge das Farc é miserável. Todo guerrilheiro é vigiado por outro, a delação é estimulada e para tudo é preciso pedir autorização – “requerimento”, na linguagem farquiana. Os “requerimentos”, feitos em público, são necessários até para receber um presente, como um pedaço de sabão, um balde de plástico. Um desertor, se capturado, é executado. Ou os guerrilheiros vão atrás da família. Crianças de 10 anos brincam com fuzis. Não há sinal de pesar quando um guerrilheiro morre em confronto com o Exército.

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Guerrilheiros do antigo Sendero Luminoso, do Peru: Organização guerrilheira que acabou apenas como grupos terroristas e associados ao crime
Guerrilheiros do antigo Sendero Luminoso, do Peru: Organização guerrilheira que acabou apenas como grupos terroristas e associados ao crime (VEJA)

A QUEDA NA CRIMINALIDADE

“Os homens, como se fossem um só, se voltaram todos para mim e se aproximaram devagar, como para me cercar. Eu recuava, na esperança de dar tempo para eles pensarem. Alcancei bem depressa a grade e o arame farpado. Os homens caíram sobre mim, me torcendo os braços enquanto algumas mãos puxavam meus cabelos para trás

e passavam a corrente em meu pescoço. Eu lutava como uma fera. Em vão, porque sabia, de antemão, que estava perdida. (…) A corrente era pesada e esquentava. (…) Nós nos encarávamos. Eles estavam inflados em sua soberba. Eu estava envolta em minha dignidade. Eles me acorrentaram a William, o enfermeiro militar “

Em Nova York, Ingrid Betancourt recebeu VEJA para falar sobre seu livro. Ela entra na sala com um vestido cinza, sapatos de salto alto e um perfume suave. Seus cabelos longos estão levemente desalinhados. Não tem mais a longa trança dos tempos na selva, nem usa mais no pulso o terço que confeccionou no cativeiro com botões de um casaco militar e pedaços de fio de náilon. Sua voz é gentil – tudo nela parece frágil. É difícil acreditar que essa mulher ficou seis anos e meio num cativeiro na selva amazônica, sob a brutalidade das Farc, e saiu inteira. Ingrid não responde nada à queima-roupa. Ela ouve a pergunta, olha para o infinito, pensa e, às vezes, diz simplesmente “não sei”. A única coisa que a deixa exaltada é a notícia – falsa, segundo ela – de que ganhou um adiantamento de 1 milhão de dólares para escrever o livro. A cachoeira de versões do que aconteceu dentro – e fora – do cativeiro não parece incomodá-la. Tratada como heroína, a mulher que se comportou com nobreza e dignidade diante da truculência das Farc, Ingrid teve sua imagem arranhada pelas biografias publicadas por reféns que compartilharam o cativeiro com ela.

Clara Rojas, a refém que engravidou de um guerrilheiro e deu à luz um menino, Emmanuel, saiu do cativeiro quase como inimiga. Disse que, hoje, nem votaria em Ingrid caso ela fosse candidata. As duas estiveram juntas uma única vez desde a libertação. “Clara será sempre presente na minha vida, ela era minha irmã. Mas nossa vida diária no cativeiro era insana”, diz Ingrid. Ela desmente que tenha salvado a vida de Emmanuel quando Clara tentava afogar o bebê. “Isso nunca aconteceu.” Mas no livro diz que, em alguns momentos, achou que Clara tivesse enlouquecido e conta que a sua gravidez foi voluntária. As críticas mais ácidas a Ingrid apareceram no livro de três reféns americanos, que prestavam serviços de natureza militar na Colômbia. Capturados um pouco depois de Ingrid e Clara, os três também passaram mais de cinco anos com as Farc e foram libertados na mesma operação do Exército colombiano. Em Out of Captivity (Fora do Cativeiro), eles descrevem Ingrid como arrogante e egoísta. Não dividia com os companheiros as notícias que ouvia no rádio, acusava os americanos de ser agentes da CIA e, uma vez, reclamou até da cor do colchão que as Farc lhe haviam reservado. Era azul-claro e exibia demais a sujeira.

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Ingrid garante que não leu a biografia de ninguém antes de escrever seu livro, com exceção de alguns trechos do relato publicado pelo ex-senador Luis Eladio Pérez, o Lucho, com quem ela teve uma longa relação afetiva no cativeiro. “Isso foi consciente, porque eu não queria ser alimentada por comentários ou coisas que pudessem desviar minha atenção do que eu queria escrever”, diz. Ela afirma que a guerrilha espalhava calúnias sobre os americanos, numa tentativa de criar um clima de desconfiança entre os reféns e, assim, dificultar planos de fuga. Com um dos americanos, Marc Gonsalves, ela mantém contato diário até hoje. “Nós nos falamos quase todos os dias.” Gonsalves e Ingrid se encantaram um com o outro no cativeiro, consumiram dias escrevendo cartas um para o outro, mas, conforme o relato de ambos, não passou disso. No seu livro, Gonsalves define Ingrid como uma personalidade complexa, capaz de oscilar entre o egoísmo e a compaixão sem escalas. Ele escreve: “A Ingrid bem-sucedida, carismática e ambiciosa que eu conhecia e tanto respeitava parecia coexistir, lado a lado, com a Ingrid orgulhosa, arrogante e insegura da qual eu tinha pena”.

Campo de concentração na II Guerra Mundial
Campo de concentração na II Guerra Mundial (VEJA)

BRUTALIDADE SEM FIM

“Como a ecoar meus pensamentos, a gorda Martha, que estava de guarda, se aproximou de mim:

– Ingrid… eles estão construindo uma prisão.

– Quem está construindo uma prisão?

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– Los muchachos.

– Para quê?

– Vão fechar todos vocês lá dentro.

(…)

Fiquei lívida.

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(…)

Como a gorda Martha tinha anunciado, instalaram uma rede de aço com fios de arame farpado em volta de todo o recinto, com quatro metros de altura. No que parecia ser um canto da obra tinham construído uma torre de vigilância no alto, dominando todo o conjunto. Dava para avistar entre as árvores três outras torrinhas que se elevavam, também com escadas. Era um campo de concentração em plena selva. Eu tinha pesadelos com isso e acordava sobressaltada, coberta de suor, no meio da noite. Devia gritar, pois uma noite Lucho me acordou pondo a mão em minha boca. Ele tinha medo de que houvesse represálias “

No cativeiro, a vida se reduziu a mesquinharias. Em muitos momentos, os reféns perderam todo o sentido de solidariedade e se engalfinharam em disputas por um pedaço de queijo, um comprimido de vitamina C, um lugar para pendurar a rede. Num momento patético, Ingrid aproveitou a visita de um dos chefões das Farc – Joaquin Gómez, que ela conhecia dos tempos de senadora – para reclamar que a guerrilha havia construído um galinheiro em frente ao cubículo onde dormia, mas jamais tinha dado aos reféns um único ovo para comer. Ela não perdoa os sequestradores pela boçalidade com que a trataram, mas não tenta subtrair o que lhes resta de humanidade. Fala de sua surpresa ao ver um dos chefetes, Martín Sombra, sujeito grosseiro, caricato e despótico, mimando um bebê no colo. Fala de Katerina, negra bonita que carregava com destreza um fuzil automático AK-47, cujo sonho era ser miss. Conta que ficava intrigada ao observar os guerrilheiros vendo filmes no DVD: “Eles sempre se identificavam com os ‘mocinhos’ na história, e seus olhos se enchiam de lágrimas quando assistiam às cenas de amor água com açúcar”. Gostavam de Jackie Chan e Jean-Claude Van Damme, mas eram fãs mesmo do cantor e ator Vicente Fernández, ídolo mexicano.

No dia do aniversário de Mélanie, filha de Ingrid, a guerrilha fazia um bolo para comemorar. Numa cena que pode ser descrita como generosa ou como tétrica, que se repetiu todos os anos, os guerrilheiros levavam para Ingrid um bolo em que se lia “Feliz aniversário, Mélanie. Da parte das FARC-EP” – o nome original da guerrilha é Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia-Exército do Povo. No aniversário de 17 anos de Mélanie, levaram bolo e fizeram festa. “Por algumas horas, aqueles jovens se transformaram como por encanto. Não eram mais guardas nem terroristas nem assassinos. Eram jovens, da idade de minha filha, que se divertiam.” Isso tudo convivia com a prisão erguida no meio da selva, que Ingrid chama de “campo de concentração”, com muros altos, arame farpado e tão pouco espaço que os prisioneiros se acotovelavam. Ou com a punição que lhe foi imposta depois de uma tentativa frustrada de fuga: dez pessoas num cubículo dentro de um barco, praticamente asfixiadas e tendo de dividir o mesmo espaço, acorrentadas, até para necessidades fisiológicas, no que parece a descrição de um navio negreiro. Nessas horas, os sonhos de Ingrid eram coisas como sentir um cheiro de perfume, abrir uma geladeira ou usar um sapato de salto alto.

Cada vez que sentia a aproximação de um avião militar, a guerrilha mudava o lugar do acampamento. Forçados pelos guerrilheiros, os prisioneiros tinham de recolher tudo às pressas e se embrenhar no meio da selva, fugindo de quem, na verdade, não queriam fugir. As caminhadas pela selva eram um calvário interminável. Duravam semanas, às vezes meses. Comiam pequenas porções de arroz. Andavam o dia inteiro. Na natureza exuberante e furiosa da selva, subiam e desciam escarpas imensas. Enfrentavam tempestades diluvianas, ou sol inclemente. Atravessavam pântanos invadidos por nuvens de mosquitos, rios infestados de piranhas. Andavam em fila, com gente imunda, cheirando mal, gente doente. Numa dessas caminhadas, sofrendo de crises hepáticas, Ingrid não conseguia caminhar. Foi carregada numa rede, pendurada numa vara que dois guerrilheiros levavam apoiada nos ombros e faziam questão de balançar para jogar Ingrid contra os galhos e os espinhos. No novo local do acampamento, aparava-se o grosso da vegetação e construíam-se as novas dependências para abrigar o comandante, os guerrilheiros e os reféns.

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Ingrid em uma de suas raras imagens no cativeiro e, à esquerda, gravando uma fita de vídeo como prova de vida
Ingrid em uma de suas raras imagens no cativeiro e, à esquerda, gravando uma fita de vídeo como prova de vida (VEJA)

CENAS MAQUIADAS

“Eu olhava o teto e sobretudo a tela pregada a dois dedos do meu nariz. Tinham construído tudo tão às pressas que, para chegar aos beliches superiores, era preciso engatinhar e rolar sobre si mesmo para deitar, de tão reduzido era o espaço entre as camas e o teto. Era impossível sentar e, para descer do beliche, era preciso escorregar pouco a pouco no vazio, se agarrando à tela como um macaco para chegar à terra. Eu não me queixava muito. Pelo menos, era um lugar abrigado, com piso de madeira que nos mantinha secos. A janela nova tinha sido um sucesso. Uma brisa quente penetrava no barracão e limpava o ar pesado da respiração de dez pessoas empilhadas ali dentro. Um camundongo atravessou correndo a viga que eu tinha diante dos olhos. Quanto tempo precisaríamos viver uns em cima dos outros até recuperarmos nossa liberdade?”

Enquanto estava em cativeiro, Ingrid perdeu o pai, que morreu de problemas cardíacos e respiratórios. É a memória mais triste que tem do cativeiro. Não acompanhou a adolescência dos dois filhos, que viveram apenas com o pai, Fabrice. “Tive de voltar a criar um espaço para mim na vida deles”, diz. O casamento com o segundo marido, Juan Carlos Lecompte, ruiu, e o divórcio ainda tramita na Justiça. Hoje, vive entre a casa do filho que mora em Paris e a da filha que vive em Nova York. Não sabe se retomará sua carreira política nem se um dia voltará para a Colômbia, embora acompanhe de perto o que se passa no país. Acha que a Colômbia é um poço de ódio. Pela lei, tinha direito a uma indenização, como é o caso de todas as vítimas do terrorismo na Colômbia. Mas, diante das críticas de que queria arrancar alguns milhões de dólares do Exército que a libertou, voltou atrás.

Num dia normal, em Paris ou em Nova York, acorda cedo e toma um farto café da manhã. “Todo dia é um café diferente, nunca repito”, diz ela, como se ainda saboreasse a fartura que jamais teve no cativeiro. Faz ginástica, vai à igreja todos os dias ou, pelo menos, na sexta-feira, pagando a promessa feita quando estava presa na selva. De tarde, trabalha para sua fundação e sempre reserva algumas horas para ler. Janta bem, deita cedo. Ingrid nunca mais voltou à selva colombiana. Acha que não está pronta para isso. Como ela escreveu no livro, “o diabo vive nesta selva”. Ela acredita que contar sua experiência por escrito e dividi-la primeiro com sua família, e agora com os leitores, foi um processo terapêutico, mas o trauma persiste. Cada vez que sente cheiro de vegetação recém-cortada ou ouve o barulho de um helicóptero, Ingrid não consegue se controlar. “Preciso correr até o banheiro para vomitar.”

Ingrid Betancourt com sua mãe, logo após ser libertada, em julho de 2008
Ingrid Betancourt com sua mãe, logo após ser libertada, em julho de 2008 (VEJA)

A LIBERTAÇÃO

“Eram frequentes as fugas dos acampamentos da guerrilha, motivadas pela chegada de aviões do Exército colombiano. Numa dessas exaustivas caminhadas pela selva, Ingrid era chamada de ‘velha idiota’, enfiavam-lhe o cabo do fuzil nas costas para apressar o passo e, quando caía, levantavam-na pelos cabelos. Ao fim da caminhada, ela conta: ‘Era tarde, eu estava com sede e fome, sentia frio. Meus pés estavam cortados e com bolhas enormes que estouraram, colando a pele nas meias encharcadas. Estava toda picada por piolhos minúsculos que eu não via, mas sentia formigar em todo o meu corpo. A lama grudada nos dedos inchados e sob as unhas me cortava a pele e a fazia rachar. Eu sangrava sem conseguir identificar as numerosíssimas feridas. Desmoronei, decidida a não mais me mexer'”

Ingrid Betancourt com o então ministro da Defesa, Juan Manuel Santos, logo após ser libertada, em julho de 2008
Ingrid Betancourt com o então ministro da Defesa, Juan Manuel Santos, logo após ser libertada, em julho de 2008 (VEJA)

SINAIS DO TRAUMA

“- Você (Ingrid) está coberta de carrapatos. Depois do banho, você tem de ver isso. Não houve banho, nem naquela noite, nem nas seguintes. Enrique (um dos carcereiros) nos embarcou num bongo (tipo de barco) três vezes menor que os anteriores. Éramos dez prisioneiros amontoados num espaço de quatro metros quadrados, ao lado do morto, com uma lata de gasolina no meio. Era impossível sentar sem tocarmos a cabeça e as pernas uns dos outros. Enrique deu ordem para que nos colocassem as correntes de forma que cada um ficasse, ao mesmo tempo, preso ao outro e ao barco. Se o barco afundasse, afundaríamos com ele. Enrique jogou sobre nós uma lona pesada, que não nos deixava respirar direito e ainda retinha os gases que vinham do escapamento do motor. O ar se tornou irrespirável. Ele nos obrigou a ficar assim dia e noite. Fazíamos nossas necessidades no rio, nos segurando na lona, diante de todo mundo. Parecíamos vermes a nos contorcer uns sobre os outros numa caixa de fósforos “

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