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‘Nunca imaginei conseguir perdoar quem tentou me matar’

Sobrevivente do genocídio de Ruanda, em 1994, Immaculée Ilibagiza conta ao site de VEJA como superou o trauma de perder a família da maneira mais trágica

Por Cecília Araújo
15 out 2011, 10h35

“O pior mesmo era não saber o que viria amanhã. A dor no espírito é que me fazia mal. A imaginação fértil de como teriam matado meus pais e irmãos e poderiam me matar a qualquer momento. O sentimento de que a morte podia chegar a qualquer momento, de não estar em paz em um só minuto.”

Um dos menores e mais pobres países da África, Ruanda já esteve entre os mais densamente povoados do continente. Lá, cada membro de uma família tinha sobrenome diferente, que refletia os sentimentos do pai e da mãe ao ver pela primeira vez o bebê. Na língua nativa, kinyarwanda, o de Immaculée Ilibagiza significa “bela e brilhante de corpo e alma”. Nascida em 1972, em Kibuye, uma província da Ruanda Ocidental, Immaculée era filha de católicos fervorosos, que faziam de tudo para poupá-la das mazelas do mundo. Por isso, até entrar para a escola, não tinha consciência de que as pessoas pertenciam a grupos e raças diferentes. Jamais havia escutado palavras como tutsi, hutu e twas – as tribos que povoavam sua aldeia, Mataba, e todo o país. A maioria era hutu, uma minoria, tutsi, e um número insignificante, twas. Só mais tarde ela compreendeu que os colonizadores alemães – e depois os belgas, que os substituíram – tinham convertido a estrutura social local. A antiga monarquia de reis tutsis, que por séculos zelou pela paz e harmonia, tornara-se um sistema discriminatório de classes. Mas na casa de Immaculée era diferente. Qualquer um era bem-vindo, independentemente de raça, religião ou tribo. Afinal, hutus e tutsis falavam o mesmo idioma e tinham toda uma história em comum. As culturas também tinham muitos pontos em comum: cantavam as mesmas canções, cultivavam a mesma terra, frequentavam as mesmas igrejas e cultuavam o mesmo Deus. Viviam nas mesmas aldeias, ruas e, ocasionalmente, nas mesmas casas. Até que, na década de 1990, essa convivência pacífica foi destruída.

Immaculée Ilibagiza era da tribo tutsi e tinha 22 anos quando sobreviveu a um massacre de proporções que ninguém podia prever (relembre o genocídio de 1994 no quadro abaixo). Em plena comemoração da Páscoa, ela passava férias na casa dos pais e viu dali sua família se separar para sempre. Vizinhos, colegas de escola e até amigos próximos hutus se transformaram em caçadores, treinados para matar a qualquer custo e torturar todos os tutsis que encontrassem pela frente. Assim, conflitos étnicos ancestrais culminaram em um verdadeiro holocausto que deixou quase de 1 milhão de mortos, em ataques de violência brutal. A mãe de Immaculée, Rose, foi uma das primeiras a morrer. Ela estava escondida no quintal de uma vizinha quando percebeu que alguém seria morto ali perto. Pensando se tratar de um de seus filhos, saiu pela rua gritando: “Não matem Damascene”. Mas ele não era a vítima, e ela passou a ser perseguida. Disseram-lhe que se desse dinheiro, a deixariam em paz. Ela concordou e foi pedir ajuda a uma amiga hutu, que não só a expulsou como pediu aos assassinos que a matassem na rua para que não sujassem seu quintal. Outros familiares de Immaculée também foram alvo de traição. Seu pai, por exemplo, foi pedir ajuda a um funcionário do governo – que ele acreditava ainda ser seu amigo – para um local onde milhares de refugiados não comiam havia dias. O hutu, porém, chamou-o de idiota e mandou os soldados arrastá-lo para fora. Foi fuzilado. Dos três irmãos, apenas um sobreviveu, Aimable, que estava estudando no Senegal.

Esconderijo e fuga – Immaculée conseguiu asilo na casa de um generoso pastor hutu. Para se esconder, compartilhou um pequeno banheiro de 1,5 por 1 metro com outras sete mulheres por 91 dias. Elas se comunicavam em silêncio, por sinais, e mal conseguiam se mover. Dali, escutava transmissões de rádio em que as próprias autoridades do governo declaravam: “Quando todos os tutsis estiverem mortos, vai ser como se nunca tivessem existido”. Depois de seus pais e irmãos, Immaculée seria a próxima vítima. “Eram muitas vozes, muitos assassinos. Eu podia vê-los com os olhos da mente: meus amigos e vizinhos, que sempre me haviam recebido com amor e bondade, andavam pela casa munidos de lanças e facões e chamavam por meu nome”, recorda ela, que conta detalhes de como conseguiu se salvar no livro Sobrevivi para Contar (Editora Fontanar), escrito em parceria com o jornalista americano Steve Erwin e traduzido para 27 idiomas.

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Hoje, vive nos Estados Unidos com o marido e os dois filhos, e direciona seus esforços à organização que criou, Fundação Ilibagiza, para amparar sobreviventes de guerras e genocídios. Também faz palestras pelo mundo contando sua experiência e exaltando sua fé – que, segundo ela, a ajudou a superar os traumas que a tragédia marcou em sua vida. Esta semana, esteve no Brasil. Com uma imagem delicada e deslumbrante ao mesmo tempo – vestida de longo verde claro e levemente brilhante, unhas vermelhas, cabelos alisados e anéis em vários dedos -, entrou no Teatro Tuca de São Paulo, superlotado. Ouvia-se do público frase como: “Foi a fé dela que fez com que as coisas se transformassem para o bem”. Ao falar sobre o genocídio, sua voz vacila, mas ela não cai no choro. Fica grande parte do tempo com um rosário na mão direita. “Nunca imaginei perdoar quem já tentou me matar, contou ela à reportagem do site de VEJA, com quem conversou logo após o evento. Confira a entrevista:

Immaculée Ilibagiza, sobrevivente do genocídio em Ruanda, durante palestra sobre o livro “Sobrevivi para Contar” no teatro Tuca, São Paulo (VEJA)

Quando a senhora era criança, seus pais escondiam a dura realidade de discriminação e disputa entre tutsis e hutus em Ruanda. Foi melhor assim? Acho que eles fizeram bem ao evitar que meus irmãos e eu olhássemos para membros de outras tribos como inimigos. Não se deve colocar todos os hutus “num mesmo saco”. São pessoas como nós, que frequentavam nossa casa e eram nossos amigos. Meu pai, especialmente, sempre me ensinou a olhar o lado bom das pessoas, mesmo sem deixar de me proteger. Também cresci ouvindo que há injustiças na vida, mas que o amor supera todas elas. Por isso, não se deve imitar ou se vingar daqueles que nos fazem mal, apenas nos proteger deles quando necessário. Se alguém é gentil, não importa que seja de outro país, etnia ou religião.

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No momento em que a guerra entre hutus e tutsis se intensificou, a senhora acabou sendo considerada inimiga por vizinhos próximos, colegas de escola e até amigos íntimos. Alguns chegaram a querer vê-la morta… Sim. Foi horrível saber que qualquer pessoa é capaz de trair em nome de um sentimento de ódio coletivo – e isso me dói ainda hoje. Senti que, se não somos prudentes, podemos acabar nos rendendo ao mal e também machucar as pessoas. Todos estão sujeitos a isso. Por outro lado, essas traições também me ajudaram a crescer muito. Hoje, não deixo de dar um voto de confiança às pessoas, embora já não espere mais tanto delas. Para mim está claro que o mal pode vir de qualquer um, então, trato de me proteger.

A senhora teve que se esconder em um banheiro minúsculo, com outras sete mulheres. Ali, o que era pior: a falta de espaço, o mau cheiro, não poder falar ou escutar e ver o que não queria? Acredita que não me lembro de nenhum mau cheiro? Eu tinha 30 quilos quando saí do banheiro. Nada físico chegava a me incomodar lá dentro. Só me dei conta de que estava subnutrida quando saí do cômodo e não conseguia ficar em pé. O pior mesmo era não saber o que viria amanhã. A dor no espírito é que me fazia mal. A imaginação fértil de como teriam matado meus pais e irmãos. O sentimento de não estar em paz em um só minuto, de que a morte também poderia chegar a mim a qualquer momento. Somente quando eu orava conseguia me sentir um pouco melhor. O rosário que meu pai me deu em nossa despedida era minha principal ferramenta para chegar a Deus: rezava 27 vezes por dia.

Começar a aprender inglês no banheiro também ajudou a esquecer um pouco os problemas? Os estudos me ajudaram muito a ter esperança e crer que tudo iria dar certo no final. Ao aprender inglês, imaginava meu futuro chefe (sonhava em trabalhar nas Nações Unidas) me fazendo perguntas. Logo aprendi a dizer como me chamava, de onde vinha, o que tinha se passado. Formulava as frases e decorava palavras-chaves com esse mesmo objetivo. Isso me ajudou a não pensar “por que”, mas sim “o que fazer agora”.

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Immaculée Ilibagiza, sobrevivente do genocídio em Ruanda, durante palestra sobre o livro “Sobrevivi para Contar” no teatro Tuca, São Paulo (VEJA)

Como foi saber que seu nome estava na lista dos que seriam mortos em breve pelos hutus e até mesmo ouvir seu nome pronunciado por assassinos com quem a senhora havia tido relações amigáveis no passado? Foi surpreendente. Não imaginava que uma coisa dessas poderia acontecer, ainda mais vinda de pessoas que sempre foram gentis comigo. Enquanto eu estava escondida no banheiro, alguém gritava ter matado 399 pessoas e repetia que eu seria a 400ª. E eu reconheci aquela voz: era um antigo amigo! Nesse momento, tive a completa noção de que tudo de pior poderia me acontecer.

A senhora admite que, em muitos momentos, chegou a sentir raiva e cogitou vingança. Quando foi isso? Durante muito tempo em que estava escondida no banheiro, carregava muito ódio no coração. E pensava ter razão de sentir isso, por tudo o que estava passado. Em meio às minhas orações, me dei conta de que não estava seguindo um trecho que tanto repetia no Pai Nosso: “Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido…”. Estava mentindo para Deus, pois o perdão não era o que eu de fato sentia. Então, comecei a ignorar essa parte da oração. Rezava todo o restante e, quando chegava nesse pedaço, pulava. Nunca imaginei perdoar quem já tentou me matar. Pensava em me tornar um soldado e matar todos da outra tribo.

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E como conseguiu superar? Ao omitir o trecho da oração, sentia que estava sendo sincera, mas aquilo me incomodava. Então, decidi pedir a Deus força para superar toda aquela raiva. Como sempre acontece quando desejo muito qualquer coisa grande, a solução chegou. Logo me lembrei do que Jesus disse a Deus antes de morrer: “Pai, perdoai-os, porque não sabem o que fazem”. Era o sentido que eu esperava para, finalmente, conseguir perdoar. Os hutus estavam fora de si, tinham perdido a razão e faziam mal a si mesmos, a sua consciência. Claro que a tentação de se vingar existe, mas nós, que estamos em sã consciência, devemos apenas nos proteger e perdoar. A principal coisa de que devemos nos defender é o ódio – ele destrói amizades, famílias e até países. Já o amor, salva e permanece. Se eu consigo sorrir depois de tudo, foi graças à fé e ao perdão.

Dica de leitura

Sobrevivi para Contar

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Capa do livro 'Sobrevivi para Contar'
Capa do livro ‘Sobrevivi para Contar’ (VEJA)

O livro Sobrevivi para Contar – o poder da fé me salvou de um massacre (224 páginas) conta a história de uma ruandesa que descreve os piores momentos que viveu durante um dos mais sangrentos genocídios da história.

Autor: ILIBAGIZA, IMMACULÉE (com Steve Erwin)

Editora: FONTANAR

Logo que teve a oportunidade, a senhora quis saber detalhes da morte de seus parentes. Por quê? Até certo momento, fechei os olhos para uma série de coisas, também porque não me sentia no direito de chorar no banheiro, na frente das outras mulheres. Quando saí, no entanto, não queria continuar a me iludir sobre a situação de minha família. Sem saber a verdade, nunca poderia me libertar. Então, decidi que precisava descobrir o que tinha acontecido, mesmo que isso me fizesse chorar. Era necessário pensar logo no que eu iria fazer depois, sem me apegar a ilusões.

A senhora acredita que, se as Nações Unidas tivessem intervindo em Ruanda em 1994, a história do seu país seria outra? Se a ONU e as grandes potências do mundo, especialmente os Estados Unidos, pelo menos tivessem chamado a atenção para o genocídio e pedido que a guerra parasse, isso já teria feito uma grande diferença. A intervenção na Líbia, por exemplo, foi importante para impedir a morte de milhares de pessoas, mesmo que esteja durando mais do que o previsto. No caso de Ruanda, acredito que uma intervenção impediria o massacre quase que instantaneamente, mas somente com ameaças e palavras, os hutus já vacilariam. E a comunidade internacional apenas deixou continuarem as matanças até a morte de quase 1 milhão de pessoas. É difícil para você imaginar, mas a cada metro do país havia corpos. Até hoje, quando se anda pelas ruas, é possível ver ossos dos mortos no massacre.

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